“Todo remédio traz em si o seu próprio veneno”

Entrevista com Ana Maria Fernandes Pitta, veterana da luta antimanicomial e presidente da Abrasme

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Por Elisa Batalha, na Radis

Celebrar os bons momentos e conquistas e enlutar as perdas são atividades humanas essenciais para a saúde mental. No dia seguinte e nos três dias que se seguiram ao segundo turno das eleições presidenciais, a médica e psicanalista Ana Maria Fernandes Pitta encontrou motivos para fazer as duas coisas. Durante o seminário “A Epidemia de Drogas Psiquiátricas — as evidências seguras para a desmedicação segura e eficaz”, ao lado de seus pares profissionais, a veterana da luta antimanicomial celebrou o fato de o evento se constituir numa voz de enfrentamento ao discurso hegemônico medicalizante, que se baseia no uso de medicamentos psiquiátricos como principal — quando não a única — ferramenta de tratamentos de distúrbios do comportamento e de fontes de sofrimento mental. “É um tema de relevância ético-política da maior monta”, defendeu a médica, recém-eleita presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), entidade da qual já era vice-presidente. O luto ficou por conta de constatar a dimensão do uso indiscriminado de remédios, especialmente em crianças, o que ela considera “uma forma de institucionalização”, e pelo contexto político de ameaças a políticas públicas de saúde mental, que ela viu nascer. “Às vezes penso que não estou vivendo isso”, desabafou.

Uma das questões discutidas foi a crescente prescrição de medicamentos psiquiátricos para crianças com problemas de adaptação na escola, questões de comportamento ou aprendizagem. Por que isso é um problema?

O risco da medicalização da infância se multiplica. As crianças são muito plásticas. Elas podem modificar comportamentos com bastante rapidez, fluidez, e isso ao invés de exigir de nós intervenções mecânicas, brutas, medicalizadoras, exige de nós atenção, escuta. Escuta tanto às crianças quanto às mães e aos pais, para que tenham chances de se desenvolver. O uso epidêmico de ritalina (metilfenidato) no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade é um malefício. Eu mesma atendi alguns estudantes de medicina que participaram de um ensaio clínico, tomaram o medicamento e ainda durante o estudo manifestaram crises de ansiedade não controlada, requerendo o uso de outras medicações. Nós introduzimos um número muito grande de crianças, adolescentes e adultos jovens no uso de medicamentos e, portanto, na institucionalização psiquiátrica. Isso prejudica uma geração.

A pesquisadora Maria Aparecida Moisés defende que a medicalização é uma forma de institucionalização. Qual é sua opinião sobre isso?

O modelo hegemônico era manicomiocêntrico. Nós, que participamos do movimento antimanicomial, desenvolvemos estratégias para evitar as internações como principal estratégia de tratamento. Nesse momento, nós vemos hordas de pessoas cronificadas [que são medicadas, mas não são curadas], na população adulta. Ingressa nesse cenário um número imenso de crianças.

A escola, por inabilidade ou mesmo incapacidade de lidar, entender e chegar perto dessas crianças, empurra para a medicalização. Essas práticas não flexíveis, não abertas, estão realmente criando no momento um fenômeno de institucionalização muito mais amplo. Antigamente o foco era no enclausuramento nos manicômios, agora os tratamentos medicalizantes estão disponíveis na atenção básica, nos serviços universitários… Eu não quero ser jurássica, mas o que estamos assistindo é uma medicalização altamente disseminada, e nós deveríamos usar de todos os recursos de pesquisa e de formação para denunciar. A Abrasme apoia um comitê de estudos e pessoas interessadas em discutir com aprofundamento a questão da desmedicalização, inclusive na infância.

Há alternativas à prática dominante de prescrição de medicamentos psiquiátricos?

Todo remédio traz em si o seu próprio veneno. Tivemos aqui, durante o seminário, uma discussão profunda, com apresentação de vários clinical trials, profissionais de universidades do mundo todo, num patamar verdadeiramente científico. O fato de termos uma imprensa livre, convidados de alto nível e uma plateia tanto presencial quanto pelo Youtube, de pessoas inquietas, instigadas, implicadas, nos fez pensar a medicalização como um problema de saúde pública e epidemiológico que precisa ser cuidado como uma das grandes questões atuais que o sofrimento humano demanda. Nesses dias em que nós vivemos em um ambiente democrático, experimentamos a discussão de temas muito tocantes, como a clínica, a política, e modos de enfrentar o sofrimento humano sem patologizar a vida, usando recursos terapêuticos de um modo interessante. Práticas integrativas e complementares foram citadas, modos de expressão de corpos e mentes, modos tradicionais de cuidado. Eu imagino que uma ética de interação humana, de lidar com a alteridade, olhando a si próprio como outro nos faz sermos humanos, demasiadamente humanos, como Nietzsche nos propôs ser.

Como você avalia o atual cenário para as políticas públicas de saúde mental?

Há uma degradação que já é percebida há dois anos. No final de 2018, nós recebemos golpes mortais para algumas iniciativas, como a política de redução de danos para usuários de álcool e drogas, e a expansão da rede comunitária de cuidados. Nós chegamos a ter 2.700 CAPS. Não que os CAPS em si sejam uma resposta totalizante para um problema complexo. Mas a iniciativa semeou em diferentes lugares do Brasil pessoas que estão preocupadas com o sofrimento humano, com os modos de lidar, com as desvantagens advindas desses transtornos ou desse uso não controlado de substâncias.

Quais são as perspectivas para as políticas públicas para a saúde mental no atual contexto político?

Nós que vivemos uma história de reforma sanitária, de reforma psiquiátrica, absolutamente animados pela Constituição Cidadã de 1988, também vimos acontecer, nesses dois últimos anos, um brutal retrocesso. Uma série de conquistas, no cuidado em saúde mental e no cuidado preventivo e tratamento do uso de álcool e drogas foi deixado de lado. A Emenda Constitucional 55 é um desastre. O país estava lutando com dificuldade para a implantação do SUS. Iniciativas irresponsáveis como plano de saúde popular ou comunidades terapêuticas fechadas me parecem um retrocesso ao processo democrático e participativo. Eu, que estava na faculdade de medicina quando o Brasil sofreu o AI-5 [ato institucional de repressão da Ditadura Militar], às vezes penso que eu não estou vivendo isso.