Os entraves cruéis da saúde privada a crianças autistas

Falhas em sistemas de biometria foram as mais recentes más notícias para famílias de crianças com autismo, mas a lista é grande. Agência reguladora tende para o lado das empresas. Uma mãe ativista conta sua luta diária para garantir saúde a seus filhos

Imagem: Lola Ruth Campbell
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A seguradora Hapvida levou uma multa de R$ 2,9 milhões no Amazonas por constranger famílias ao exigir biometria facial de crianças autistas para autorização de consultas e terapias em estabelecimentos privados de saúde. No Maranhão, o mesmo aconteceu, mas neste caso o Procon apenas determinou que a seguradora suspendesse tal prática. Trata-se de uma desconhecida faceta das intensas lutas que famílias de crianças diagnosticadas com espectro autista travam cotidianamente para garantir não só seu direito de consumidor, mas seus direitos fundamentais.

“É uma prática que está se expandindo. Não sei se é por falta de preparo das empresas, de não entender que isso é uma questão de acessibilidade ou se é uma forma proposital de afastar os atendimentos de crianças autistas, porque a Unimed tem histórico de comemorar quando a criança perde um respirador, quando perde uma terapia”, criticou Vanessa Ziotti, diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa, uma das várias organizações da sociedade civil que se formaram para lutar pelo direito à saúde e à inclusão social de pessoas com tal tipo de deficiência. “A ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] tem sido cada vez mais complacente com a situação. Fazemos as denúncias pra ANS, suas normativas são descumpridas porque as seguradoras não oferecem as terapias de sua obrigação, impõem limitação de sessões, de horários, de ingresso na apólice para pessoas com deficiência, carência estendida a uma pessoa com deficiência que faz portabilidade de um plano para outro…”

Os conflitos entre usuários de planos privados e empresas são frequentes e bastante conhecidos do público, em especial após a queda de braço em torno do rol taxativo, que visava limitar o leque de tratamentos oferecidos, o que acabou derrotado no Congresso.

No entanto, os casos da Hapvida, localizados em dois estados que não estão entre os mais populosos do país, são apenas uma das várias facetas das imensas adversidades que se colocam diante das famílias que cuidam de crianças com espectro autista.

Como explica Ziotti, parece haver um movimento deliberado de se dificultar o acesso a tratamentos cruciais para essas famílias. Um retrato cruel da saúde tratada como mercadoria. E, diante de tal dilema, a ANS parece ter lado.

“Não temos notícia de que a ANS esteja fazendo o papel dela de agência reguladora, muito pelo contrário. Durante todo o ano passado, o que vimos foi uma ANS atuando como advogada dos planos de saúde pra tentar implementar o rol taxativo, o que ocasionaria em um apartheid no acesso à saúde suplementar”, afirmou Ziotti.

Quanto à biometria facial, trata-se de um procedimento arbitrário e desnecessário, imposto sob frágeis alegações de segurança. “Essa justificativa pode ser facilmente contraditada, considerando que existem alternativas menos gravosas tanto em relação à proteção de dados quanto em relação a este caso”, explicou Camila Leite, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que monitora os abusos descritos nesta matéria e até produziu uma cartilha para planos privados tratarem melhor seus usuários.

Além do mais, a própria tecnologia merece questionamentos em si. “Temos os falsos positivos. Trata-se de quando uma pessoa que realmente contratou o plano vai fazer autenticação por reconhecimento facial e o aparato afirma que sua face não corresponde à realidade da pessoa cadastrada, que no caso é ela própria. Assim, uma pessoa pode deixar de ter autorização para um procedimento de saúde por conta de um erro da tecnologia. Historicamente, quem é mais prejudicado por esses erros no uso das tecnologias são as pessoas negras e pardas”, explicou Camila Leite.

Como ficou notório à época da queda do rol taxativo, as lutas pelos direitos das crianças autistas são das mais tenazes da sociedade brasileira. Após anos de invisibilidade, seu protagonismo é cada vez maior. São, quase sempre, mães que tomam a frente pelo direito a uma infância melhor para seus filhos e, em processos extremamente desgastantes, vêm acumulando vitórias.

Vanessa Ziotti, que é mãe de trigêmeos autistas, conta um pouco dessa árdua trajetória de luta na entrevista ao Outra Saúde. E alerta que aqui também se sente, e muito dolorosamente, o processo de destruição neoliberal do Estado e da institucionalidade do país. “Temos um Estado desmontado para fornecer educação inclusiva, as terapias básicas do SUS, nós temos municípios que estão dando papel timbrado, por escrito, para afirmar que não têm condições de fornecer as terapias que a própria neuropediatra do SUS indicou. Temos ataques constantes à legislação, por parte principalmente dos estabelecimentos particulares de ensino e de saúde. Estamos num momento de terra arrasada (…) A segregação e esse viés eugenista que separa pessoas perfeitas das pessoas com deficiência, um padrão que é criado na sociedade, tem se intensificado nos últimos anos. Isso é muito perigoso”, explicou.

Como recebeu o fato de o Procon ter aplicado multa à Hapvida em dois estados por exigir biometria de crianças autistas em espaços privados que prestam serviços de saúde?

Existem inúmeras maneiras de identificar o usuário sem a biometria. Deve-se pensar em pessoas com deficiência, não só crianças, principalmente as pessoas que têm algum tipo de deficiência social, como no caso do autismo, do transtorno geral do desenvolvimento, que na criança são questões de processamento sensorial. Como vou pedir pra criança ficar parada olhando pra uma câmera sem se mexer? É inviável, uma falta de acessibilidade primária, fere a Lei Brasileira de Inclusão.

Nós temos diversas formas de fazer essa qualificação. Por exemplo, se já se está numa clínica que presta um serviço àquela família há tempos ou se é um atendimento preliminar para aquelas crianças, tem de haver uma outra forma de fazer o reconhecimento. Vincular o atendimento que não seja por biometria é imposição arbitrária, fere não só o Estatuto da Pessoa com Deficiência, mas também o Estatuto da Criança e do Adolescente e direitos humanos fundamentais, porque está expondo a pessoa à situação degradante.

Portanto, o mínimo que a gente pode ter aqui é a multa do Procon. Mas se a gente analisar numa instância superior, veremos que está ferindo direitos humanos, fundamentais e caberia por exemplo uma ação civil pública; caberiam ações particulares das pessoas que foram lesadas de forma imediata, crianças que tiveram tratamento negado porque não conseguiram cumprir a biometria, crianças que foram expostas e entraram em crise pra poder fazer a biometria e depois nem conseguiram aproveitar a terapia.

Há uma série de desdobramentos. E não necessariamente precisa terminar na multa administrativa do Procon.

Qual a abrangência desta prática? Ela está generalizada?

Sim, temos relatos aqui no estado de São Paulo da Unimed de Guarulhos, que fez isso com algumas mães, e de algumas outras Unimeds no interior do estado. Mas o relato mais incisivo foi da Unimed de Guarulhos; uma clínica que fazia atendimento multidisciplinar pra crianças autistas e outras deficiências estava exigindo essa biometria e fez diversas crianças entrarem em crise. Tem até vídeos expondo crianças na internet. É uma prática que está se expandindo. Não sei se é por falta de preparo das empresas, de não entender que isso é uma questão de acessibilidade ou se é uma forma proposital de afastar os atendimentos de crianças autistas, porque a Unimed tem histórico de comemorar quando a criança perde um respirador, quando perde uma terapia.

No ano passado, a mídia até veiculou matéria a mostrar que a cada liminar (contra requerimento de usuários de planos por algum tipo de tratamento não convencional) que caía eles mandavam um informativo interno comemorando. Ficamos com o pé atrás sobre essa questão da biometria, pois não sabemos se é falta de conhecimento e até mesmo de competência por parte das operadoras ou mais um artifício pra dificultar o acesso ao tratamento e fazer com que as pessoas desistam.

Portanto, podemos ter clareza de que as práticas abusivas contra crianças autistas são mais extensas.

Sim, vão bem além da questão da biometria. Nós temos um plano de saúde, o São Cristóvão, que é um plano pequeno, não tem abrangência nacional, que tinha uma clínica que fazia atendimento multidisciplinar de crianças com deficiência, não só autismo. E essa clínica atendia muito bem as famílias, disponibilizavam atendimento de excelência, terapias multidisciplinares etc. O que aconteceu? Da noite para o dia, a fim de diminuir os custos, a São Cristóvão descredenciou essa clínica e queria colocar 200 crianças no hospital de Itaquera, para serem atendidas ao lado da sala de sutura, sem nenhum preparo, sem profissional, deixando as mães desesperadas. As mães mandavam e-mail e o estabelecimento dizia que haveria atendimento, mas não respondiam coisas como se a terapêutica ou uma fisioterapia especializada seria realizada. Isso foi para o Ministério Público, que orientou a São Cristóvão a manter essas crianças atendidas na clínica. O caso ainda está em andamento, algumas mães se uniram e ingressaram com uma ação coletiva contra o São Cristóvão.

A ANS tem tomado atitudes sobre isso?

Não, a ANS ela tem sido cada vez mais complacente com a situação. Fazemos as denúncias pra ANS, suas normativas são descumpridas porque as seguradoras não oferecem as terapias de sua obrigação, impõem limitação de sessões, de horários, de ingresso na apólice para pessoas com deficiência, carência estendida a uma pessoa com deficiência que faz portabilidade de um plano para outro…

Não temos notícia de que a ANS esteja fazendo o papel dela de agência reguladora, muito pelo contrário. Durante todo o ano passado, o que vimos foi uma ANS atuando como advogada dos planos de saúde pra tentar implementar o rol taxativo, o que ocasionaria um apartheid no acesso à saúde suplementar. Nesse sentido, nós não temos o suporte esperado, na medida em que é uma agência reguladora do mercado de saúde suplementar. A ANS não tem agido como se espera.

Como observa a atitude do Estado brasileiro frente aos direitos das crianças autistas?

Em relação à saúde suplementar, quando a gente busca o judiciário e precisa acioná-lo, na grande maioria das vezes o entendimento é pró beneficiário, pró-saúde, baseado em evidência científica, como tem sido nos últimos 22, 24 anos, salvo algumas exceções e situações que fogem muito da curva.  Vemos um judiciário que não quer que as operadoras de saúde perpetuem e tornem crônicas práticas abusivas.

Porém, temos outra questão no Brasil: nem todas as pessoas têm acesso ao judiciário. Se você não se enquadra naquele critério de miserabilidade para a Defensoria Pública, precisa buscar o advogado particular, e muitas vezes não consegue pagá-lo.

Portanto, tem esse recorte social, pois não são todas as pessoas que de fato têm acesso à justiça.

Como avalia nosso atual estágio de política pública para crianças autistas?

Vemos que o Estado brasileiro está enfraquecido e desmontado. Tivemos grandes avanços há alguns anos, como em 2009, quando assinamos a convenção internacional dos direitos das pessoas com deficiência, que virou lei em 2015. Mas, como diz um amigo meu, “daí pra frente, só pra trás”. Porque temos o descumprimento reiterado e crônico de todos os direitos da pessoa com deficiência, tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada no que compete a ela em termos de concessão de saúde suplementar, assim como na educação privada.

Temos um Estado desmontado pra fornecer educação inclusiva, as terapias básicas do SUS, nós temos municípios que estão dando papel timbrado, por escrito, para afirmar que não têm condições de fornecer as terapias que a própria neuropediatra do SUS indicou. Temos ataques constantes à legislação, por parte principalmente dos estabelecimentos particulares de ensino e de saúde. Estamos num momento de terra arrasada.

Estamos tentando nos recompor minimamente, tentando voltar para onde estávamos em 2015 no que diz respeito a tudo isso. Não estou dizendo que era tudo perfeito, que nunca tínhamos problema, seria uma grande hipocrisia. Mas a segregação e esse viés eugenista que separa pessoas perfeitas das pessoas com deficiência, um padrão que é criado na sociedade, tem se intensificado nos últimos anos. Isso é muito perigoso.

Vemos que o movimento de famílias, mais notadamente mães, de crianças autistas tem alto grau de mobilização e atuação, o que tem aumentado a visibilidade de questões relativas a direitos de tais pessoas. Como esse movimento foi se formando e fortalecendo?

A crescente do movimento de familiares de pessoas com deficiência é um levante que vem historicamente sendo registrado desde as décadas de 60, 70, quando começamos a falar mais sobre direitos humanos, garantias fundamentais, não no Brasil, mas de modo geral. Depois, na década de 90 começamos a falar de “neurodivergência”, tentando tirar o viés assistencialista e capacitista que recaía sobre a condição das pessoas com deficiência.

Eu costumo dizer que a mobilização social move montanhas. Se estivermos mobilizados socialmente nós vamos conseguir. Foi por isso que a gente conseguiu derrubar o rol taxativo no Congresso Nacional. Foi tudo pautado pela atuação de mães, de grupos de mães, alguns pais também, enfim, sociedade civil organizada em busca de direitos das pessoas com deficiência. E a grande maioria ali eram mães e alguns pais de pessoas com deficiência.

Quando você estudou na escola, no ensino fundamental, infantil, tinha alguma criança autista diagnosticada na sua sala? Não se explicava às claras, “gente, são os nossos colegas, o fulano tem TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), o beltrano tem paralisia cerebral”. Não era uma conversa clara. Foi sempre assim. Vamos passar por cima disso. Vamos ignorar. Não vamos falar sobre isso. É um palavrão falarmos que alguém tem uma deficiência. Estamos falando de séculos e séculos de uma sociedade que quer esconder as pessoas com deficiência. E isso cansa a família, sobrecarrega. Porque isso torna aquela família e aquela pessoa invisíveis pra sociedade.

Ao longo dos anos, penso que em boa parte com o advento da internet e das redes sociais, as pessoas foram se encontrando, se unindo e fazendo mobilizações sociais importantes. Começava-se sempre como um grupo de apoio mútuo entre pessoas muito desgastadas, porque não há com quem dividir as angústias e terminava com um grupo disposto a fazer uma mobilização para que aquela minoria não viva sem direitos e seja respeitada. Foi assim que se fez nossa trajetória, é mais ou menos o que acontece conosco.

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