Ultradireita, pânico moral e seu perigo à saúde pública

Movimentos reacionários globais, com forte influência no Brasil, articulam pautas para causar pânico moral e aumentar controle. Seu ódio ressoa nos atendimentos de saúde, afasta os muito vulneráveis e interfere na criação de políticas públicas

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Para além de debates que incidem em temas mais diretamente relacionados com o SUS e o sistema de saúde, o 13o Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva também abarcou diversas mesas e debates que bebem em outros campos da ciência. Foi o caso da mesa Pânicos Morais e seus efeitos no gênero e na sexualidade: direitos humanos, reprodutivos e sexuais em pauta.

A agenda moralista estabelecida pela ultradireita, da qual o Brasil é um dos epicentros, afeta a demanda por acesso a serviços de saúde de populações-alvo dos discursos de ódio e estigmatização. Seja pela pura e simples violência as atinge, seja pela exclusão. Entram na conta, por exemplo, o desfinanciamento do programa de prevenção à aids no Brasil e a suspeita de analistas de que a redução nas notificações de varíola dos macacos – agora chamada mpox – tem a ver com a vergonha de seus portadores em se apresentar a um posto de saúde.

“Em nome de um modelo de família patriarcal, heteronormativo, branco e de classe média, organiza-se uma verdadeira cruzada que, embora careça de racionalidade científica ou evidências empíricas, encontra forte adesão em diferentes setores conservadores da sociedade”, introduziu Ana Paula dos Reis, do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e mediadora do debate.

Trata-se de um grande desafio àqueles que visam vencer a política do ódio. Como explicam os debatedores, há uma imensa capacidade de comoção e aglutinação em torno deste conservadorismo, suposto defensor da moral e dos bons costumes. “O apelo emocional da proteção das crianças contra perigos sexuais é uma das estratégias mais rentáveis de sensibilização e mobilização de seguidores utilizada por atores e grupos conservadores na arena política brasileira contemporânea”, explicou Laura Lowenkron, antropóloga e professora adjunta do Instituto de Medicina Social da UERJ.

O Brasil de Bolsonaro e Damares Alves não a deixa mentir. Sabotadora ativa de qualquer política de direitos humanos, inclusive em negação àquilo que foi a duras penas aceito pelo Estado brasileiro, a ministra conseguiu se eleger senadora. “Exemplos como a disseminação da categoria acusatória ‘ideologia de gênero’, o kit gay, o banheiro unissex, os discursos sobre o aborto e sobre a dissolução da família já têm efeitos em mudanças de portarias, diretrizes, protocolos, documentos do campo da Educação, da Saúde, das políticas para as mulheres, dentre outros”, alertou Ana Paula dos Reis.

O fenômeno é complexo e exige compreensão multidisciplinar, até porque seus efeitos também se dão em variados campos das relações sociais. Sônia Correa, arquiteta, pós-graduada em antropologia e coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, oferece pistas. “São múltiplas estratégias de articulação entre líderes políticos, igreja, empresários e acadêmicos. O movimento antiaborto dos EUA é exemplo, é uma articulação de décadas do catolicismo conservador, do momento em que avançava a inclusão da pauta feminista nos sistemas de gestão global”.

Ela resgata certa antiguidade do movimento, que no Brasil remete à figura de Plínio Correia de Oliveira, líder católico que esteve entre os principais articuladores do golpe de 1964. Dono de terras, também foi presidente da organização TFP (Tradição, Família e Propriedade) e se dedicou a criar teoremas que tentavam explicar a ineficácia da reforma agrária – vértice do golpismo empresarial-militar – por um prisma econômico. Assim, Sônia Correia estabelece, a partir da elaboração do filósofo francês Jacques Ranciere sobre o trumpismo, uma ponte unificadora destes afetos moralistas: “Há uma paixão, tanto entre ricos e pobres, pela desigualdade. Daí a busca por bodes expiatórios, como as mulheres e sua adesão também entre pobres, a partir de elaborações sobre um ideal de ‘cidadão de bem’. A exemplo do Brasil dos últimos quatro anos, acaba sendo fonte até de movimentos neonazistas”.

Segundo Ranciere, “não há nada de misterioso na paixão a que Trump apela: é a paixão pela desigualdade, a paixão que permite que ricos e pobres encontrem uma multidão de inferiores sobre os quais devem manter a todo custo sua superioridade. Na verdade, há sempre uma superioridade da qual você pode participar: superioridade dos homens sobre as mulheres, das mulheres brancas sobre as mulheres negras, dos trabalhadores sobre os desempregados, dos que trabalham nas ocupações do futuro sobre os outros, daqueles com bons seguros sobre aqueles que dependem dos serviços públicos, de nativos sobre os imigrantes, de locais sobre os estrangeiros e de cidadãos da pátria-mãe da democracia acima do resto da humanidade (…) Assim como a negação teimosa não é uma marca de mentes atrasadas, e sim uma variante da racionalidade dominante, a cultura do ódio não é o produto de camadas sociais desprivilegiadas, mas do funcionamento de nossas instituições”.

Portanto, somente com o processamento de saberes e experiências tão heterogêneas pode-se sistematizar uma compreensão mais ampla, e assim capaz de engendrar respostas mais eficazes, do fenômeno das extremas-direitas globais e sua unidade em torno de “afetos odiosos”.

Danilo Ferreira, tupinikim do norte do Espírito Santo, foi outro participante da mesa cuja vivência exemplifica a complexidade do tema. Indígena LGBT, vive de perto a absorção da cultura da homofobia dentro de seu povo. “Vários povos entendiam as relações homoafetivas enquanto parte dessa cultura. Muitos dos povos. Hoje em dia muitos deles já não veem mais como algo ‘certo’, como também entendiam os cristãos quando chegaram, com toda sua imposição. Essa homofobia existe dentro de muitas comunidades como fruto do colonialismo”.

Apesar de sofrerem violência dos brancos que querem suas terras e matam suas lideranças, indígenas podem reproduzir os pânicos morais criados pelos seus próprios opressores, a exemplo do que sugere a morte de um jovem ocorrida dias antes do Abrascão. “Isso impacta nos modos de ver a nossa cultura, nos modos de ver o mundo. Impacta quando olhamos isso dentro da questão do recorte de gênero e sexualidade e vemos a reprodução de violência, que leva a suicídios (a taxa de suicídios entre indígenas é o triplo da média nacional), assassinatos, violências físicas, verbais…”, lamentou Danilo.

Precisamos desmontar a armadilha de que nas direitas estaria alguma forma séria e consequente de defesa das famílias. No fim das contas, conclui o debate, é possível compreender o objetivo final da onda moralista: deixar o mundo como está. Dominadores e dominados eternizados em suas atuais posições. “Proponho pensar o medo, a repugnância e o ódio, entre outras emoções e afetos hostis associados aos pânicos morais/sexuais, menos como respostas instintivas e irracionais a uma ameaça real ou imaginada do que como efeitos de estratégias de sensibilização que denomino de ‘Pedagogia política dos sentimentos’. Ao representar uma ameaça à infância e às famílias idealizadas, a ‘cruzada antipedofilia’ redirecionou o foco da atenção política das desigualdades de poder para a ameaça das perversões. Com isso, garantiu menos a proteção de crianças de carne e osso contra as várias formas de dominação, abuso e violências do que levou à disseminação do horror e do medo, à fabricação de figuras estereotipadas e à ênfase na monstruosidade moral”, explicou Laura Lowenkron.

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