Preço de medicamentos: a história de um engodo

Governo fala de “menor reajuste em 8 anos”. Mas as mudanças nos preços nas farmácias não correspondem à taxa aprovada na CMED – e podem ultrapassá-la em 330%. Participação social na decisão é urgente para conter alta dos remédios

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No último dia 1º de abril, após decisão da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), o Governo Federal anunciou que o “reajuste médio no preço dos medicamentos em 2025 será o menor dos últimos oito anos”, tendo sido fixado em 3,83%. A depender de uma série de fatores, o reajuste permitido – que serve de referência tanto para o varejo quanto para compras públicas – poderá variar de 2,60% a 5,06%.

Apesar de não ser falsa, a celebração oficial não conta toda a história: a variação do preço real dos remédios, aquele que é cobrado da população, pouco tem a ver com a decisão anual da CMED. Nos últimos anos, o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) tem consistentemente publicado estudos que alertam que os reajustes praticados pelos varejistas podem ser muito maiores do que aqueles previstos pela Câmara.

Um exemplo: a losartana, um remédio para hipertensão bastante comum, custa em média R$15,15 nas farmácias. No desconto com CPF, pode ser encontrada até por R$6,14. Contudo, seu preço-teto é de R$65,13 — o que significa que os varejistas poderiam aumentar seu preço em 329% sem infringir a resolução do órgão. A pesquisa de 2023 do Idec chegou a encontrar diferenças de 936,39% entre o teto e o preço praticado em compras públicas de medicamentos. Outra sondagem, não afiliada ao instituto, identificou aumentos reais de mais de 300% em uma série de remédios no ano passado.

Isso ocorre porque “o teto que a CMED define como preço máximo para a comercialização de medicamentos é muito maior do que o preço que se encontra nas farmácias“, explica Yuri Hidd, membro do Idec. Para que o teto realmente cumpra sua função de coibir a cobrança de preços abusivos, ele precisa estar próximo do custo real do produto. Além disso, o preço máximo precisa ser instituído com ampla participação social, garantindo a voz da população na decisão, argumenta o instituto. 

Em entrevista a Outra Saúde, o porta-voz do Idec explica que as estratégias usadas pelas farmácias só existem por conta da leniência do teto da CMED. As grandes redes se aproveitam do teto altíssimo, inclusive, para oferecer descontos enormes vinculados ao CPF do cliente – prática que contraria a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), segundo Yuri. Ele apresenta propostas para garantir remédio a preço justo para os brasileiros.

Um método falho

Desde a promulgação da Lei nº 10.742/2003, que criou a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, este órgão é responsável por “estabelecer critérios para fixação e ajuste de preços” dos remédios, diz a peça legislativa. Por isso, entre uma série de outras atividades, o órgão publica todos os anos uma resolução que estabelece uma fórmula de reajuste e determina um novo valor máximo que poderá ser cobrado por esses produtos.

A importância de um mecanismo de controle dos preços dos medicamentos é indiscutível – em reportagem de 2023, Outra Saúde destacou o papel essencial dessa ferramenta para que o desenvolvimento da enorme indústria farmacêutica na Índia se centrasse na garantia do acesso a medicamentos à população, e não no lucro das empresas. Em artigo para este boletim, o sanitarista Reinaldo Guimarães expressou a opinião de que essa política é decisiva para o impulsionamento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS).

Contudo, no caso brasileiro, “a gente vê que [a política de controle dos preços] está muito defasada, tanto em relação às inovações que surgiram quanto nos métodos utilizados. O que define o preço na farmácia não é o reajuste da CMED, mas a lógica de mercado que seguem tanto os fornecedores quanto os varejistas”, esclarece Yuri Hidd. O porta-voz do instituto enumera alguns dos problemas que afligem o reajuste do preço.

Em primeiro lugar, falta transparência da indústria farmacêutica sobre os custos de produção e venda de remédios, o que prejudica a clareza sobre os critérios de precificação. “As farmacêuticas sempre defendem que o reajuste do ano ainda não é o suficiente, mas a gente entende que isso não é verdade. Afinal, os preços que estão sendo realmente praticados ainda costumam ser bem menores que o teto”, ele indica. A própria fórmula da CMED, aponta uma avaliação de 2021 do Idec, é calculada a partir de fatores que podem ser questionados.

Além da insuficiente transparência, o instituto sublinha que a decisão do reajuste dos medicamentos é tomada sem a garantia da participação social. Hoje, a CMED é composta exclusivamente por representantes de ministérios e órgãos federais, já que a lei que a instituiu não prevê assentos para a sociedade civil ou entidades científicas.

Além de não impedir que fiquem mais caros, a legislação não oferece formas de baixar os preços dos medicamentos, o que o Idec argumenta que não seria descabido: “Hoje, a lei que criou a CMED não tem previsão de fazer reajustes negativos. Só que o setor farmacêutico inclui no preço inicial do remédio os custos de Pesquisa & Desenvolvimento e os investimentos em tecnologia, e eles vão ‘se pagando’ ao longo do tempo”.

É nesse contexto – um teto de reajuste que praticamente não coíbe a especulação com os preços dos medicamentos – que o setor varejista estabelece o preço-base de suas mercadorias nas alturas e, na sequência, oferece imperdíveis “descontos”. Para acessá-los, basta fornecer o CPF, uma das informações mais sensíveis de um cidadão. Em outras palavras, “os altíssimos preços-teto permitem, na prática, que varejistas estabeleçam preços inflacionados para coagir o consumidor a fornecer seus dados em troca de um desconto possivelmente artificial”, define a pesquisa de 2024 do Idec.

Possíveis soluções

Enfrentar esses problemas beneficiaria as contas públicas e também o bolso da população, sugere o instituto. De acordo com a campanha Remédio a Preço Justo, os gastos do Governo Federal com a aquisição de medicamentos mais que triplicaram entre 2008 e 2022 – e a compra de remédios já coloniza um terço do orçamento que as famílias dedicam à saúde, segundo o IBGE.

“Nós pensamos que é preciso modernizar essa regulamentação, para que haja participação social na CMED e mais transparência no cálculo do reajuste dos medicamentos”, defende Yuri Hidd. Parte desses ajustes no processo regulatório poderiam acontecer por meio de mudanças nas normas internas da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. 

Outros, porém, exigiriam “mudanças na legislação”, ele explica. Um notável esforço nesse sentido está contido no Projeto de Lei nº 5591/2020, apresentado pelo senador Fabiano Contarato (PT/ES), que permitiria à CMED “autorizar ajuste negativo nos preços”. 

Se aprovado, o PL também alteraria a composição da Câmara, para incluir “representantes da ANS, da Anvisa, do Conass, do Cade, do Conasems, do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e dos usuários ou trabalhadores do Conselho Nacional de Saúde”. Ainda obrigaria a indústria farmacêutica a oferecer informações mais detalhadas sobre os custos de produção de suas drogas e medicamentos para registrá-los. Com essas mudanças, o teto do preço dos medicamentos poderia ser reduzido de forma significativa, para representar seus valores reais, e a exigência do CPF se tornaria inócua – além disso, a decisão sobre o reajuste seria tomada de maneira infinitamente mais democrática. Lamentavelmente, o projeto de lei está parado há dois anos na gaveta de seu relator, o também senador Ciro Nogueira (PP-PI).

Em entrevista a Outra Saúde, o sanitarista Matheus Falcão indicou que outras medidas de caráter mais estrutural também seriam indispensáveis para garantir que a população tenha acesso aos medicamentos de que precisa – entre elas, a mudança da Lei de Patentes, a ampliação da fabricação nacional de medicamentos e o aumento da produção autônoma de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs). 

“Além de debater o acesso a medicamentos, precisamos falar sobre uma política nacional de ciência, tecnologia, inovação e de produção industrial para garantir a cadeia de fornecimento”, concluiu Falcão à época. Seguramente, a tomada de decisões estratégicas nesse âmbito teria enorme significação para a transformação das condições de vida da população – e as autoridades não teriam que se contentar com a comemoração de um fictício “menor reajuste no preço de medicamentos em 8 anos”.

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