Até quando crimes da pandemia seguirão impunes?

Deisy Ventura, autora de um importante estudo que mostrou a ação do governo Bolsonaro na disseminação da covid, defende mais rapidez na responsabilização pela mortes e sofrimento. Para ela, é hora de ir muito além de esforços simbólicos

Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. Créditos: IEA/USP
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Deisy Ventura em entrevista a Gabriel Brito

Nos dias 11 e 12 de março o Ministério da Saúde promoveu o Seminário para concepção e criação do Memorial da Pandemia de Covid-19, mais um passo do Estado brasileiro no reconhecimento de sua dívida com a população mais diretamente afetada pela pandemia, tanto as centenas de milhares de falecidos como seus familiares que carregarão para sempre as consequências da tragédia sanitária em questão.

O esforço parece simbólico, mas é importante gesto de preservação da memória de uma acontecimento central na vida social. Soma-se a políticas ainda fragmentadas de criação de outros espaços de memória e projetos de indenização de vítimas da covid, desde profissionais de saúde a menores órfãos ou pessoas que vivem sequelas físicas.

“Assim como a política de memória, as políticas de reparação precisam ser construídas junto com os seus beneficiários, e só serão bem-sucedidas se inseridas em uma cultura de reconhecimento das violações de direitos ocorridas no período”, afirmou Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, ao Outra Saúde.

Especialista em ética e direito internacional em saúde, Deisy foi responsável pela pesquisa que culminou no estudo A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19, que sistematizou as 3.048 decisões administrativas, além de centenas de declarações públicas, de autoridades centrais do governo Bolsonaro na ação do Estado brasileiro durante a crise do coronavírus. O estudo não só documentou a irresponsabilidade como colocou na mesa a tese da intencionalidade do governo na disseminação do vírus, fundamental para a abertura da CPI da Pandemia – cujo relatório final indiciou o ex-presidente e mais 70 pessoas.

“Constatamos que a institucionalidade da resposta prevista pelas normas vigentes sobre emergências de saúde havia sido rompida, assim como a tradição brasileira de resposta a epidemias. Infelizmente, predominavam naquela época, e talvez predominem até hoje, as versões de que o governo federal estava sendo apenas negligente ou incompetente diante da doença. Era mais que isso”, rememora Ventura. Sua posição corajosa e implacável rendeu-lhe retaliação direta do governo Bolsonaro, que boicotou a indicação de seu nome ao Comitê de Revisão do Regulamento Sanitário Internacional da OMS.

Dessa forma, tal como reafirmado em seminário na Faculdade de Direito da USP em 20 de março, Deisy Ventura defende enfaticamente a responsabilização penal do ex-presidente e principais responsáveis pelo morticínio daquele período. Em sua concepção, trata-se de capítulo decisivo na consolidação da democracia no país, diretamente atacada pelos mesmos setores que cometeram tamanhos crimes contra a humanidade.

Diante disso, apesar de reconhecer boas intenções do atual governo, Deisy identifica uma preocupante morosidade do Estado, mais precisamente da Procuradoria Geral da República, no avanço de processos penais contra Bolsonaro, Pazuello e companhia.

“Entendo que o Poder Executivo deve agir com maior rapidez no que se refere às políticas de memória, verdade, reparação e não repetição. Mas no que se refere à responsabilização, quem deve ser cobrado neste momento é o Ministério Público, especialmente a Procuradoria Geral da República (PGR), e o Poder Judiciário. Porém, nos casos em que há prerrogativa de foro, a PGR manifestou-se pelo arquivamento da ampla maioria das petições criminais junto ao STF, inclusive as resultantes da CPI em petições que a própria PGR protocolou.”

Trata-se, no frigir dos ovos, de uma disputa política que certamente contará com resistência estridente de seus alvos – afinal, eles podem acabar na cadeia -, mas é decisiva para o Estado brasileiro e suas instituições consolidarem sua legitimidade em tempos de instabilidades diversas nas ditas democracias liberais.

“Além das centenas de milhares de mortes por covid-19 que poderiam ter sido evitadas, e dos milhões de casos da doença cujos efeitos prolongados causam sofrimento à população e oneram o SUS, foi abandonado o primado das evidências científicas como orientadoras de políticas públicas e foi desrespeitada a institucionalidade sanitária. A impunidade da promoção oficial da desinformação e de outros crimes contra a saúde pública hipoteca a capacidade brasileira de resposta a futuras emergências sanitárias”, analisou.

Confira a entrevista completa com Deisy Ventura.

O Ministério da Saúde promoveu em março um seminário que visou avançar na criação de um Memorial para Vítimas da Pandemia. Como avalia a iniciativa? Ela é suficiente?

Existem ao menos 147 memoriais sobre a covid-19 no Brasil, com variadas formas e alcances, como revelou uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA/USP), liderada pela Professora Rossana Reis e pela Doutoranda Cristiane Ribeiro (IRI/USP), cujos resultados preliminares serão publicados em breve. Esta cifra abarca desde grandes e complexos projetos, como o excelente Sou Ciência até simples monumentos. Este número provavelmente crescerá nas próximas fases da pesquisa que ampliarão as formas de coleta de dados, mas também sabemos que muitas destas iniciativas são pontuais ou efêmeras.

No meu entendimento, os memoriais já existentes não são valorizados, apoiados e divulgados como merecem ser. Neste sentido, a iniciativa do ministério da Saúde é muito importante, principalmente por ter congregado no referido seminário muitos dos atores sociais que estão envolvidos com estes memoriais, e estiveram à frente da luta contra a covid-19, incluindo entidades públicas e privadas, associações de vítimas e grupos de pesquisa.

No entanto, esta iniciativa não é suficiente porque necessitamos de uma política de memória da covid-19 no Brasil a envolver o Estado e a sociedade, na qual um memorial do Ministério da Saúde pode ser um elemento, inclusive de liderança, mas não o único. As iniciativas fragmentadas de resgate da memória da covid-19 indicam a existência de uma capilaridade que precisa ser convertida em rede, com diretrizes, apoios e objetivos conjuntos.

Como enxerga a relação do governo Lula com o legado da pandemia? Sente falta de iniciativas mais incisivas no sentido da proteção das vítimas da covid, inclusive parentes, órfãos, enfim, pessoas que tiveram a vida modificadas após o advento do coronavírus?

Em seu discurso de posse no Congresso Nacional, Lula apontou “a atitude criminosa de um governo negacionista, obscurantista, insensível à vida” durante a covid-19, e afirmou que “a responsabilidade por esse genocídio há de ser apurada e não deve ficar impune”. Frequentes manifestações públicas da ministra Nísia Trindade, que foi uma figura central da resposta à covid-19, à época presidindo a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, coincidem com a avaliação de Lula sobre a responsabilidade do governo anterior na trágica dimensão alcançada pelos casos e óbitos em decorrência da doença ocorridos no Brasil.

O reconhecimento de que foram praticados crimes contra a saúde pública na gestão federal da pandemia de covid-19 é muito importante. Quanto a iniciativas concretas, o governo tem aventado uma possibilidade de reparação que atingiria pessoas menores de 18 anos que perderam os pais em razão da pandemia de covid-19, o que aparece em recentes declarações de Lula e de Nísia.

Embora esta iniciativa seja louvável, também aqui se constata a ausência de uma política de reparação dos danos causados por ações e omissões do Estado, que necessita atingir os trabalhadores da saúde e de outras atividades essenciais, além de vítimas e familiares. Assim como a política de memória que já referi, as políticas de reparação precisam ser construídas junto com os seus beneficiários, e só serão bem-sucedidas se inseridas em uma cultura de reconhecimento das violações de direitos ocorridas no período.

Dias depois do referido seminário, você participou de evento na Faculdade de Direito da USP no qual se falou taxativamente sobre responsabilização penal da pandemia e da ação de diversos gestores públicos naquele momento. Por que você defende essa responsabilização penal?

Porque ao estudar a resposta federal à covid-19 desde o seu início, acompanhando o Diário Oficial da União e os perfis de autoridades federais e órgãos de governo em redes sociais, nosso grupo de pesquisa percebeu a intencionalidade da disseminação do vírus a partir de março de 2020, quando o comando da resposta à pandemia foi transferido, por decreto, para a Casa Civil.

Sendo especialistas em direito da saúde, constatamos que a institucionalidade da resposta prevista pelas normas vigentes sobre emergências de saúde havia sido rompida, assim como a tradição brasileira de resposta a epidemias. Infelizmente, predominavam naquela época, e talvez predominem até hoje, as versões de que o governo federal estava sendo apenas negligente ou incompetente diante da doença. Era mais que isso.

Em janeiro de 2021, publicamos a primeira versão da linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19, no Boletim Direitos na Pandemia, editado pelo CEPEDISA e pela Conectas Direitos Humanos. Esta pesquisa comprovou que a doença foi disseminada de forma coordenada entre autoridades federais, por meio de três grupos de evidências: atos de gestão, atos normativos e atos de propaganda contra a saúde pública.

Graças à coragem de uma grande jornalista brasileira, Eliane Brum, que publicou pela primeira vez o estudo, a percepção de que o governo federal estava espalhando a doença finalmente foi tratada com a devida seriedade e chegou ao grande público. Segundo os Senadores Humberto Costa e Randolfe Rodrigues, nossa linha do tempo foi uma das inspirações para a criação da CPI da covid-19. A pedido da CPI, o estudo foi atualizado e ampliado em maio de 2021, e serviu de base ao trabalho da comissão de especialistas em direito penal que subsidiou os pedidos de indiciamento de dezenas de autoridades por crimes contra a saúde pública, entre outros, inclusive crime contra a humanidade, que constam do relatório final da comissão.

Em um estudo recentemente publicado, feito em nova parceria do CEPEDISA e da Conectas Direitos Humanos, constatamos que em janeiro de 2024 ainda existiam 14 petições criminais em andamento relativas a autoridades com prerrogativa de foro junto ao Supremo Tribunal Federal, entre dezenas que foram propostas por diversos atores sociais, principalmente parlamentares e associações de vítimas. Este estudo foi recentemente apresentado em sessão conjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho Nacional de Saúde. Ou seja, somos muitos a apontar a necessidade de responsabilização pelos crimes cometidos durante a pandemia.

Acha que o governo erra ao não encaminhar os indiciamentos do relatório final da CPI da Pandemia? Por que há uma certa morosidade em agir nesse sentido?

Entendo que o Poder Executivo deve agir com maior rapidez no que se refere às políticas de memória, verdade, reparação e não repetição. Mas no que se refere à responsabilização, quem deve ser cobrado neste momento é o Ministério Público, especialmente a Procuradoria Geral da República (PGR), e o Poder Judiciário. Isto está sendo feito por diversos atores, entre eles o Conselho Nacional de Saúde e os Senadores que lideraram a CPI da covid-19.

Quais seriam os caminhos práticos desta responsabilização penal?

Como já referi, nosso estudo demonstra que existem iniciativas de responsabilização em andamento. Porém, nos casos em que há prerrogativa de foro, a PGR manifestou-se pelo arquivamento da ampla maioria das petições criminais junto ao STF, inclusive as resultantes da CPI em petições que a própria PGR protocolou. No entanto, também existem processos em primeira instância que precisam ser estudados. Novas ações também podem ser propostas.

A impunidade de responsáveis por uma condução sem dúvidas desastrosa de ações de Estado naquela imensa crise sanitária não poderia fragilizar e desestabilizar ainda mais as instituições que operam a democracia brasileira, diante de uma direita que parece disposta a tudo?

Não podemos permitir que se repita o que aconteceu no Brasil durante a pandemia de covid. Como afirmamos em nosso artigo mais recente, além das centenas de milhares de mortes por covid-19 que poderiam ter sido evitadas, e dos milhões de casos da doença cujos efeitos prolongados causam sofrimento à população e oneram o SUS, foi abandonado o primado das evidências científicas como orientadoras de políticas públicas e foi desrespeitada a institucionalidade sanitária.

A desinformação sobre saúde e a insurgência contra medidas preventivas foram amplamente difundidas naquele período, inclusive por órgãos públicos. Infelizmente, a pandemia deixa um legado não apenas de desinformação, mas de naturalização da produção de desinformação por autoridades, como vimos na volta às aulas deste ano, com a campanha de governadores e prefeitos contra a exigência de apresentação da comprovação de imunização contra a covid-19 nas escolas públicas.

A impunidade da promoção oficial da desinformação e de outros crimes contra a saúde pública hipoteca a capacidade brasileira de resposta a futuras emergências sanitárias.

Como observa a relação da sociedade brasileira com a memória deste momento que sem dúvidas marca a vida de todos?

A organização de setores da sociedade brasileira durante a covid-19 evitou que a catástrofe fosse ainda maior, tanto por iniciativas autônomas de resistência como pelo embate constante com o governo federal, travado no âmbito dos poderes Legislativo por seus representantes e Judiciário por meio de incontáveis ações, mas também nas esferas locais de governo, atuando junto ao SUS, nas redes sociais, nos veículos de imprensa, nas universidades e institutos de pesquisa etc.

No entanto, uma parte importante da sociedade, vinculada ao movimento bolsonarista, não apenas tolerou ou apoiou, mas participou ativamente da produção de desinformação que até hoje compromete a confiança da população nas autoridades sanitárias e na ciência; esteve presente em aglomerações e boicotou medidas preventivas como a vacina e a máscara facial. Assim, a disputa política, ideológica e eleitoral ocorrida durante a resposta à pandemia encontra agora, no campo da memória, uma nova etapa.

Gostaria que todos os setores que tomaram o partido da vida durante a pandemia de covid-19 mantivessem agora a sua posição, atuando firmemente na disputa para que a verdade sobre a covid-19 possa emergir (ainda há muito a apurar), para que a memória das vítimas e seus familiares seja preservada, para que os danos sofridos sejam reparados e os seus causadores responsabilizados, tudo isto como condição para que violações deliberadas do direito à saúde e à vida, desta natureza e deste porte, jamais se repitam no Brasil.

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