Saúde digital: porta aberta para nova colonização?

Crescem as preocupações com acordos em que países do Sul submetem-se a corporações globais, ao digitalizar seus sistemas públicos. No Brasil, é preciso examinar um compromisso firmado pelo Ministério da Saúde com o Reino Unido, em 2020

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A digitalização dos sistemas de saúde pública e a virada transformadora trazida pelas tecnologias digitais estão cada vez mais presentes na vida quotidiana. Esse fenômeno inclui a informatização de prontuários médicos, implementação de mecanismos digitais de administração hospitalar, utilização de equipamentos cirúrgicos digitais e soluções de diagnóstico digital. Um aspecto pouco observado desse cenário digital diz respeito às orientações políticas que abrem caminho para a digitalização dos serviços públicos em meio a mudanças importantes na estrutura estatal.

Em um artigo publicado em 2023 em que analisavam a saúde digital no Sistema Único de Saúde (SUS), cinco pesquisadores brasileiros identificaram como um discurso “empreendedor” dos modelos de negócios foi incorporado à Estratégia de Saúde Digital para o Brasil. Essa estratégia, publicada em 2020 pelo Ministério da Saúde (MS) — portanto, ainda sob o desmonte bolsonarista — levaria à plataformização do Estado, beneficiando um mercado de dados e disseminando infraestrutura tecnológica privada.

Questões semelhantes foram observadas no Reino Unido por Rachel Faulkner-Gurstein e David Wyatt, que fornecem perspectivas sobre como os formuladores de políticas tornaram o Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) parte de um ecossistema de pesquisa voltado para o apoio de grandes empresas. Através de uma abordagem mercadológica, os dados do NHS poderiam ser franqueados para serem usados em ensaios clínicos para a indústria farmacêutica. Essa direção política para “abrir o NHS” foi sedimentada em 2011.

Em janeiro de 2020, o MS brasileiro e o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido firmaram um acordo para cooperação em saúde digital. Portanto, vale a pena trazer algumas reflexões sobre os discursos e práticas nessa área, em ambos os países.

O Estado como provedor de dados para empresas

Quando a digitalização dos serviços públicos se dá abrindo brechas para “parcerias” com o setor privado, o Estado tende a se desresponsabilizar. As decisões de políticas públicas são tomadas de maneira a isentar a administração pública de exigir serviços específicos e predeterminados.

Mariana Mazzucato e Rosie Collington, em seu livro The Big Con, sugerem que os governos foram incentivados a terceirizar a digitalização do setor público, enquanto consultorias fariam a operacionalização de diretrizes fornecidas por organizações internacionais dominadas principalmente por países “desenvolvidos”.

O acordo assinado entre o Ministério da Saúde e o Reino Unido estabeleceu a consultoria McKinsey como “parceira implementadora”. Uma retórica gerencial tecnossolucionista foi observada em documentos oficiais brasileiros e internacionais, como relatórios produzidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De fato, o MS confirmou que o Reino Unido teve influência na formulação da Estratégia de Saúde Digital para o Brasil, mas ainda não há informações públicas referentes aos detalhes dessa parceria.

Portanto, a privatização dos serviços de saúde pública não é apenas uma questão brasileira: considerando os processos em curso envolvendo o NHS, é possível observar que há uma considerável história de gastos de recursos públicos em consultorias terceirizadas.

E quanto aos riscos do compartilhamento de dados?

Atualmente, a Amazon Web Services armazena dados de saúde pública brasileiros sem evidências de que age em conformidade com a legislação nacional de proteção de dados. Já a Palantir (uma empresa vinculada à prestação duvidosa de serviços de inteligência) ficará responsável por essa área no Reino Unido. Essas políticas afetam populações inteiras, pois processam dados sensíveis de saúde. De posse destes, as empresas de tecnologia internacionais tendem a se beneficiar economicamente.

O caso da Palantir é ainda mais grave porque a corporação dá apoio institucional aberto a Israel no massacre contra os palestinos – conforme denunciaram no final de 2023 trabalhadores britânicos de Saúde. Esse fato não pode ser separado do uso de grandes plataformas privadas para mobilizar ferramentas de inteligência empresarial para a perseguição de grupos já estigmatizados. No Brasil, um projeto em andamento em São Paulo pretende fornecer a plataformização de serviços públicos municipais. Sob a liderança da secretaria de segurança, o polêmico Smart Sampa sugere monitorar pessoas adotando, entre outros critérios, sua cor de pele.

Alguns estudos referem-se ao “colonialismo de dados” e ao “colonialismo digital” para mencionar essa tendência de tornar algumas regiões do mundo submissas a poucos países, no âmbito dos mercados digitais. Lembrando da questão posta por Roswhita Scholz quanto a avaliações frágeis que analizam a colonização como um fenômeno transhistórico, a tendência imperialista expansiva do capital deveria ser reconhecida nesse movimento de estabelecimento de uma agenda de digitalização que, internacionalizada, reproduzi assimetrias.

Assim como a influência internacional sobre os países periféricos quando se trata de projetos enormes de digitalização, a conexão entre saúde e segurança também é uma questão que deve ser avaliada com cautela, em especial quando se busca uma aliança entre mobilização teórica e política.

Como os movimentos sociais estão enfrentando essas iniciativas?

A participação social é um princípio do SUS, e espera-se que os gestores, trabalhadores e usuários discutam as estratégias do sistemas de saúde em Conselhos e Conferências de saúde.  A participação social está sendo reconfigurada com base em uma cultura digital de “análise comportamental”, que qualifica os cidadãos como consumidores digitais que fornecem avaliações de “produtos” colocados à disposição.

Mas os movimentos sociais que defendem os direitos digitais desafiam essa abordagem comportamental das estratégias de saúde digital. A Coalizão Direitos na Rede fez campanha contra o compartilhamento massivo de dados e enfatizou a necessidade de salvaguardas para a proteção de dados pessoais. Além disso, diversas organizações da sociedade civil convocaram uma Conferência Livre Nacional de Saúde Digital para elaborar propostas para a Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho de 2023. No Reino Unido, a Foxglove levantou-se contra o contrato da Palantir para operar uma “plataforma de dados” do NHS, apontando riscos de compartilhamento de informações e falta de debate público.

Até agora, nota-se uma falta de transparência em relação aos acordos políticos que levaram à cooperação entre Brasil e Reino Unido. Ainda estamos lutando para compreender exatamente como a influência britânica afeta a estratégia de saúde digital brasileira. Este é certamente um tópico para um próximo texto.

*Publicado originalmente no site da Society for Social Studies of Science. Tradução: Gabriela Leite

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