Saúde digital: não é tarde para impedir novo colonialismo

Brasil dispõe de iniciativas inovadoras, centros de pesquisa robustos e um governo favorável. Mas a necessária Indústria 4.0 ainda parece distante – e sem a ação do Estado, continuaremos meros fornecedores dados para as Big Techs

Imagem criada por meio de inteligência artificial
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Título original: A transformação Digital no SUS depende de uma Indústria 4.0 nacional

O tema da Saúde Digital no Brasil ganhou forte impulso em 2023. As iniciativas de diversos centros de pesquisas, universidades e esferas do poder executivo dão um panorama do atual quadro de desenvolvimento tecnológico deste setor que integra o subsistema de informação e conectividade do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). Contudo, ainda não há uma Indústria 4.0 nacional capaz de atender às demandas do Sistema Único de Saúde, tornando o processo desigual e dependente, exatamente como visto durante a pandemia de covid-19 em outros subsistemas do CEIS.

A própria ministra Nísia Trindade já deu pistas de como devem ser encaradas as políticas de Saúde Digital, área eleita como um projeto estratégico em conjunto com o próprio CEIS, ao afirmar publicamente que um dos objetivos é que a inovação tenha como fim a superação das graves desigualdades e que ela seja direcionada pelos princípios do SUS. Além da soberania e do desenvolvimento econômico, o presidente Lula manifestou, durante o lançamento da nova estratégia do CEIS em 26/09, o desejo de levar as inovações em Saúde desenvolvidas no Brasil a outros países do sul global. Porém, para atingir estes objetivos será preciso avançar para além do financiamento de iniciativas isoladas de centros de pesquisas e secretarias de saúde.

Urge portanto a criação de uma Indústria 4.0 da Saúde, envolvendo desde o acesso à internet até a criação de modelos de inteligência artificial focados em doenças e populações negligenciadas, passando pela produção de dispositivos vestíveis, biossensores, bancos de dados e supercomputadores. Sem levar em conta a complexidade das forças implicadas no subsistema de informação e conectividade, a consequência lógica será vivenciarmos uma industrialização 4.0 dependente ou até mesmo um colonialismo digital, fenômeno no qual aos países da Periferia cabe apenas a função de produzir dados para processamento por sistemas das Big Techs, numa nova dinâmica da Divisão Internacional do Trabalho (DIT), atualizando a matéria-prima da mineração/agropecuária para o dado pessoal.

Se a digitalização da Saúde no Brasil não englobar o protagonismo do Estado, corremos o risco de acentuar as desigualdades entre os sistemas público e privado, tendo um “SUS com pés de barro”, conforme já alertaram Carlos Gadelha e José Gomes Temporão. O subsistema de informação e conectividade do CEIS envolve uma série de indústrias de ponta, como a aeroespacial (satélites), de telecomunicações (internet), de hardware (IoT) e de semicondutores (supercomputadores), palco de múltiplas disputas geopolíticas entre China e Estados Unidos: chips, 5G, robôs, smartphones e aplicativos.

Paralelamente, as Big Techs passaram a investir pesado em Inteligência Artificial, promovendo uma verdadeira corrida tecnológica financiada por um volumoso investimento privado. O resultado é a rápida evolução das aplicações de IA, inclusive na área da Saúde. Uma amostra recente foi a divulgação do Med-PaLM do Google, uma inteligência artificial multimodal que processa diversos tipos de informações clínicas dentro da modalidade do Software as a Medical Device (SaMD). Por outro lado, o Brasil ainda engatinha na 4ª Revolução Industrial e pode ver as assimetrias tecnológicas se acentuarem cada vez mais, caso as políticas públicas de fomento não acompanhem a velocidade da inovação.

Para criarmos uma Indústria 4.0 da Saúde no Brasil com potencial de penetração mundial é preciso aprender com os erros e acertos do passado. Um bom exemplo das duas últimas décadas (para o bem e para o mal) foi o desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), posteriormente exportado a países da América Latina, África e Ásia. Em estudo desde meados dos anos 90, somente em 2003 foram criadas, pelo Decreto 4.901, comitês e câmaras temáticas, reunindo representantes de empresas e universidades, sob a liderança do governo, para a definição de um padrão tecnológico que melhor atendesse às necessidades do Brasil.

Naquele momento, havia a possibilidade da criação de um modelo 100% nacional, mas optou-se pelo acordo com o Japão para a melhoria de seu sistema, tendo a transferência tecnológica como contrapartida, além da dispensa do pagamento de royalties. Guardadas as devidas proporções, na Saúde vivemos situação similar com as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), que viabilizaram a produção local de vacinas e até mesmo a exportação para outras nações.

O Estado precisa conduzir os processos de desenvolvimento tecnológico através de políticas públicas de fomento, mas também de regulação. Neste sentido, os instrumentos legais atuariam a fim de garantir que as diretrizes do SUS pautem a transformação digital da Saúde e que os direitos civis e humanos sejam assegurados em questões como privacidade, vieses, datificação, dever de cuidado e princípio da precaução, por exemplo, numa interseção com agendas atuais, tais quais a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o Projeto de Lei n° 2338/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial.

No caso da TV Digital, os centros de pesquisa brasileiros foram organizados de tal forma que cada um conduzisse o desenvolvimento de uma parte específica do sistema. Para se ter ideia, somente a interatividade foi dividida em dois segmentos: o laboratório TeleMídia da PUC-Rio ficou responsável pelo Ginga-NCL e o Lavid da UFPB tocou o Ginga-J.

Pautar o desenvolvimento da Saúde Digital apenas com base nos interesses do mercado não garante o atendimento das necessidades da população, nem mesmo dentro de um pretenso pensamento de solucionismo tecnológico capitaneado por healthtechs. O processo de digitalização do Rádio no Brasil, por exemplo, foi paralisado devido à falta de interesse comercial das empresas privadas, apesar dos grande benefícios que a digitalização traria com o melhor uso do espectro eletromagnético, os serviços de interatividade e o surgimento de novas emissoras, situação vista como prejudicial ao atual modelo de negócios oligopolizado e com baixa concorrência.

Mesmo o Estado assumindo a liderança na indução da Indústria 4.0 na Saúde, é fundamental reafirmar a importância da participação social neste processo. Envolver usuários do SUS nas discussões da transformação digital é condição sine qua non a fim de construir serviços e produtos que efetivamente atendam aos interesses da sociedade. Além disso, as ferramentas da Saúde Digital devem ser pautadas pela dinâmica do software livre, com código aberto, transparência/explicabilidade e forte participação da comunidade no aprimoramento da tecnologia. E não é preciso reinventar a roda. Muitos dos sistemas utilizados pelas administrações direta e indireta nos últimos 15 anos foram desenvolvidos colaborativamente através das comunidades do Portal do Software Público.

Como defende o pesquisador Marcelo Fornazin, é imprescindível construir a digitalização da saúde a partir dos princípios do SUS. E conforme indicado no histórico discurso de Sergio Arouca na 8° Conferência Nacional de Saúde, em 1986: “Temos que aprender a viver com a diversidade, com o coletivo. E será assim que vamos construir nosso projeto, sabendo que, embora muitas vezes possamos errar, não vamos errar nunca o caminho que aponta para a construção de uma sociedade brasileira mais justa”.

A falta de participação da sociedade civil organizada foi justamente o ponto fraco que resultou no baixo aproveitamento das potencialidades tecnológicas da TV Digital no Brasil. Recursos como a interatividade e a multiprogramação acabaram subutilizados por pressão do setor privado. Não podemos repetir os mesmos erros na Saúde Digital.

O Simpósio promovido pela recém-criada Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde (SEIDIGI) mostrou que há uma razoável quantidade de experiências espalhadas pelo país que ainda carecem de uma articulação a fim de garantir não apenas o fortalecimento individual de cada centro de pesquisa, mas sobretudo a estruturação de uma política estratégica de desenvolvimento da Indústria 4.0 na Saúde, que ganhe escala e capacidade produtiva para reduzir as vulnerabilidades do SUS, assegurar a soberania nacional e ampliar o acesso à Saúde, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

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