A busca pela anta perdida da Caatinga

Expedição multidisciplinar procura entender este desaparecimento. Jardineira das florestas está em pinturas rupestres, mas há 30 anos não é avistada na região. Resultados da pesquisa apoiarão a preservação da espécie em outros biomas

.

Por Cristiane Prizibisczki, em O Eco

Dentre os vários animais retratados por nossos ancestrais nos paredões rochosos da Serra da Capivara, coração da caatinga piauiense, estão uma anta e seu filhote. Este é mais um registro dentre muitos que confirmam a existência histórica da espécie no bioma. Mas não existem mais antas na Caatinga. Ela está extinta nesta formação vegetal unicamente brasileira há pelo menos 30 anos, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e, até hoje, ninguém sabe o porquê. 

Para encontrar respostas a esta e outras perguntas, durante todo o mês de março, uma equipe multidisciplinar formada por biológos, veterinários, comunicadores e especialistas na temática da coexistência humano-fauna vão percorrer cinco estados, na expedição “Caatinga – Em busca da anta perdida”.

 À frente do grupo está Patrícia Médice, principal referência sobre a espécie no mundo. “Existe um déficit de informações sobre a ocorrência histórica da anta brasileira no bioma, bem como sobre os fatores que levaram ao seu desaparecimento”, diz Patrícia, que é pesquisadora, cientista e coordenadora da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira, do Instituto de Pesquisas Ecológicas (INCAB-IPÊ).

Anta perdida

A Tapirus terrestris é o maior mamífero terrestre do Brasil, com ocorrência em cinco dos seis biomas brasileiros. Com tamanha distribuição geográfica, a anta brasileira também está suscetível a diversas ameaças e pressões, como caça ilegal, atropelamentos em rodovias e perda e fragmentação de habitat provocados por incêndios, ocupação humana, expansão agropecuária e de centros urbanos. 

Em cada um dos biomas em que ela ocorre, a anta tem um status de conservação, definido em função da redução populacional ocorrida no passado e projetada para o futuro. Apenas na Amazônia, no entanto, o número de indivíduos ainda não é preocupante. 

A Tapirus terrestris é considerada “em perigo” no Cerrado e Mata Atlântica e “quase ameaçada” no Pantanal. Na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a anta brasileira é classificada como vulnerável à extinção.

Por isso, diz Patrícia, é tão importante entender as razões de seu desaparecimento na Caatinga. A ideia é que os dados e informações coletados na expedição ajudem os pesquisadores a evitar que isso aconteça em outros biomas.

Mapa mostra trajeto a ser percorrido por pesquisadores na Expedição Caatinga e locais de possíveis paradas. Arte: Gabriela Güllich

“Ir atrás de informações sobre uma espécies que já foi extinta num determinado local, buscar entender as razões que levaram a essa extinção, como ela se deu, quem foi o responsável e em quanto tempo [a extinção] ocorreu pode nos trazer informações muito importantes pra gente repensar um pouquinho nosso trabalho nas outras áreas onde a gente também opera”, explicou Patrícia Médice, a ((o))eco.

Apesar de conviver com um problema de relações públicas bem grande no Brasil, a anta é essencial para a conservação dos biomas em que vive. Ela é considerada a “jardineira das florestas”, devido à sua capacidade de dispersar sementes e otimizar a germinação das mesmas sob a ação de seu trato digestivo. 

Hipóteses para o desaparecimento

A Caatinga corresponde a cerca de 6% da distribuição geográfica da anta brasileira. Vários são os registros históricos de sua existência no bioma, a começar pela pintura rupestre citada no início da matéria e reproduzida na foto ao lado. Mas é não só no interior do Piauí que se tem notícia dela. Moradores antigos do norte da Bahia, por exemplo, também relatam o avistamento do animal. Juazeiro do Norte (BA), inclusive, ficou conhecido por ser um famoso entreposto de caça por onde as peles do animal eram comercializadas.

A caça, portanto, é uma das hipóteses trabalhadas pelos pesquisadores que vão compor a expedição na Caatinga. Mas há outras duas: a perda de habitat e as mudanças no clima.

Apesar de aproximadamente metade da Caatinga ainda estar preservada, a maioria destes remanescentes estão potencialmente expostos a atividades humanas. Apenas 9% da Caatinga está sob alguma forma de proteção legal. Assim, a hipótese é que a ocupação das áreas por atividades humanas teriam “empurrado” o animal para os outros biomas com os quais faz fronteira.

Além disso, segundo os pesquisadores, é provável que a espécie tenha sempre ocorrido somente nas porções úmidas das bordas da Caatinga, em áreas de transição com a Mata Atlântica, ao leste, e com o Cerrado, a oeste. Com a Caatinga se tornando cada vez mais seca, a anta foi perdendo as áreas úmidas em que vivia, tendo migrado definitivamente para esses outros biomas, explica Patrícia Médice.

“ A gente não sabe qual hipótese vai ser confirmada, só durante a expedição é que vamos começar a concretizar, a amadurecer nossa percepção”, diz.

Patrícia Médice, líder da expedição, trabalha pela conservação das antas há mais de duas décadas e é considerada a maior referência no mundo sobre a espécie. Foto – Paul Raad/INCAB

Humanos X fauna

A temática da coexistência humano-fauna é relativamente nova nos projetos de conservação de espécies ao redor do mundo. Apesar disso, grande parte da expedição em busca da anta perdida vai se basear nesse novo nicho da ciência.

“Basicamente vamos coletar relatos [na expedição]. O tema da coexistência humano-fauna é um naco da conservação que está cada vez mais importante, porque nós, conservacionistas, estamos começando a nos dar conta da importância de inserir o conhecimento tradicional, os conhecimentos etno-biológicos para dentro de nossos trabalhos de conservação”, explica Patrícia.

Será a partir da coleta dos relatos e vivências das pessoas entrevistadas ao longo da expedição que a equipe pretende alcançar a resposta às perguntas ainda em aberto.

Para viabilizar parte da expedição e ajudar a divulgar a espécie, também foi criada uma campanha de financiamento público. “Além do recurso que irá viabilizar a expedição, a campanha é uma oportunidade do público conhecer mais a iniciativa e a ter mais contato com essa espécie tão importante para a biodiversidade brasileira. Por isso, pensamos em uma campanha e uma comunicação mais leve e até um pouco divertida, para que as pessoas possam criar uma boa imagem da anta e se interessem em saber mais sobre ela”, explica Thiago Massagardi, consultor em captação de recursos, responsável pela campanha.

A “Expedição Caatinga – Em busca da anta perdida”, vai percorrer cinco estados – Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, Bahia e Piauí, parando em cerca de 30 localidades, entre elas 16 unidades de conservação onde se tem registros da espécie. Segundo Patrícia Médice, cerca de 100 entrevistas estão previstas para acontecer. 

Os resultados vão subsidiar o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade na revisão da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas já existente e na elaboração da futura listagem, e também nas revisões do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Anta.

Além disso, as informações encontradas terão publicação científica formal e também em linguagem informal, para o público leigo.

Foto: João Marcos Rosa
Leia Também: