Psiquiatria: crise específica ou crise generalizada?
Permanece importante questionar a função normalizadora desta especialidade médica. Mas há fatores novos: o avanço do discurso de extrema-direita abre espaço a uma leitura diluída de Franco Basaglia – que ignora a força de sua crítica não apenas aos manicômios, mas à própria psiquiatria
Publicado 01/09/2025 às 10:33 - Atualizado 01/09/2025 às 10:36

O texto que você lê abaixo é o primeiro capítulo do livro Ética da dissidência, do psiquiatra italiano e defensor das reformas antimanicomiais Benedetto Saraceno. A obra, organizada pela Hucitec Editora, parceira de Outra Saúde, e traduzida por Cláudia Braga, uma de nossas colunistas, seleciona alguns dos textos recentes do autor. Saraceno “é um dos que mais tem contribuído, nas últimas décadas, para a transformação dos cuidados de saúde mental a nível mundial”, e também um importante interlocutor de figuras ligadas à Reforma Psiquiátrica brasileira. No trecho que publicamos abaixo, ele retoma o pai da reforma psiquiátrica italiana, Franco Basaglia, e alerta sobre “uma certa preguiça de olhar para o futuro mais do que para o passado” que enxerga na psiquiatria de hoje, determinante “para determinar o fortalecimento da ‘psiquiatria pobre’, embora diluída em molho basagliano, para promover a celebração e a autocelebração do passado, para intensificar a falta de uma reação conflituosa saudável ao status quo“. Desejamos uma ótima leitura!
[G. L.]
Evocar uma crise da psiquiatria é, certamente, interessante. Mas, também, um risco de nos deixar em um estado de indefinição: crise das práticas ou das teorias, italiana ou global, específica da disciplina ou mais ampla? Não tenho respostas para essas perguntas, mas ofereço tão somente algumas pistas de reflexão que há algum tempo venho seguindo, ainda que não esteja em posição de formular opiniões ou hipóteses fortes.
Portanto, compartilho aqui alguns “pensamentos desordenados”, mas nada melhor ou a mais eu posso oferecer.
É razoável levantar a hipótese de que haja uma crise na psiquiatria italiana, ainda que, repito, seria necessário chegarmos preliminarmente a um acordo acerca dos termos da questão e detalhar o que, o onde, o quando e o como de tal crise.
Todavia, podemos nos perguntar se há determinantes nítidos e distintos de tal crise e concluir razoavelmente que alguns podem ser identificados. Além disso, trata-se de uma crise que provavelmente não é apenas italiana, mas global.
Primeiro, nos perguntamos se a “pobreza da psiquiatria” é um determinante da crise atual ou, em vez e antes disso, é um fator presente desde sempre, mas que provavelmente se agravou nos últimos tempos.
Utilizo a expressão “pobreza da psiquiatria” em referência a um livro meu com esse título (Saraceno, 2017), mas também em referência ao texto de bem maior autoridade de Eugenio Borgna (2022a, 2022b). Pobre ou agonizante, a psiquiatria é uma disciplina cujo construto epistemológico é frágil e cuja dimensão moral é opaca e ambígua. Os psiquiatras convivem com ela, alguns adorando-a, e outros suportando-a. Certamente, muitíssimos psiquiatras realizam um extraordinário trabalho cotidiano de escuta, acolhimento e ajuda para os seus pacientes. Mas não são os tantíssimos generosos e dedicados psiquiatras a serem “empobrecidos” pela pobreza da psiquiatria; antes, é a arrogância da disciplina que empobrece a ação deles e rebaixa os seus mais cegos e obtusos expoentes.
As neurociências, que constituem um olhar fundamental sobre o funcionamento do cérebro, nos disseram muito pouco sobre a doença mental. A psicofarmacologia, que constitui uma contribuição fundamental para a terapêutica das doenças mentais, utiliza modelos obsoletos de normalidade e de patologia e, de fato, não alcançou significativos progressos nos últimos trinta anos. As abordagens psicoterapêuticas, psicodinâmicas e outras dificilmente constituem uma contribuição completa e sistemática da prática psiquiátrica nos serviços públicos.
Além disso, se a medicina baseada em evidências, de um lado, possibilita oferecer tratamentos cuja eficácia é avaliada, de outro, ela corre o risco de se transformar em uma ideologia difusa que coloniza territórios que não se prestam à sua lógica. A medicina baseada em evidências deve avaliar evidências de intervenções médicas, mas corre o risco de se estender indevidamente à avaliação de intervenções não médicas que têm mais a ver com a restituição de direitos tolhidos e com a inclusão social do que com objetivos puramente clínicos. O efeito colateral de uma legítima e louvável ambição a um status mais científico da psiquiatria é aquele de ter ignorado as grandes e esquecidas questões relacionadas com a robustez ou fragilidade epistemológica dos conceitos de doença mental e de tratamento da mesma. Em outras palavras, as questões em torno da existência da doença e da função normalizadora da psiquiatria permanecem relevantes, mas não resolvidas; permanecem urgentes, mas ignoradas. Assim, a dramática fragilidade epistemológica da psiquiatria permanece inalterada, assim como permanece inalterado o grande desafio moral de suas práticas.
A psiquiatria parece cada vez mais confinada a antigos e enfadonhos dilemas, que seriam resolvidos com uma boa dose de bom senso: biológico versus psicobiológico versus biopsicossocial; psicofármacos versus psicoterapias versus práticas de inclusão social e reabilitação psicossocial; Hospital Psiquiátrico versus hospital geral versus serviços territoriais.
Mas, então, essa pobreza (essa agonia) é realmente um determinante da crise atual? Não creio, porque essa pobreza é antiga e nos acompanha desde muito antes da revolução de Basaglia, durante e depois dela. Aquela psiquiatria pobre existe e continua florescendo nas escolas de especialidade e na formação de futuros psiquiatras. Limitemo-nos a dizer que um clima cultural e político, que teme o pensamento crítico e as práticas inovadoras, certamente exacerba os danos da pobre psiquiatria que, todavia, estão presentes desde sempre.
Mas, então, existem determinantes específicos da crise atual? Certamente, quando assistimos ao vulgaríssimo ataque à realidade da experiência de Trieste, com o progressivo desmantelamento das experiências mais inovadoras realizadas lá, reconhecemos uma virulência ideológica que quer interromper a virtuosa experiência da psiquiatria inovadora anti-institucional. Em 2018, Matteo Salvini [1], então Ministro do Interior, escrevia: “Nós estamos trabalhando para uma Itália melhor. Penso na absurda reforma que deixou na miséria milhares de famílias com parentes doentes psiquiátricos”. E denunciava, sem fornecer qualquer fundamento factual: “Neste ano há uma explosão de agressões por culpa de pacientes psiquiátricos”. As palavras do ex-ministro não são apenas a expressão da ignorância cultural, científica e moral do pior ministro que o nosso país já teve, mas são a manifestação de uma ignorância difusa dos fatos, das evidências e da realidade relativas à reforma psiquiátrica preconizada pela Lei 180 e aos direitos das pessoas que se encontram nas instituições sociossanitárias. Não há dúvida de que a cultura da reação teme a inovação, a distorce, a ignora e tenta silenciá-la.
Todavia, quando assistimos ao empobrecimento progressivo dos serviços públicos de Saúde Mental, ao desfinanciamento e à corrosão em seus recursos humanos, não deveríamos tanto levantar a hipótese de um design inteligente reacionário que quer desmantelar as práticas geradas pelo pensamento e trabalho de Basaglia, mas, antes, deveríamos simplesmente reconhecer os efeitos de uma escolha mais geral de enfraquecer o Serviço Nacional de Saúde, de penalizar o público em favor do privado. E este processo ameaçador vai muito além da especificidade da psiquiatria e afeta a saúde em sua complexidade.
Certamente, o clima político e cultural dos últimos anos (com um aumento decisivamente negativo a partir da afirmação da extrema-direita) constituiu um terreno de cultura ideal para combinar, ao mesmo tempo, a vontade geral de desmantelar o serviço público e a específica e virulenta antilei 180.
No específico, deve-se dizer que tal virulência é muito conveniente àqueles trabalhadores da Saúde Mental e àqueles serviços que nunca levaram muito a sério o pensamento e o trabalho de Basaglia, limitando-se a uma adesão superficial.
Das palavras de Basaglia, frequentemente a psiquiatria corrente se recorda com mais bom grado daquelas relacionadas à superação do escândalo do manicômio (mais um edifício do que uma instituição) e não daquelas relacionadas à crítica da psiquiatria como instituição. O monólogo da razão sobre a loucura (parafraseando Foucault) é, em vez disso, o objeto principal da pesquisa de Basaglia, e a superação do manicômio nada mais é do que a negação da legitimidade de tal monólogo. O Basaglia engenheiro institucional é certamente reconfortante, mas ele simplesmente nunca existiu. “Continuar a aceitar a psiquiatria e a definição de doença mental significa aceitar que o mundo desumano no qual vivemos seja o único mundo humano, natural e imodificável, contra o qual os homens estão desarmados”, foi o que Franco e Franca Basaglia escreveram há mais de quarenta anos (Ongaro Basaglia & Basaglia, 1979). Pergunto-me se a “etiqueta” (ou seja, a ética pequena) do novo savoir faire psiquiátrico territorial subscreve essas palavras, que enunciam, em vez disso, uma nova ética de “fazer psiquiatria”. Pergunto-me se os psiquiatras entenderam que o discurso de Basaglia não é um discurso sobre os manicômios, mas um discurso sobre a psiquiatria.
De fato, há uma distorção do pensamento de Basaglia, uma fuga do desafio que ele colocou, que diz respeito a uma substancial, profunda e muitas vezes inconsciente resistência da psiquiatria nos enfrentamentos com o questionamento de Basaglia sobre a conexão entre teoria e transformação da realidade. A gestalt do binômio pensamento/prática de Basaglia é, com muita frequência, esquecida para permitir (para se autorizar a) um uso de palavras isoladas de seu texto/prática e, portanto, empobrecidas, se não frequentemente polissemizadas, e basta pensar no uso impróprio, confuso e empobrecido da palavra Desinstitucionalização, hoje presente nos textos oficiais da psiquiatria como sinônimo de desospitalização: um pouco como se a palavra revolução fosse usada para definir o ato de revolver os omeletes, um ato que é notoriamente muito mais aceito e aceitável mesmo em círculos conservadores (Saraceno, 2012).
Esse fenômeno de descontextualização da palavra assume formas sistemáticas em grande parte da psiquiatria, obviamente sobretudo a italiana, de modo que a reflexão basagliana sobre a ideologia da psiquiatria e sobre a natureza da clínica psiquiátrica desaparece para dar lugar a um suposto pensamento basagliano feito de um misto de indignação filantrópica (pela condição desumana dos pacientes internados) e de um razoável espírito reorganizador (mais ambulatórios fora, menos leitos dentro).
O medo de levar a sério Basaglia é certamente reforçado pelo clima político instaurado pela direita do governo; porém, ele sempre existiu.
Finalmente, mesmo no interior da própria psiquiatria anti-institucional italiana, podemos individuar os germes de alguns determinantes da crise atual:
- Há uma falta de conhecimento e consideração da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, uma falta de conhecimento um tanto arrogante que reflete a ideia – errônea – de que desses direitos enunciados pela Convenção “nós sempre fomos defensores”, sem entender que a própria existência de um corpo jurídico tornado lei nacional (em virtude da ratificação da convenção) é, por si só, um fato importantíssimo e com grande potencial transformador (Patel, Saraceno e Kleinman, 2006; Organização das Nações Unidas, 2006).
- Há uma falta de conhecimento e consideração sobre a evolução dos movimentos dos usuários da psiquiatria que, sobretudo fora da Itália, refutam serem definidos como “usuários”, e sim se definem como “survivors” e isso gerou uma reflexão articulada e inovadora sobre “diversidade” em contraposição a “doença”. Esses movimentos colocam questões críticas e espinhosas também para a psiquiatria anti-institucional que, no entanto, não parece muito interessada em se envolver em diálogo e discussão (Morrison, 2005).
- Por fim, há uma falta de consciência quanto à importante responsabilidade histórica de transmitir o “como se faz” das práticas anti-institucionais, que geralmente são mais narradas do que documentadas e tornadas transmissíveis.
Em síntese: (i) um impulso propulsivo diminuído e fatigado; (ii) um clima político que dá voz tanto à psiquiatria conservadora quanto àquela pseudoprogressista; (iii) uma certa preguiça de olhar para o futuro mais do que para o passado, produzindo novas reflexões teóricas e outras inovações das práticas de libertação, constituem um conjunto complexo de determinantes, de modo algum nítidos e distintos, mas suficientes, precisamente, para determinar o fortalecimento da “psiquiatria pobre”, embora diluída em molho basagliano, para promover a celebração e a autocelebração do passado, para intensificar a falta de uma reação conflituosa saudável ao status quo.
Mas, de liberação e de justiça, é questão inteira a se estudar.
Notas:
[1] Matteo Salvini é um político italiano, senador da Itália, secretário-federal do partido Liga Norte e, desde 22 de outubro de 2002, é vice-primeiro-ministro da Itália. Anteriormente, entre 2018 e 2019, ocupou os cargos de vice-primeiro-ministro da Itália e Ministro do Interior.
Referências:
BORGNA, E. Agonia della psichiatria. Milano: Feltrinelli, 2022a.
BORGNA, E. La psichiatria italiana, oggi. Psicoterapia e Scienze Umane, vol. 56, n.º 4, p. 565-570. 2022b. DOI: 10.3280/PU2022-004003.
MORRISON, L.J. Talking Back to Psychiatry. The Psychiatric Consumer/Survivor/Ex-Patient Movement. London: Routledge, 2005.
ONGARO BASAGLIA, F. & BASAGLIA, F. Follia/Delirio. In: Enciclopedia Einaudi, vol. VI. Torino: Einaudi, 1979, p. 262-287.
PATEL, V.; SARACENO, B. & KLEINMAN, A. Beyond evidence: the moral case for international mental health. American Journal of Psychiatry, vol. 163, n.º 8, p. 1.312-1.315, 2006. DOI: 10.1176/ajp.2006.163.8.1312.
SARACENO, B. La “distorsion anglaise”: remarques sur la réception de la pensée de Franco Basaglia. Les Temps Modernes, vol. 668, n.º 2, p. 55-63, 2012.
SARACENO, B. Sulla povertà della psichiatria. Roma: Derive e Approdi, 2017. UNITED NATIONS Department of Economic and Social Affairs, Disability. Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CRPD). New York: United Nations, 2006.
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