Movimento sanitarista encontra-se com governo Lula

Frente pela Vida apresenta ao grupo de transição propostas para interromper o desmonte do SUS e começar sua reconstrução. Qual será o papel dos que lutam pela Saúde Pública a partir de 2023?

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A quatro semanas da posse de Lula na presidência da República, aconteceu, em Brasília, uma reunião que pode ser considerada mais um marco do movimento sanitarista e da defesa do SUS. Foi o encontro da equipe de transição da Saúde do novo governo com representantes da Frente pela Vida (FpV), rede que reúne as principais entidades em defesa da Saúde Pública no Brasil. “A Frente se apresenta como ator técnico-político importante”, comentou Túlio Franco, da Rede Unida, ao Outra Saúde

A percepção de que novos ares estão de fato chegando à capital do país parecia consenso entre os participantes da reunião – da qual participaram cerca de 70 pessoas, representando mais de 30 entidades. Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde e integrante do grupo de transição, foi quem conduziu o encontro. Ele explicou que os membros da equipe técnica reunirão as propostas e contribuições apresentadas pela sociedade civil em um relatório, a ser entregue ao futuro ministro da Saúde e sua equipe. 

Chioro foi enfático, também, na defesa da PEC 32/22, a chamada PEC da Transição, que retira o programa Bolsa Família (hoje chamado Auxílio Brasil) do teto de gastos. Francisco Funcia, recém-eleito presidente da ABrES (Associação Brasileira de Economia da Saúde), reforçou a importância do apoio da sociedade à PEC: “A aprovação é fundamental para garantir o financiamento da Saúde. Desde 2018, já perdemos R$ 37 bilhões, e se nada for feito, perderemos mais R$ 23 bilhões”. A Frente pela Vida assina uma moção de apoio à proposta de emenda à Constituição elaborada pelo governo de transição. O documento sustenta: “A PEC, a um só tempo, interrompe o desmonte do SUS e representa medida decisiva para viabilizar sua sustentabilidade a longo prazo, a partir da discussão estrutural de novas regras de financiamento”.

Ao apresentar as propostas da FpV, Túlio notou que elas podem ser divididas em três grandes eixos: a) Os atos presidenciais de Bolsonaro que devem ser anulados por Lula em seus primeiros dias como presidente, por usurparem o direito à saúde. Integram oo que vem sendo chamado de “revogaço”; b) Propostas específicas para a saúde apresentadas pelas entidades que compõem a rede; c) Propostas relacionadas a ciência e tecnologia, áreas essenciais e que também estão representadas no movimento. Túlio enalteceu a capacidade que a Frente pela Vida teve, nos últimos dois anos, de “construir coletivamente um projeto de saúde para o país”.

Entre as falas que se seguiram, pautas comuns eram reforçadas, como a urgência de se revogar o teto de gastos e interromper o desmonte do SUS. Houve, ainda, o reconhecimento da importância de que os crimes do governo Bolsonaro sejam julgados – tese defendida com ênfase por Elda Bussinguer, da Sociedade Brasileira de Bioética. “Não podemos repetir o grande erro que foi a anistia dos crimes cometidos pela ditadura militar”, defendeu. 

Sônia Fleury, cientista política e personagem histórica na luta pela criação do SUS, defendeu “democratizar a democracia”, ou seja, aumentar a participação popular nas tomadas de decisão no governo Lula. Para isso, ela sustenta que o modelo do Orçamento Participativo deve ser adotado a nível nacional, como foi sugerido pela campanha do presidente eleito. Além disso, é essencial aprofundar a transparência dos gastos na Saúde – inclusive deixando claro quanto é repassado pelo SUS ao setor privado.

As apresentações trouxeram uma diversidade grande de pautas a serem levadas em conta pela próxima equipe do ministério da Saúde. Representantes dos profissionais da Enfermagem defenderam que o piso salarial para sua categoria seja garantido pelo novo governo – algo que Chioro afirmou que já está sendo levado em consideração. Trata-se da “defesa ética do maior contingente do setor de trabalhadores da saúde hoje”, afirmou Jacinta de Fátima da Silva, da Associação Brasileira de Enfermagem. Renes Amaral, da Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (Abefaco) foi além, afirmando que “alcançar a cobertura universal do SUS passa pela valorização e formação da Enfermagem”.

Lígia Giovanella, da Rede de pesquisa em Atenção Primária à Saúde, também defendeu a revogação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), aprovada em 2017 no escopo do teto de gastos, que alterou as regras para repasse de recursos, pela União, aos municípios. A PNAB vem diminuindo as Equipes de Saúde da Família, o que incide diretamente no acesso das parcelas mais pobres da população ao sistema de saúde. Outras pautas, como a valorização dos cuidados paliativos, a luta pela descriminalização da medicina canábica e a formação dos profissionais de saúde do SUS também foram levantadas.

E qual será o papel da Frente pela Vida, a partir de 2023? Uma das propostas de Túlio Franco é que se forme uma comissão com representantes de cada uma das entidades que enviou propostas, para que possam acompanhar o andamento delas no âmbito do governo federal – e também para avaliar se estão sendo executadas plenamente. Elas são quem mais tem capacidade de qualificar o debate sobre saúde pública, e propor as mudanças necessárias para o SUS.

Ao Outra Saúde, Sônia Fleury afirmou que a reunião representou um momento simbólico para o movimento, um reconhecimento da articulação política feita ao longo dos últimos anos. “A Frente pela Vida se consolidou como um ator político fundamental para o governo, que precisará dela para fazer transformações mais amplas na Saúde”, afirmou. Essa unidade alcançada pelos movimentos da saúde não se vê em nenhum outro setor da sociedade brasileira, analisa ela. “Somos muitos, mas há uma ideia de que temos de estar juntos – e isso foi sempre assim”.

Sônia diz esperar ainda que, no próximo governo, os sanitaristas consigam ser mais questionadores. Durante os outros mandatos do PT, era preciso lutar contra as medidas de “austeridade” e as privatizações, o que deixava os movimentos em uma posição de resistência. Agora que o SUS foi reconhecido pela população e a “austeridade” foi posta em xeque pela pandemia, é hora de agir. “Temos condições de ser mais críticos em nossas proposições”, refletiu.

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