Por que os EUA tentam esconder a covid longa?
Governo Trump cortou financiamento de dezenas de projetos sobre os efeitos prolongados da doença. Departamento de Saúde afirma que “não vai mais desperdiçar bilhões de dólares em resposta a uma pandemia inexistente”. Mas cientistas conseguem vitória importante
Publicado 09/04/2025 às 06:00 - Atualizado 08/04/2025 às 21:57

Por Heidi Ledford e Max Kozlov, na Nature
Ativistas e pesquisadores da covid longa nos Estados Unidos conseguiram um feito extraordinário. Após uma batalha árdua, foram revogadas algumas das anulações de financiamentos de pesquisas, que haviam sido ordenados pelo governo do presidente Donald Trump. Uma rara vitória para a ciência, num momento em que a equipe do presidente corta verbas e demite pesquisadores que trabalham para órgãos federais.
A crise começou no final de março, quando os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) cortaram o financiamento para dezenas de projetos sobre covid longa. Ativistas e pesquisadores – muitos deles mesmos com covid longa – iniciaram uma campanha incansável. Seu esforço convenceu, na última hora, um membro do Congresso simpático à causa a intervir, segundo um funcionário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), que supervisiona o NIH (ele pediu anonimato por não estar autorizado a falar com a imprensa). Em poucos dias, os cortes foram revertidos.
Mas a decisão do governo de encerrar uma série de pesquisas sobre doenças infecciosas sugere um caminho difícil para os estudos sobre covid prolongada. Agora, cientistas e ativistas sustentam a ansiedade e esperança, enquanto se preparam para lutar contra possíveis novos cortes no financiamento federal.
“A comunidade de pacientes com covid longa está atordoada e chocada com o que está vendo”, afirma Emily Taylor, presidente da Solve ME/CFS Initiative, sediada na Califórnia. “Temos dito aos congressistas: ‘Parem de cortar, antes de tudo. Parem de nos ferir. Parem com a dor’”.
O HHS, que inclui o NIH e outras agências de saúde, não respondeu a um pedido de comentário.
O alcance da covid longa
Nos últimos dois meses, o governo do presidente Donald Trump cancelou ou adiou milhares de bolsas de pesquisa biomédica, incluindo as relacionadas à covid-19.
Quando questionado sobre os cortes relacionados à covid-19, um porta-voz do HHS disse à Nature, em 26 de março: “O HHS não vai mais desperdiçar bilhões de dólares dos contribuintes para responder a uma pandemia inexistente que os americanos já superaram”.
Essa resposta assustou pesquisadores da covid longa e pessoas que lutam para seu reconhecimento. “É totalmente chocante e realmente incorreto”, segundo Serena Spudich, neurocientista de doenças infecciosas da Yale School of Medicine, em Connecticut. “As consequências da pandemia de covid ainda afetam milhões de pessoas, a economia e a capacidade de trabalhar e estudar.” Um estudo de 2024 estimou que 11 milhões nos EUA atualmente vivem com covid longa, e que a condição custa ao país mais de US$ 152,6 bilhões em horas de trabalho perdidas por ano.
Portas fechadas
O HHS é liderado pelo notório ativista antivacina Robert F. Kennedy Jr, que afirmou, durante sua audiência de confirmação em 29 de janeiro, que se comprometeria a financiar pesquisas sobre covid longa. Isso deu a Ian Simon, então diretor do Escritório de Pesquisa e Prática em Covid Longa do HHS, um “lampejo de esperança”, porque parecia “um endosso total a uma ação governamental séria”. Mas os cancelamentos de financiamento “me fazem questionar se um endosso total diante do Congresso significa alguma coisa, hoje em dia”.
Sob Kennedy, o HHS fechou seu escritório de covid longa, demitiu Simon e outro funcionário. Uma ordem executiva assinada por Trump dissolveu o único comitê consultivo federal sobre covid longa, e o Departamento de Trabalho dos EUA removeu menções à condição de seus sites.
O NIH cortou não apenas pesquisas sobre covid longa, mas também outros trabalhos que poderiam afetar pessoas com a condição. Vários estudos sobre deficiências foram encerrados, conta David Putrino, fisioterapeuta e neurocientista da Icahn School of Medicine em Nova York. E muitas pessoas com covid longa grave vivem com deficiências.
Apesar disso, alguns defensores esperavam que a iniciativa RECOVER, do NIH, de US$ 1,8 bilhão para pesquisa sobre covid longa, estivesse segura – pois o Congresso garantiu seu financiamento direto em 2020.
Mas no final de março, o NIH cancelou uma série de financiamentos do RECOVER. “Ficamos completamente chocados”, conta Megan Fitzgerald, neurocientista da Pensilvânia, que vive com covid longa e trabalha com o grupo de advocacy Patient-Led Research Collaborative. “Foi quando começamos a nos mobilizar.”
Investimento desperdiçado
A investigação de Fitzgerald revelou dezenas de projetos cancelados, a maioria estudos sobre a biologia da covid longa ou sua manifestação em crianças. A perda dos estudos pediátricos seria particularmente dolorosa, diz Fitzgerald, porque a pesquisa em crianças está atrasada em relação aos adultos.
Os estudos biológicos incluíam um projeto sobre disautonomia, uma condição associada à covid longa que afeta o controle da frequência cardíaca e da pressão arterial. Outro projeto encerrado buscava caracterizar anticorpos produzidos contra proteínas do próprio corpo. Esses “autoanticorpos” podem contribuir para alguns casos de covid longa – e ser alvos de medicamentos.
Em muitos casos, os projetos estavam quase concluídos. Encerrá-los pouco antes da publicação seria jogar fora o tempo e dinheiro já investidos, defende Taylor. “É a coisa mais estúpida, pegar todo esse investimento e interrompê-lo no meio”, afirma.
Para combater os cortes, Fitzgerald trabalhou com dedicação para tentar convencer os pesquisadores a relatar suas histórias a parlamentares e à mídia. “Muitos estavam receosos”, diz ela, por temer que divulgar sua situação prejudicasse futuros financiamentos.
No estado de Maryland, Meighan Stone, diretora do Long Covid Campaign, pressionou seus contatos no Congresso e na mídia. Stone, que usa cadeira de rodas devido à covid longa, manteve-se esperançosa. Após a audiência de Jay Bhattacharya para diretor do NIH, ela o abordou. “Ele firmou um compromisso pessoal de trabalhar em tratamentos para covid longa, se confirmado”, diz Stone.
Em 28 de março, pesquisadores do RECOVER tiveram a notícia de que seus financiamentos foram reativados.
Poder da comunidade
Foi uma vitória crucial, mas alguns financiamentos não vinculados ao RECOVER permanecem cancelados. Isso inclui um estudo de Serena Spudich sobre os efeitos da covid longa no cérebro e um projeto de Abraam Yakoub, da Harvard University, sobre como a infecção por SARS-CoV-2 no cérebro causa sintomas em outras partes do corpo.
Em 3 de abril, um juiz federal bloqueou temporariamente a tentativa de Trump de cortar US$ 11 bilhões de iniciativas relacionadas à covid−19 no HHS; ainda não está claro como a decisão afetará esses financiamentos.
Se há um lado positivo no estresse, é que o choque dos últimos meses uniu todos os envolvidos na pesquisa sobre covid longa, diz Taylor: “A ameaça de cortes energizou a comunidade científica a se envolver e se manifestar”.
Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras