Guerrilha do Araguaia: os ecos no presente

Na década de 1970, jovens insurgiram-se contra a ditadura no Pará. Venceram batalhas, mas foram brutalmente exterminados. O Exército ocultou corpos e história. Mas o passado não passa: o que aconteceu? Quais militares estiveram envolvidos?

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A Guerrilha do Araguaia (1972-1974) não pode ser lida como um momento efêmero, que se restringe ao passado. Na realidade, até hoje, cinquenta anos depois dos conflitos, constatei, em trabalho de campo – visita à região por onde passaram e lutaram os guerrilheiros -, que a população local se lembra não só do período, mas também dos longos contatos estabelecidos entre os “paulistas” (como eram popularmente chamados aqueles jovens, vindos de centros urbanos e de grandes cidades) e os posseiros. O legado da guerrilha é enorme, principalmente no que se relaciona ao fortalecimento do sindicalismo rural, representado na figura dos STTRs (Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais).

O combate se deu, oficialmente, no Sul do Pará. Lá, os três destacamentos (A, B e C) se estabeleceram. Apesar de tais agrupamentos serem móveis, suas “bases” estavam entre os atuais municípios de São João do Araguaia e Marabá (Destacamento A), entre Palestina do Pará e São Geraldo do Araguaia (Destacamento B) e entre São Geraldo do Araguaia e Piçarra. Contudo, suas influências extrapolam o sul paraense. A Guerrilha do Araguaia é comentada (e até mesmo celebrada pelos seus ideais) no Sudeste do Pará, Oeste Maranhense e Bico do Papagaio Tocantinense, pedaço do território nacional que concentra o maior número de assassinatos decorrentes de conflitos fundiários. Entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, na transição da Pré-Amazônia, histórias e estórias acerca dos “paulistas” são transmitidas, um (entre tantos outros) combustível para a resistência popular.

O que foi a Guerrilha do Araguaia

Torna-se essencial explicar o que foi a Guerrilha do Araguaia. Com o golpe de 1964 e a perseguição à esquerda, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), originário do racha com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), optou pela via armada. Diferentemente de outras organizações que, também na clandestinidade, preferiram implantar a luta armada em áreas urbanas (atingindo bancos para captação de recursos), o PCdoB, seguindo os moldes do maoísmo e da guerra popular prolongada, voltou-se para a implantação de uma guerrilha rural. Após anos de levantamento e estudos, a região ideal era aquela na confluência entre Pará, Maranhão e o então estado de Goiás (atual divisa Pará-Maranhão-Tocantins), nas margens do Rio Araguaia.

Devido à abundância de recursos hídricos e à presença de outros itens para autoconsumo, o PCdoB começou a deslocar, aos poucos, seus quadros e seus militantes para o Pará. A juventude era central. Aqueles mesmos jovens adultos, alguns que haviam acabado de ingressar no ensino superior, afetados pelo Ato Institucional Número Cinco (AI-5) de 13 de dezembro de 1968, não encontraram outro caminho: a leitura pecedobista foi a de que não haveria outra alternativa para combater a Ditadura Militar (1964-1985). Ainda em 1966, os primeiros comunistas começaram a chegar no local. Em 1969, com alguns paulistas já no Pará, o PCdoB divulgou Guerra Popular – Caminho da Luta Armada no Brasil, documento que argumenta e assenta a explicação do motivo para implantar uma guerrilha rural no interior do Brasil, almejando acumular apoio camponês. Em 1972, os quase setenta guerrilheiros foram “descobertos” pelas Forças Armadas. Três campanhas militares se seguiram.

Engana-se, porém, quem pensa que a repressão venceu facilmente. Em números, a Guerrilha do Araguaia era inferior. No entanto, pelos anos de contato com a população local e pela consolidação de relações de solidariedade (que passam, inclusive, pelos mutirões e troca de dias de trabalho na roça), foram apoiados e até mesmo protegidos pelos posseiros. Da noite para o dia, os comandados por Emílio Garrastazu Médici começaram a taxar os “paulistas” de “terroristas”. Os trabalhadores rurais, porém, questionavam-se como aqueles com quem conviveram por quase meia década seriam “terroristas”. A perseguição a eles pouco fazia sentido, pois, como indicam Campos Filho (2012) e Maciel (2014), os pecedobistas não tiveram tempo de começar sua fase de trabalho político. A politização – indicando a filiação ao maoísmo e aos paradigmas chineses – era uma etapa posterior; até o momento da localização da guerrilha pela ditadura, em 1972, houve, no máximo, as denúncias das péssimas condições sociais e do esquecimento das dificuldades dos posseiros por parte da esfera federal. Eram camponeses invisibilizados, vítimas da concentração fundiária que resultava em expulsão, ignorados pelos grandes projetos.

As duas primeiras campanhas do governo foram derrotas. A estratégia teve que mudar. Despreparado, o Exército enviou jovens inexperientes para uma guerra de guerrilhas. Os guerrilheiros do Araguaia saíram, inicialmente, vitoriosos. Para calar essa voz dissonante na entrada da Amazônia, fundamental para a implantação das obras faraônicas anunciadas por Médici, a Terceira Campanha veio a ser um massacre. Se as duas primeiras campanhas ocorreram ainda em 1972, a terceira e última teve um intervalo anterior. Nesse ínterim, os militares investiram na Operação ACISO (Ação Cívico-Social), de caráter assistencialista. Mesmo assim, muitos camponeses não se renderam à narrativa que chamava os “paulistas” de “ameaças” ao Brasil. A ordem, portanto, foi para não deixar sobreviventes. A Terceira Campanha pode ter várias classificações: “caça aos comunistas”, pois “todos aqueles que tivessem ligação com a Guerrilha deveriam ser eliminados” (CAMPOS FILHO, 2012, p.160); “política deliberada de extermínio extrajudicial dos guerrilheiros encontrados na mata” (BRASIL, 2014, p. 717); ou, como assinala José Genoino, um dos dois únicos ex-guerrilheiros ainda vivos, “verdadeira caçada às pessoas que viviam no interior da mata” (GENOINO, 2007, p. 465). Em essência, a Terceira Campanha foi um massacre, que impôs à região uma atmosfera de medo.

A perseguição foi tamanha que levou Campos Filho (2012) a associá-la ao Vietnã. Embora tal analogia tenha um peso metafórico elevado, não deixa de expor as crueldades perpetradas pelas Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) no estado do Pará. A justificativa se dá pela repressão espetacular e espetacularizada, pela tortura pública e pelo uso de bombas de napalm. As semelhanças com a Guerra do Vietnã aparecem aí. Além disso, segundo esse mesmo autor, foi necessário que as Forças Armadas deslocassem seu maior efetivo desde a Segunda Guerra Mundial para conter a resistência armada, que consistia em dezenas de jovens na clandestinidade.

Repressão e resistência

Depois da vitória da ditadura pela Terceira Campanha, a literatura não se prende ao ano de 1974. Em 1975, foi realizada a Operação Limpeza para apagar quaisquer rastros e vestígios dos cadáveres daqueles que ousaram não aceitar passivamente o golpe de 1964 e suas consequências. Arquivos foram queimados e restos mortais de guerrilheiros foram movidos e escondidos para dificultar tanto a localização quanto a identificação. Para tornar a situação ainda mais complexa, tratava-se de uma área estratégica para os militares. Existiam planos de implantação de megaprojetos na Amazônia, com o fim de “integrar para não entregar”. O ufanismo impôs a Transamazônica para silenciar o episódio do Araguaia e eventuais simpatizantes. A convergência de interesses envolvia madeira, pecuária e até extração de minérios.

Oliveira (1990, p. 35) identifica uma “‘corrida aos minérios da Amazônia pós-64”. Nesse contexto, fortalece-se o Projeto Grande Carajás, criticado por Valverde (1989) por ser, na verdade, um “planejamento da destruição”. O minério de ferro lá explorado, encontrado ainda em 1967, não ficaria no Brasil (assim como nunca ficou). Envolvendo obras faraônicas (de ferrovias a hidrelétricas), tal projeto destinou o ferro para o exterior. Enquanto os proveitos foram para agentes distantes, os rejeitos atingiram os locais. Posteriormente, garimpeiros descobriram ouro em Serra Pelada no início da década de 1980. Se, em um primeiro momento, aqueles posseiros (majoritariamente maranhenses e piauienses que sofriam com a concentração de terras no interior nordestino) migraram, incentivados pelo regime, para a Amazônia segundo um slogan de “homens sem terras para uma terra sem homens” (CAMPOS FILHO, 2014, p. 29); em um segundo momento, não receberam suas prometidas terras regularizadas, visto que os reais beneficiários a quem a Ditadura Militar atendia provinham de grandes empresas, e metamorfosearam-se em garimpeiros.

Serra Pelada também fracassou. Depois de poucos anos da Corrida do Ouro, os garimpeiros tiveram que sair daquele garimpo a céu aberto. Sem terras, começaram a questionar a oligarquia rural. Como resultado, manifestou-se uma antítese, na qual um lado mata e o outro, destemido, morre. Pistoleiros, grileiros, latifundiários e bate-paus de Major Curió (resquício e herança do combate à Guerrilha do Araguaia) atacam camponeses, trabalhadores rurais sem terra, lideranças sindicais, defensores da reforma agrária e representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Por esse motivo, tornou-se necessário fazer essa relação entre: ocupação de terras – Serra Pelada – fim do garimpo de Serra Pelada – ampliação da disputa pela terra – crescimento da pistolagem – aumento do número de assassinatos na luta pela terra” (CAMPOS FILHO, 2014, p. 350). Segundo dados disponíveis nos anuários da CPT, Pará, Maranhão e Tocantins, embora correspondam a somente um quinto do território nacional, concentram 27% dos conflitos por terra e 45,2% do número de assassinatos no campo de 1985 a 2019 no Brasil. A violência é explícita. O uso da força pelos agentes hegemônicos é desmedida.

É um mito, entretanto, assumir que não há resistência. Atualmente, é o agronegócio que avança sobre a Amazônia (no Arco do Desmatamento) e sobre os Cerrados Sul-Maranhenses. O Bico do Papagaio, que já era tenso, torna-se, mais uma vez, uma panela de pressão que já estourou, vitimando sempre o lado mais fraco. Frente à expulsão e à desterritorialização de camponeses, porém, o legado da Guerrilha do Araguaia se faz presente. Seus ideais ainda são sentidos. O sindicalismo rural local leva a sério a organização dos trabalhadores. Obviamente, a influência não se dá por meio de uma defesa do maoísmo e da guerra popular prolongada. Falando de documentos, as inspirações não estão no Guerra Popular – Caminho da Luta Armada no Brasil, onde se lê que “o estudo das obras de Mao Tsé-Tung sobre a guerra revolucionária serviu de guia na elaboração deste caminho” (PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL, 1974, p. 156), mas na Proclamação da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo, na qual se prega o socorro e a ajuda ao “homem do interior” (ULDP, 2002, p. 56). Divulgado às pressas por causa da localização dos guerrilheiros por parte dos militares, esse segundo documento tinha como objetivo angariar apoio ao trazer temas como reforma agrária, combate à grilagem, proteção de mão de obra, livre circulação por babaçuais, redução dos impostos, saúde e educação. Mesmo que as Forças Armadas tenham pretendido manter o silêncio, os feitos dos guerrilheiros são comentados e inspiram o enfrentamento às desigualdades sociais.

A história contada e materializada no espaço

Por fim, pode-se retomar a razão de abordar a Guerrilha do Araguaia. Acima de tudo, mencioná-la e estudá-la minuciosamente se constrói como um exercício de resgate da memória. Como a redemocratização brasileira, pós-1985, foi marcada pela anistia para torturadores, pela amnésia e pelo esquecimento, reforçar que os “paulistas” foram massacrados e exterminados no Sul do Pará é demonstrar as limitações do que hoje se trata como “democracia”. A Ditadura Militar, que dava sinais de fraqueza já no final da década de 1970, terminou, mas os algozes não foram exemplarmente punidos. Com o perdão, muitos crimes foram esquecidos e jamais penalizados. Envolver-se com um tema espinhoso como a Guerrilha do Araguaia, embora triste e doloroso por expor as crueldades e as violações de direitos humanos da ditadura, é crucial. A Lei da Anistia de 1979 tem uma dupla face. Na medida em que permitiu que exilados voltassem ao Brasil, presos políticos fossem perdoados e famílias se reencontrassem depois de anos, preservou os militares por ser “ampla, geral e irrestrita”. O conluio interno das Forças Armadas impediu a condenação de seus superiores – e, para isso, aproveitaram-se de um mecanismo jurídico que indicava a reabertura política.

Mesmo com a tentativa de calar dissidentes internamente, os membros do PCdoB que viveram às margens do Rio Araguaia entre 1966 e 1974 continuam a ser lembrados. A despeito da permanência de formas materiais (materialidades, como objetos geográficos) que carregam um determinado conteúdo para manter o medo na memória coletiva, o silêncio vai, gradualmente, sendo vencido. Toponímias dão indícios de quem venceu a Terceira Campanha. Curionópolis, nome de município no Sudeste do Pará, é uma referência direta à personalidade de Major Curió, Sebastião Rodrigues de Moura, que atuou para derrotar os guerrilheiros. Construções, como a Casa Azul em Marabá, também Sudeste do Pará, mantêm-se visíveis na paisagem, algo intencional, voltado à demarcação e constante lembrança dos vencedores. É uma forma que traz determinada mensagem: os opositores não sobreviverão e serão calados como os pecedobistas foram tanto na caçada humana da Terceira Campanha de 1974 quanto no Massacre da Lapa de 1976. Todavia, o renascimento e o crescimento da organização popular, exemplar com o sindicalismo rural combativo do Sudeste do Pará, Oeste Maranhense e Bico do Papagaio Tocantinense, são indícios de que nem tudo se manterá como está.

Para fechar com uma breve reflexão, José Genoino, que após ser preso pelo envolvimento com a luta armada no Pará, veio a ser um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, o qual presidiu no início dos anos 2000 e pelo qual atuou como deputado federal por mais de duas décadas, ressaltou em entrevista recente: “O Araguaia é um exemplo, assim como outras rebeliões do Brasil, que além de ser eliminada a ferro, sangue e fogo, tem a memória eliminada. A verdade incomoda. A memória incomoda. O passado não passa” (ANDRADE, 2022, p. 354). Se o passado não passa, cabe a nós indagar: o que aconteceu com os guerrilheiros do Araguaia? Quem estava envolvido na repressão? Como e sob quais condições os guerrilheiros foram assassinados?

São muitas questões sem respostas, mas que devem ser solucionadas e explicadas.


Referências Bibliográficas

ANDRADE, Vinícius Carluccio de. Entrevista: José Genoino. Boletim Campineiro de Geografia, v. 12, n. 2, p. 339-359, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.54446/bcg.v12i2.2848. Acesso em: 22 set. 2023.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade (v. 1). Brasília: CNV, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf. Acesso em: 22 jul. 2023.

CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Araguaia: depois da guerrilha, outra guerra – a luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela ideologia da Segurança Nacional (1975-2000). 1 ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com a Editora Anita Garibaldi, 2014.

CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas. 2 ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2012.

GENOINO, José. Carta de autodefesa apresentada no julgamento da guerrilha. In: COELHO, Maria Francisca Pinheiro (org.). José Genoino: escolhas políticas. 1 ed. São Paulo: Centauro, 2007. p. 451-474.

MACIEL, João Paulo. Guerrilha no Araguaia-Tocantins. Imperatriz: Ética, 2014.

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. Guerra Popular – Caminho da Luta Armada no Brasil. Lisboa: Edições Maria da Fonte, 1974.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos. Campinas: Papirus, 1990.

ULDP. Proclamação da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo. In: AMAZONAS, João; ANTERO, Luiz Carlos; SILVA, Eumano (org.). Uma epopeia pela liberdade: Guerrilha do Araguaia – 30 anos. São Paulo: Anita Garibaldi, 2002. p. 56-65.

VALVERDE, Orlando. Grande Carajás: planejamento da destruição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

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