Uma armadilha para Nísia Trindade

Ministra inaugura, no Piauí, maior maternidade pública do país. Mas há uma nódoa no ato: a transferência dos hospitais do estado para OSs, à revelia do Conselho de Saúde, com precarização do trabalho e em nome de políticas neoliberais

Foto: Governo do Piauí
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Um dos elementos mais importantes da infiltração do setor privado no SUS são as Organizações Sociais (OSs). Estas entidades, que fazem a gestão de unidades de saúde, têm forte presença em especial nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas seu modelo se espalha – muito embora sejam intensamente questionadas por sanitaristas e movimentos de saúde, inclusive por promoverem precarização dos trabalhadores. Um estado onde estão começando a se proliferar, a despeito da posição do Conselho Estadual de Saúde (CES-PI) é o Piauí. A inauguração da nova Maternidade Dona Evangelina Rosa, em sua capital Teresina, que acontece hoje, 28/7, é emblemática como marca desse processo.

Está sendo considerada a maior maternidade pública do Brasil, com 293 leitos, e será a única referência de alta complexidade no estado. Sua inauguração, que colocará em uso o equipamento que recebeu maior investimento do governo do Piauí em 50 anos, contará com a presença da ministra da Saúde, Nísia Trindade, e do ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias. A ida de Nísia é vista com decepção por movimentos de saúde do Piauí. Eles  enxergam o importante papel da ministra, como defensora de um SUS público e com participação popular ativa, como ficou marcado na 17ª Conferência Nacional de Saúde, no início do mês de julho, em Brasília. Mas avaliam que todo o processo de entrega da maternidade para a gestão da OS Reabilitar foi concluído sem qualquer consulta ou explicação ao Conselho Estadual de Saúde, uma surpresa para seus integrantes.

“Quando soubemos, o processo já estava andando”, denunciou Emidio Matos, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e primeiro secretário do Conselho Estadual de Saúde. O fato aconteceu em meados de 2022, ainda no governo do petista e hoje ministro Wellington Dias. “Ao tomarmos conhecimento, fizemos uma ampla discussão, com a presença do Ministério Público, dos conselhos de classe. Todos se posicionaram contrários à medida, e o Conselho aprovou uma resolução por meio de um ato normativo”, explicou. Foram ignorados pelo governo do estado – o que fez com que o Conselho acionasse o Ministério Público e judicializasse o processo.

Com a chegada do novo governo estadual – de Rafael Fonteles, que deu continuidade à gestão de Dias –, pouca coisa mudou. “Em março, o Conselho Estadual de Saúde recebeu, da Secretaria Estadual de Saúde, pauta para uma reunião ordinária em que apresentaria a ‘intenção de transferir a gerência dos Hospitais Públicos’ do Piauí para OSs”, contou Flávio Furtado Farias, presidente do Conselho Municipal de Parnaíba e professor da Universidade Federal do Delta do Parnaíba. Segundo ele, o tema não havia sido mencionado em nenhum momento, nem durante a campanha eleitoral de Fonteles e nem com o Conselho. 

Rapidamente, diversos movimentos se organizaram e escreveram uma nota de repúdio. Argumentavam que “ao terceirizar a gestão dos hospitais, o Governo do Estado está transferindo a responsabilidade da saúde dos piauienses para entidades privadas, que muitas vezes buscam atender aos seus próprios interesses financeiros em detrimento da qualidade do atendimento à população”. Embora tenha sido assinada até pelo setorial nacional de saúde do Partido dos Trabalhadores, o governador petista não pareceu se comover. 

Ester Melo, do Cebes do Piauí, explica que esse processo de privatização envolveu a entrega a OSs de três hospitais importantes do estado: o hospital de Mocambinho, em Teresina, de pequeno porte; o Hospital Estadual Dirceu Arcoverde, com sede em Parnaíba, a segunda maior cidade do estado, que é referência de toda a região de saúde; e o hospital de Campo Maior, próximo à capital. Ela conta que o processo acarretou demissões em massa dos funcionários, que já eram contratados de maneira instável. É notório, em estados como São Paulo, onde há ampla participação de OSs na gestão do SUS, que a precarização dos trabalhadores é uma marca.

Emídio Matos conta que o Piauí já passou por uma experiência fracassada de gestão de um hospital por uma OS na cidade de Picos, na região do semiárido. “Foi um desastre total, tanto que depois o estado retomou a gestão – inclusive com com questões trabalhistas que até hoje estão na justiça”, explicou. O Conselho Estadual de Saúde também argumenta que a literatura científica mostra com quase unanimidade que a gestão por OSs não melhora o acesso e nem o serviço.

Na nota de repúdio, há também uma explicação contundente: “Infelizmente, experiências malsucedidas de gestão hospitalar por Organizações Sociais não são raras. Escândalos de corrupção denunciados na mídia são um exemplo claro dos problemas que podem surgir quando a gestão hospitalar é entregue a entidades privadas. O desvio de recursos, a falta de transparência na gestão e a priorização do lucro em detrimento da qualidade do atendimento podem prejudicar gravemente a saúde da população”.

Por que, então, um governo petista, supostamente comprometido com a defesa do SUS, leva à frente esse processo – e o faz de costas para a sociedade? Emídio ensina que há ao menos uma explicação: a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ela, aliás, foi aprovada em 2000, apenas dois anos depois da lei que regulamentou as Organizações Sociais. Ambas rezam pela mesma cartilha neoliberal que buscava reduzir o tamanho do Estado brasileiro. “No Piauí, há inclusive um termo de conduta para o Ministério Público, para que o estado possa realizar concursos públicos. Mas há mais de dez anos eles não ocorrem na área da saúde. É um meio de contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal: contratar uma OS. Aí você precariza o serviço, precariza os direitos do trabalhador, mas foge da tranca”.

Já a participação da ministra no evento de inauguração é vista com estranheza pelo professor. “Até pela construção histórica da própria Nísia como pesquisadora, como presidente da Fiocruz, ela não compactua com isso. É um fato que existe a independência: o ministério da Saúde não manda nas secretarias estaduais. Mas a sua presença tem uma forte simbologia. Na prática, ela está referendando a atitude em ato público”. Ester Melo acredita que a ministra pode não ter conhecimento dos meandros desse processo – afinal, sua presença terá uma repercussão negativa para os movimentos sociais e para a própria luta em defesa do SUS.

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