A vida calejada das mulheres do campo

Em casa, o machismo oprime ainda mais, favorecido pelo isolamento. Na terra, o trabalho é intenso – mas invisível. As poucas políticas públicas favoráveis estão ameaçadas. Mas elas lutam – e se encontram com o feminismo

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Elisabeth Cardoso, entrevistada por Raquel Torres

A desigualdade de gênero nos centros urbanos é um problema, mas no campo as mulheres estão ainda mais fragilizadas em vários aspectos. As longas distâncias entre vizinhos, a falta de telefonia e internet e a ausência de serviços de saúde e de delegacias especializadas são uma combinação que favorece e muito a ocorrência – e a subnotificação – da violência doméstica. A importância econômica da atividade feminina na agricultura familiar é ignorada. A violência patrimonial é uma realidade para grande parte das camponesas, que em alguns casos chegam a ter roubado seu direito à herança. A depressão das mulheres mais velhas, que perdem com a capacidade reprodutiva o pouco poder que tinham, fica invisível e sem cuidados. Juntem-se a isso aqueles problemas que também atingem mulheres da cidade – como a falta de voz em espaços como sindicatos e mesmo movimentos sociais – e temos uma situação nada fácil.

Mas, em todo o país, camponesas se organizam há anos, conscientes das desigualdades e em busca de superá-las. Neste 8 de março, para entender as dificuldades e as lutas das mulheres na agricultura familiar e nos movimentos agroecológicos, o Outra Saúde conversou com a agrônoma Elisabeth Cardoso, que atua no Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), coordena o Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e milita na Marcha Mundial de Mulheres. Ela conta que muitas camponesas se articulam hoje com movimentos feministas e, mesmo que a passos lentos, um bom caminho foi percorrido. Porém, muitas conquistas já foram enterradas – e a perspectiva em termos de políticas públicas é a pior possível.

Elisabeth Cardoso. Foto: Wanessa Marinho

Confira:

Quais são os problemas principais enfrentados pelas mulheres do campo devido às relações de gênero? Quais são as especificidades dessas relações nas zonas rurais?

Alguns problemas, como a exclusão da mulher das decisões e o menor acesso ao dinheiro, não são específicos do campo, mas sim globais. Em geral, as mulheres ocupam espaços de menor poder, com menos visibilidade de sua atuação.

Algo bem específico em relação ao campo e à agricultura familiar é que o trabalho doméstico – que é considerado um trabalho reprodutivo, que não é produtivo, ou seja, que não gera renda – é ainda mais invisibilizado no campo do que nos centros urbanos, e muito do trabalho da mulher na agricultura familiar se confunde com o trabalho doméstico.

Ao longo da nossa experiência de trabalho com mulheres e a partir de algumas pesquisas em parceria com a Universidade Federal de Viçosa, vimos que as mulheres atuam e trabalham na propriedade como um todo, nas lavouras, participando da produção daquele produto que chamamos de “carro-chefe” da propriedade. Elas vão para as lavouras, capinam, estão nas colheitas… Nos momentos em que se precisa de mais mão de obra, as mulheres e jovens estão todos lá. Mas, no dia a dia, nem sempre elas estão na produção comercial na mesma intensidade que os homens, justamente porque tem todo o trabalho doméstico que elas precisam assumir sozinhas.

A impressão que dá é que as mulheres são apenas donas de casa, mas isso não é verdade.

Isso é muito forte na zona rural, os homens têm pouquíssimo compromisso com o trabalho reprodutivo: de arrumar a casa, lavar roupa, fazer comida, cuidar dos filhos e dos idosos, dos doentes. Isso é um trabalho que geralmente cabe às mulheres e exclusivamente a elas, e por isso às vezes elas não podem passar o dia todo na lavoura. Aqui na Zona da Mata de Minas Gerais a gente observa que elas acordam mais cedo que o marido, fazem café, o homem vai para a roça e elas continuam trabalhando em casa. Por volta de 10h30, 11h, elas vão para a roça, levam o almoço para o marido e aí ficam um pouco por lá, capinando ou fazendo alguma outra atividade. Mas logo voltam para casa porque há coisas para cuidar, janta para fazer etc.

Então elas vão diariamente à lavoura, mas não estão lá o tempo todo. A impressão que dá é que as mulheres não trabalham nas lavouras, são apenas donas de casa, mas isso não é verdade. Inclusive porque, além de irem para a roça, ao redor da casa elas têm uma produção intensa – como é perto, ali elas conseguem ficar o dia inteiro. Então em geral há uma produção de horta, árvores frutíferas e criações de pequenos animais como galinhas ou porcos, ou seja, itens fundamentais tanto para o consumo das famílias como para a venda dos excedentes.

Percebemos aqui – e isso aconteceu no país inteiro – que quando foi criada a lei obrigando as prefeituras a comprarem 30% da alimentação escolar da agricultura familiar, a estratégia das famílias foi a seguinte: as mulheres que já tinham horta para o consumo da família aumentaram essa produção para vender para as escolas, foram aumentando seus espaços de cultivo e sua produção para se tornarem fornecedoras.

Começamos a perceber que havia uma movimentação econômica nos quintais que simplesmente não era contabilizada. Fizemos uma pesquisa para sistematizar isso usando cadernetas agroecológicas: um material onde as mulheres anotaram cotidianamente o que colhiam, o que ia para o consumo, venda, troca ou doação. Neste último caso, há muitas escolas agrícolas em que, em vez de pagar as mensalidades em dinheiro, as famílias mandam alimentos.

O que é consumido também é fundamental de ser contabilizado. Sempre ouvimos que o que dá dinheiro aqui na região é o café. Mas os dados da nossa sistematização mostraram que isso não é verdade: somente a renda do café não seria suficiente para alimentar a família o ano inteiro, até porque se colhe café uma vez por ano. Enquanto isso, a produção para o autoconsumo é fundamental. Chegamos a ver, em outra sistematização, que até 70% do que é consumido nas famílias vem dos quintais. Então essa produção das mulheres tem uma importância econômica que não não é visibilizada.

Elas têm menos poder que os homens, não têm o mesmo valor, tanto em casa como nos movimentos sociais, nos sindicatos, nas organizações às quais são filiadas. São poucas as mulheres que são presidentes ou diretoras, seu papel é menos valorizado que o dos homens.

Mas encontramos ainda as mesmas desigualdades pelas quais as mulheres passam em outros lugares. Elas têm menos poder que os homens, não têm o mesmo valor, tanto em casa como nos movimentos sociais, nos sindicatos, nas organizações às quais são filiadas. São poucas as mulheres que são presidentes ou diretoras, seu papel é menos valorizado que o dos homens, como também acontece na cidade.

De fato, o mais específico é a invisibilidade do trabalho produtivo delas, porque o quintal é visto como uma extensão da casa. Então elas não recebem assistência técnica específica, não conseguem pegar crédito para financiar o trabalho nos quintais, porque geralmente quem libera tanto a assistência técnica oficial como o crédito não tem olhado os quintais como espaços de produção.

O marido morre, os filhos herdam a terra e a mulher herda uma vaca, uma máquina de costura. 

Há muita violência patrimonial também. As propriedades em geral são da família e às vezes estão no nome da mulher, mas quem decide o que plantar e o que vender são os homens. Elas têm menos autonomia inclusive em relação à venda da propriedade. Em nossas pesquisas, vimos algo que acontecia muito na região Sul: é negado às mulheres o direito à herança. O marido morre, os filhos herdam a terra e a mulher herda uma vaca, uma máquina de costura. Aqui em Minas, muitas vezes quando a propriedade é do pai da mulher e ele morre, o cartório coloca a terra herdada no nome do marido, e não no dela. O machismo institucional colabora para manter essa cultura. Então é o marido quem define tudo, muitas vezes vende a terra e nem consulta a mulher. Essa violência patrimonial é muito forte para as mulheres do campo. Afinal, o meio de produção é um patrimônio da família, então quando os homens têm mais poder nesse espaço de produção, as mulheres estão submetidas a uma grande violência.

Em vários encontros e eventos, a frase “Sem feminismo não há agroecologia” se repete. Qual o sentido disso?

No GT de mulheres da ANA, sistematizamos as experiências de agroecologia protagonizadas por mulheres e percebemos que, na maioria dos casos, a iniciativa para a conversão de produções convencionais para o modelo agroecológico vem das mulheres, a partir de uma preocupação com a alimentação da família. Porque nesse papel de gênero que as mulheres cumprem, elas se preocupam com os alimentos, com os filhos, com o cuidado. E muitas vezes a mulher não quer dar um alimento com veneno para os filhos. Então começa a fazer uma hortinha, às vezes a hortinha começa a fazer sucesso, ela começa a dominar a tecnologia de produzir sem veneno, os vizinhos compram, dali a pouco ela entra em uma rede de comercialização… Quando isso dá certo e os maridos veem a possibilidade de conseguir vender os produtos agroecológicos, então se converte toda a propriedade. Percebemos que em geral a iniciativa vem delas.

Mesmo assim, elas permanecem nesse papel de subordinação, tanto nas propriedades quanto nos movimentos, inclusive no movimento agroecológico. Muitas vezes as lideranças que participam dos eventos e dos grandes encontros são homens. Eles dominam mais o espaço do que as mulheres. Elas ficam ali em casa, na comunidade, no máximo participam das atividades da igreja. É claro que já existem muitas mulheres lideranças, muitas inclusive se sobressaíram como lideranças, mas elas ainda são minoria.

Em um dado momento, percebemos que era preciso fazer esse reconhecimento. Quando se começava a pensar em políticas públicas para a agroecologia, as mulheres não tinham um papel específico. Essa informação da produção econômica dos quintais, por exemplo, deveria ter gerado uma política pública de fomento aos quintais. Mas percebemos que isso fica invisibilizado, e dentro do movimento agroecológico também.

Se não atende às necessidades e anseios de todos os membros da família, se não vê as especificidades das mulheres, se de alguma maneira reforça a exclusão delas, se não olha para o cultivo delas e para as suas especificidades, então não é agroecologia. 

Quando a gente fala que sem feminismo não há agroecologia, pensamos no feminismo também em relação à maneira como se olha o trabalho. Sem valorizar o trabalho da mulher, não se desenvolve a agroecologia plenamente. Porque quando falamos em agroecologia, não estamos falando só dos insumos usados na agricultura. Estamos falando de um projeto que vai além do que se chama de agricultura orgânica, ou seja, da produção de alimentos ‘limpos’. A agroecologia envolve projetos sociais importantes. É importante a estrutura fundiária da agricultura familiar, da agricultura camponesa. A agroecologia não envolve a lógica de concentração de terra, de latifúndios, pelo contrário. E a diversidade da produção é uma das características da agroecologia. Quanto maior a biodiversidade na propriedade, mais interessante para esse modelo, mais equilíbrio há no sistema.

Então, nesse processo, a gente percebeu que se o movimento agroecológico continuasse de olhos fechados para a desigualdade de gênero, para o fato de que há relações diferentes e que as mulheres têm menos poder e menos visibilidade do seu trabalho, então aquilo não favorecia a agroecologia. Não estaria considerando a diversidade das pessoas de uma família. Trabalhamos com agricultura familiar, e muita gente pensa na família como um espaço sem conflitos. E não é verdade, a origem de quase todos os nossos conflitos vem da família. O pai, a mãe, o filho, o idoso, cada um é diferente, quer coisas diferentes, acredita em coisas diferentes. E nesse espaço, os homens adultos em geral são os que têm mais poder.

Por exemplo, quando fomos falar sobre a assistência técnica rural para agroecologia, uma coisa que o GT de mulheres da ANA pleiteou junto ao governo era que 50% dos beneficiários deveriam ser mulheres. Porque é muito comum que a assistência técnica só converse com os homens. Muitas vezes a mulher vai abrir a porta e o técnico pergunta se tem alguém em casa. Elas dificilmente conseguem ser atendidas em suas demandas, que muitas vezes são para a produção de galinhas, de verduras, de frutas, para outra lógica. Aqui na Zona da Mata mineira, em geral a assistência técnica vai para o café, o produto que todos têm. Mas dificilmente chega aos quintais, que são os espaços de domínio das mulheres.

O recado desse lema para o movimento agroecológico é que temos que mudar as lentes para olhar a produção agroecológica. Se não reconhecemos o papel e o trabalho das mulheres, esse modelo de produção não está em equilíbrio. Se não atende às necessidades e anseios de todos os membros da família, se não vê as especificidades das mulheres, se de alguma maneira reforça a exclusão delas, se não olha para o cultivo delas e para as suas especificidades, então não é agroecologia. Pode ser uma produção limpa de alimentos, uma produção orgânica, mas não é agroecológica.

Quando as questões de gênero começaram a ser uma preocupação desses movimentos sociais?

Os movimentos do campo no geral pensam muito isso a partir dos anos 1990. Na época a Contag, por exemplo, fez uma grande campanha de documentação das mulheres do campo – porque muitas não tinham nem documentos pessoais – e forçaram os sindicatos a ter no mínimo 30% de mulheres. Foram maneiras de se reforçar a base e pensar em mulheres lideranças. Também se organizaram as funções das mulheres nos sindicatos. No MST essa preocupação surge também quase no seu princípio, logo se criou um coletivo de gênero no movimento para discutir essas questões. Também na ANA, dois anos após sua criação se formou o GT de mulheres. A Contag hoje tem uma estrutura que inclusive organiza a Marcha das Margaridas, tem uma coordenação nacional de mulheres composta por todas as federações estaduais.

É fácil perceber, quando se está no campo, que as mulheres são mais envolvidas do que os homens na agroecologia

A questão é que esses espaços existem, o enfrentamento existe, mas isso nunca se tornou tranquilo em nenhum desses movimentos. Embora estejamos há muito tempo lutando, não dá para dizer ainda que estamos em condição de igualdade. Tem um enfrentamento enorme que precisa ser feito no caminho.

Primeiro tem a própria capacidade da mulher de estar em uma reunião e interferir, porque o espaço público é negado às mulheres desde a infância. Quando se coloca uma reunião com homens e mulheres, se as mulheres não têm muito a experiência da fala, em geral elas se calam. Há o desafio de sair de casa e deixar os filhos, de o marido permitir que elas saiam. Porque se uma mulher sai para ir a uma reunião, isso significa que alguém tem que fazer a comida no lugar dela. É um processo árduo que as mulheres precisam cumprir. Isso sem falar no próprio preconceito dos outros parceiros nos movimentos, de achar que mesmo nas reuniões as mulheres precisam cuidar mais da organização, da limpeza, da comida, do espaço das reuniões, mas quem faz a pauta política em geral são os homens. É como se elas tivessem mesmo um papel subalterno nos movimentos ainda, via de regra. Esse debate existe há muito tempo, e o avanço é lento. Mas se avançou muito, e a própria Marcha das Margaridas mostra isso: é uma mobilização nacional, na última reunimos 70 mil mulheres em Brasília e na próxima o número deve ser perto disso.

Na ANA, percebemos o quanto a inserção do Grupo de Trabalho transformou os Encontros Nacionais. No primeiro ENA [Encontro Nacional de Agroecologia] havia só 30% de mulheres. Pensamos: se a participação no ENA se dá a partir das experiências, e nas experiências há homens e mulheres, então não é justo ter menos mulheres do que homens. No segundo já determinamos que haveria um mínimo de 50%, e conseguimos. Do terceiro em diante, vemos que o número de mulheres supera o de homens.

Para a gente não é um espanto. Na verdade, é fácil perceber, quando se está no campo, que as mulheres são mais envolvidas do que os homens na agroecologia. Fora que há muitas famílias só de mulheres. Quando o homem morre ou o casal se separa, muitas vezes a mulher continua ali tomando conta da casa. O inverso é raro: em geral o homem se casa de novo, arruma outra mulher para ‘cuidar dele’, ou abandona o campo. Além disso, há muitas mulheres atuando sozinhas nas zonas onde há migrações para o agronegócio, para colheitas sazonais. Aqui no Vale do Jequitinhonha há municípios onde praticamente só há mulheres. Os homens saem e ficam quase um ano na colheita de cana. Isso é uma realidade: há mais mulheres na agricultura familiar e camponesa. Não temos um censo que demonstre isso, mas é fácil perceber pela observação, principalmente onde há êxodos sazonais ligados ao agronegócio.

Existem muitos movimentos de mulheres camponesas pelo país afora. Você pode falar de alguns deles?

Eles existem há muito tempo. Temos nacionalmente o Movimento de Mulheres Camponesas e, anterior a ele, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais. No Sul, ele deu origem ao
Movimento de Mulheres Camponesas; no Nordeste, ao Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste. E há vários outros regionais, como o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco. Há ainda organizações de mulheres indígenas, enfim, há muitas dessas organizações.

Isso também é uma novidade, a agricultura fazer parte da pauta do movimento feminista

Além disso, é importante que a partir do ano 2000 uma parte do movimento feminista – o que a gente chama de feminismo popular, que está na rua – começou a trazer o tema do feminismo para as camponesas. Temos hoje muitas mulheres rurais na Marcha Mundial das Mulheres. Muitas mulheres do campo também são militantes da Marcha, estão construindo a Marcha em seus locais. Isso também é uma novidade, a agricultura fazer parte da pauta do movimento feminista. Isso nos aproximou muito. Quando criamos o GT de mulheres da ANA, já chamamos o movimento feminista que dialogava sobre modelos de produção, agroecologia, soberania alimentar e organizações rurais. Essa aproximação é muito importante.

Além das organizações de mulheres no campo, temos muito mais camponesas organizadas nos movimentos feministas. Por exemplo, há ações da Marcha Mundial das Mulheres que são exclusivamente no campo. Na última Marcha Mundial das Mulheres, fizemos uma no interior de Minas, totalmente protagonizada pelas mulheres rurais.

Os dados sobre violência doméstica do Ligue 180 de 2016 mostram que há uma minoria das ligações vindo de áreas rurais, cerca de 10%. Mas a gente sabe que há subnotificação… É possível ter ideia de qual seria realmente o tamanho desse problema no campo?

Há uma subnotificação enorme dos casos de violência contra mulheres, e mais ainda no campo. O Ligue 180, por exemplo, não faz muito sentido no campo, já que a maioria não tem acesso nem a telefone. De um tempo para cá, as pessoas até têm celular, mas muitas vezes não funciona em casa, o celular é para quando se vai à cidade. Já as delegacias de mulheres são poucas mesmo nos centros urbanos… As mulheres muitas vezes se inibem de ir à delegacia conversar com homens. E, no interior, isso se complica ainda mais, porque todo mundo se conhece. No meio urbano a mulher vai à delegacia, mas o homem que a atende não necessariamente conhece o seu marido, não joga pelada com ele, nem toma cachaça com ele no fim de semana. No campo, sim. Então isso é ainda mais difícil de denunciar.

As mulheres do campo estão mais vulneráveis a esse tipo de violência? Por quê?

As casas ficam mais afastadas umas das outras, algumas mulheres vivem quase isoladas e não têm a quem recorrer. E elas estão ainda mais desamparadas do que as mulheres da cidade quando sofrem violência doméstica. As estimativas são feitas a partir das notificações, mas a zona rural certamente está muito prejudicada na estatística, porque as mulheres não notificam, faltam equipamentos públicos. Além disso, se a mulher do campo denuncia, depois vai para onde? Mesmo que faça uma medida protetiva contra o homem, quem vai fiscalizar isso? Se mesmo na cidade a fiscalização é difícil, imagina em locais isolados?

No meio urbano a mulher vai à delegacia, mas o homem que a atende não necessariamente conhece o seu marido, não joga pelada com ele, nem toma cachaça com ele no fim de semana. No campo, sim.

No governo Dilma a Diretoria de Mulheres chegou a criar um sistema de unidades móveis, com ônibus que percorriam as comunidades, tanto para denúncias de violência como para o atendimento psicológico e médico. Mas eram poucos ônibus. E agora, depois do golpe, isso foi completamente abandonado. Na verdade nunca se criou um aparato ou uma estrutura para combater a violência contra as mulheres do campo. Se o aparato para as mulheres urbanas já é insignificante, para as rurais ele é ainda pior.

Uma das portas de entrada para o acolhimento de mulheres em situação de violência doméstica são os serviços de saúde. O ‘campo’ não é algo homogêneo, mas como é essa oferta em geral?

Sim, isso é outro problema, não há posto de saúde, não há hospitais, e isso é grave quando se fala de problemas de saúde em geral. As camponesas têm muita dificuldade de ir na cidade para buscar atendimento. Até porque é preciso ir duas vezes na unidade de saúde, uma para agendar o atendimento, outra para ser atendida. Imagina fazer isso quando se mora a 40 quilômetros do posto de saúde. Se uma mulher entrar em um trabalho de parto complicado na zona rural, e se for uma época de chuvas, é bem possível que ela venha a morrer, porque não há equipamentos públicos de saúde na zona rural e não há facilidade no acesos à cidade, em geral não há transporte das prefeituras.

É difícil, por exemplo, fazer papanicolau. A verdade é que muitas mulheres do campo que já têm dois, três filhos, nunca fizeram um exame preventivo.

As mulheres têm alguns problemas de saúde específicos da vida no campo também. No agronegócio, elas frequentemente são ainda mais atingidas pela contaminação com agrotóxicos. Porque esses insumos podem ser aplicados usando-se equipamentos de proteção. Mas as mulheres, quando vão lavar as roupas contaminadas dos maridos, não usam equipamento algum.

A verdade é que muitas mulheres do campo que já têm dois, três filhos, nunca fizeram um exame preventivo

Outra questão de saúde que as atinge muito é a depressão. Tanto pelo efeitos dos agrotóxicos nos organismos – porque vários estudos mostram essa relação – como também porque as mais velhas deixam de ser valorizadas. Muitas dessas mulheres são valorizadas enquanto mães. Quando chegam aos 50 anos, com os filhos já casados e fora de casa, muitas vezes perdem o sentido da vida. Não há lazer, não há nada para a terceira idade, e nenhuma importância é conferida á mulher quando ela é considerada velha. No período reprodutivo, ela ainda tem algum valor como mãe, mas depois perde a serventia e o pouco poder que tinha. É comum encontrar mulheres do campo em depressão. E se nem para as urbanas há atendimento psicológico adequado, no campo há ainda menos. Estou falando a partir da observação, não tenho esses dados, mas é muito comum , trabalhando com programas de formação, encontrar boa parte das mulheres em idade madura relatando esse tipo de problema.

Agentes comunitários de saúde são importantes para identificar certos problemas. Eles chegam nessas casas?

Não. Chegam nas roças que ficam mais perto das cidades, ou nas zonas rurais mais estruturadas que têm uma sede e onde, às vezes, há postos de Saúde da Família. Em municípios muito extensos, como os da região Norte, muitas vezes as agentes comunitários não têm nem estrutura para chegar.

Como os movimentos de mulheres do campo dialogam com aquelas agricultoras que ainda não estão organizadas? Quais são as estratégias para atrair outras mulheres e disseminar as pautas?

Em geral, isso vem com a proximidade entre mulheres. A mulher vem e começa a envolver as vizinhas, as familiares, seu grupo de relações. Algumas mulheres são lideranças em suas igrejas, ministras de eucaristias, estão nas organizações das comunidades eclesiais de base, e têm capacidade de trazer outras mulheres para o movimento. A aproximação então vem em geral por aí, por meio de outras mulheres que passam pelos mesmos problemas que elas. Os problemas são comuns, são eles que aproximam as mulheres.

Que avanços já aconteceram em termos de políticas públicas?

Há algumas políticas que vêm desde a Constituição de 1988, como o direito à aposentadoria rural e ao salário maternidade, coisas que as mulheres do campo não tinham e adquiriram a partir de então. Em 2003 se cria o Pronaf Mulher [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Mulher], mas ele não atendeu realmente às expectativas das mulheres em relação à concessão de crédito. Porque há uma lógica de financiamento segundo a qual cada família tem uma determinada capacidade de endividamento que não pode ser ultrapassada. Então, se o marido já pegou crédito no Pronaf, não sobra nada para a mulher pegar. E como as relações não são resolvidas de forma justa, temos que os homens pegam muito mais crédito via Pronaf do que as mulheres. Na prática, pouco se acessou o Pronaf Mulher.

Houve também o programa Organização Produtiva das Mulheres Rurais, que era voltado para o financiamento e a capacitação de mulheres. Mas isso acabou com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário [no governo Temer].

Mas, na verdade, o que de fato trouxe impactos grandes para as mulheres não foram políticas criadas especificamente para elas, e sim o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003 para favorecer a compra direta pelo governo de produtos de agricultores familiares] e a restruturação do PNAE [o Programa Nacional de Alimentação Escolar: desde 2009, 30% dos recursos gastos pelas prefeituras com alimentação escolar precisam ir para a agricultura familiar].

O PAA favoreceu muito as mulheres que, como eu disse, já produziam nas hortas. Há estudos mostrando que as mulheres são maioria no PAA. E no PNAE, do mesmo modo, percebemos que são as mulheres as mais beneficiadas, por conta dos quintais.

Os programas que apoiavam mulheres e geravam autonomia para elas foram sucateados ou extintos

Hoje, o PAA não tem mais verba: quando olhamos o orçamento, vemos que não tem mais recurso para o programa. Ou seja, não acabaram com o programa em si, mas com os recursos, sim. Já a alimentação escolar fica no âmbito das prefeituras. O que percebemos em alguns municípios, onde os prefeitos são alinhados com o governo federal, é que eles não estão mais cumprindo a lei, e não tem mais quem fiscalize isso, pois a fiscalização era feita pelo MDA. E o Pronaf Mulher ainda existe, mas o próprio Pronaf [geral] teve seus recursos diminuídos. São muitas perdas.

A proposta de reforma da previdência do governo é, ao menos até agora, especialmente ruim para trabalhadores e trabalhadoras rurais...

Sim, é uma reforma que vai ser péssima para as mulheres rurais, que vão trabalhar mais e correm o risco de receber menos do que um salário mínimo.

Que outras ameaças estão no horizonte?

O Escola sem Partido é uma grande ameaça, pela lógica de não se poder mais discutir gênero na escola. Este governo não tem interesse de fortalecer mulheres. Ao contrário, nega isso, não reconhece as desigualdades. Os programas que apoiavam mulheres e geravam autonomia para elas foram sucateados ou extintos, e a perspectiva é dura.

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