Os dilemas da transformação digital da saúde

Simpósio organizado pela Secretaria de Saúde Digital do Ministério da Saúde chega ao fim sem abordar os principais entraves da questão – em especial as preocupantes relações com o setor privado. Haverá espaços para debate real?

Créditos: Medical News Today
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O 1º Simpósio Transformação Digital no SUS terminou nesta terça-feira (3/10) e deixa diversos questionamentos a respeito de um processo que está no começo. A digitalização da saúde já é um fato e, como se pode concluir dos debates organizados pela Secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, a questão é saber se o Estado dará conta de fazer essa transição histórica à altura das necessidades do público e qual sentido se dará ao uso das novas tecnologias.

“É um simpósio que vem em muito boa hora. Nesse sentido, eu parabenizo a iniciativa da secretária Ana Estela Haddad e todos aqueles envolvidos”, declarou ao Outra Saúde o sociólogo Leandro Modolo, cofundador da Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA). Ele continua: “Poderia ter acontecido antes e deve acontecer mais vezes, não nas características de um simpósio, mas nas características de um fórum permanente, com a participação não só dos técnicos e dos expertos, mas também do povo, das classes subalternizadas e, sobretudo, daqueles que não participam nem do processo de concepção e nem de desenvolvimento e implementação dessas tecnologias, que são os cidadãos em geral. Inclusive os profissionais de saúde que não estão nos altos escalões de governo e de grandes empresas ou não são médicos, como psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, agentes comunitários de saúde etc”.

No geral, os palestrantes defenderam o avanço na telessaúde como parte indispensável do esforço de universalização do SUS e combate às desigualdades no acesso à saúde. No entanto, numa realidade ainda acossada pela racionalidade dos mercados, políticas de austeridade e assédio privatista, o caminho para a garantia da digitalização da saúde em nome da redução das desigualdades é mais acidentado do que parece.

Como destacam ambas as fontes ouvidas pela nossa reportagem, a própria participação dos palestrantes estrangeiros, além do último painel de debate, fortalecem os questionamentos.

“A última mesa trouxe algumas perguntas-chave dos conflitos que estão ali na saúde digital e passaram muito em branco durante o evento. Os dois dias do evento foram muito focados em como criar um negócio a partir da saúde digital – coisa que sabemos fazer parte da proposta de governo e também é um inegável campo em disputa. De fato, aqueles que defendem um SUS totalmente público estamos em minoria”, analisou Raquel Rachid, pesquisadora do projeto Implicações das Tecnologias Digitais para o Sistema de Saúde, da Iniciativa Saúde Amanhã/Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030.

Raquel se refere, em especial, ao Painel 6 do evento (que pode ser assistido na íntegra aqui), denominado Proteção de dados pessoais de saúde; regulamentação da inteligência artificial e seus reflexos na saúde digital. Trata-se da grande mina de ouro desejada pelo setor privado, como deixou claro o projeto Open Health apresentado pelo ex-ministro da Saúde, o bolsonarista Marcelo Queiroga, que visava entregar de presente ao mercado os dados de saúde de todos os brasileiros.

“O que vi no simpósio foi basicamente o reforço de um projeto de saúde digital à medida que ela seja útil para quem está querendo ganhar dinheiro. Zero compromisso com o fortalecimento do sistema público pela via de ferramentais públicos e muita falta de transparência sobre as coisas que estão afetando as nossas vidas”, completou a pesquisadora. Já o Open Health, projeto bolsonarista a princípio abandonado, continua a ameaçar o SUS: “Haverá uma audiência pública na segunda-feira e está rolando uma tentativa de retomar o Open Health via portabilidade dos planos, um negócio que estava dentro do plano do Queiroga. De novo, há muita opacidade, uma tentativa de censurar a participação”, denunciou ela.

Alguns dos convidados estrangeiros demonstraram a validade a tese de Raquel. Rifat Atun, pesquisador da Universidade de Harvard, explicitou, em sua fala, a ideia de que a prestação de serviços de saúde digitalizados será protagonizada pelo setor privado. “Existem inúmeras oportunidades para ‘inovação transformadora’ na prestação de cuidados de saúde que combina uma utilização inovadora de tecnologia, recursos humanos, análise de dados, sistemas de pagamento e modelos de negócio”.

Em artigo de 2016, Atun menciona casos de sucesso de digitalização da saúde, todos eles com participação do grande capital, inclusive na forma de filantropia. Suas teses de economia de gastos e otimização de dados a partir de parcerias com o setor privado foi reiterada em sua palestra, ocorrida na segunda-feira, na abertura do Simpósio.

O caso Palantir

Não só as big techs e seus monopólios se interessam em entrar no ramo, mas outras empresas já experientes em colher e armazenar dados também estão no jogo. Ilustrativo dos desafios que virão, a situação do NHS, o sistema público de saúde inglês, já corrobora a preocupação dos pesquisadores. A Palantir, empresa de tecnologia em segurança e espionagem dos EUA, cujos sistemas servem a governos como o de Israel em sua política de controle dos territórios e populações palestinos, é o exemplo mais eloquente.

Envolvida em diversas polêmicas a respeito do monitoramento de dados, é cada vez mais questionada pela sociedade. Seu dono, Peter Thiel, é um empresário excêntrico e sedento por liderar transformações tecnológicas, além de ideologicamente representante da ultradireita contemporânea e seu liberalismo econômico sem freios, como já detalhou Outras Palavras. Mesmo setores conservadores têm fortes ressalvas à empresa, que terminou por abocanhar um contrato de 480 milhões de libras com o NHS para gerenciar dados dos usuários por sete anos.

Mesmo no SUS, como explicou Raquel Rachid, já há a participação, ainda que desconhecida do público, de prestadoras privadas de serviços digitais. “Durante o simpósio, não se tocou no ponto da plataforma que usamos aqui no Brasil, da Amazon, isso é um assunto muito sério e o que o NHS está fazendo é, justamente, colocar na mão de um provedor privado uma plataforma que vai interoperar os sistemas ingleses, uma plataforma oriunda da lógica da segurança. Temos o exemplo da Smart Sampa, que também sai da segurança pública e promete integrar a saúde. Estamos falando de um fenômeno que está se reproduzindo de algumas maneiras e não é só casualidade, tem um certo direcionamento, e vemos que alguns casos são tratados como segredos de Estado”.

Questionado no seminário sobre tal questão, Masood Ahmed, diretor do NHS, mostrou certo constrangimento. “Precisamos falar sobre como coletar, guardar e usar dados da melhor forma. E também alinhar as informações em todos os níveis de atenção, colocar na direção certa a imensa massa de informações que possuímos. Palantir é um assunto altamente político, mas precisamos observar que temos uma oportunidade de aprender a organizar e usar dados em saúde”, admitiu.

Aparentemente, não há esforços estatais para avançar com as instituições no processo de digitalização de seus sistemas de saúde. Empresas privadas de outros setores estão na frente e, se nada for feito, deverão se apresentar como única solução possível para a realização da chamada transformação digital. Sob nobres argumentos de universalização e qualificação os serviços, obterão uma precisa base de dados que poderá servir a diversos propósitos não visíveis. A dita “personalização do atendimento” é outro advento que deverá ser usado para validar esta sorrateira privatização de dados pessoais.

“Podemos colher dados em todas as etapas do cuidado. A personalização do atendimento é algo muito motivante num país com as características do Brasil”, afirmou Rifat Atun. Ainda apegado à ideia de saúde pública, o representante do NHS tenta indicar caminhos para evitar o domínio mercantil deste promissor nicho. “Os cuidados clínicos podem se desenvolver com participação e controle social, podem significar uma nova política de cuidados, com valorização da mão de obra, não apenas dos médicos”, disse Ahmed.

Participação social

Como destacou Leandro Modolo, para os defensores do caráter estritamente público dos serviços públicos, não há caminho possível sem a conscientização maciça de profissionais e usuários de saúde e, em especial, a construção de espaços permanentes de participação política também neste âmbito.

“Acredito que devemos lançar um fórum permanente no qual as questões que essas novas tecnologias suscitam e suscitarão cada vez mais, como problemas e dilemas éticos, políticos, sociais, culturais, sejam debatidos. Espaços onde sejam construídas novas sínteses, reformuladas, analisadas etc. Essa é a primeira coisa. O simpósio talvez tenha demorado para acontecer. Que venham novos simpósios e fóruns, ainda mais arrojados, mais participativos, mais ampliados e com mais opiniões”.

Não se trata, como já defendeu em artigo recente, de bloquear os caminhos para a digitalização da saúde. Trata-se de desenvolver conceitos a seu respeito, em consonância com as ideias centrais de promoção da democracia. É necessário refletir e criar teorias a respeito da plataformização da saúde.

“Temos criado inúmeras tecnologias ou inúmeros artefatos extremamente inovadores em diversos quesitos, mas uma coisa é certa: a velocidade com que nós temos criado essas tecnologias e disponibilizado ao uso das populações, dos cidadãos, tem sido muito rápida frente às nossas capacidades de reflexão, de imaginação, de análise, de crítica etc. Lidar com essa desfasagem é um desafio brutal”, resumiu Modolo.

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