O entrevista-bomba e o estratagema de Bolsonaro

Fábio Wajngarten expõe negligência grotesca do governo na busca de vacinas. Tentativa de queimar Pazuello para proteger o chefe? E mais: piora vacinação no Brasil, mas avança, em todo o mundo, a luta pela quebra de patentes

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JOGADA ENSAIADA?

“Incompetência e ineficiência”. Assim o ex-titular da Secretaria de Comunicação do governo, Fábio Wajngarten, resumiu a atuação do Ministério da Saúde na negociação para a compra da vacina da Pfizer. Em entrevista à Veja, o publicitário tentou imputar toda a culpa ao “time” do ex-ministro Eduardo Pazuello – eximindo Jair Bolsonaro de responsabilidade. “Se as coisas não aconteceram, não foi por culpa do Planalto. Ele era abastecido com informações erradas, não sei se por dolo, incompetência ou as duas coisas”, afirmou.

Wajngarten disse que foi procurado por “um dono de veículo de comunicação” que informou que a farmacêutica tinha enviado uma carta ao governo oferecendo milhões de doses de vacinas. “Liguei para a sede e me apresentei. No mesmo dia, o CEO da empresa me retornou. Foi uma conversa surpreendente. Ele relatou o que havia acontecido – ou melhor, o que não havia acontecido. O Ministério da Saúde nem sequer havia respondido à carta”. 

A partir daí, o ex-secretário de comunicação afirma ter aberto “as portas do Palácio do Planalto” à Pfizer. “Convidei os diretores da empresa a vir a Brasília. Fizemos várias reuniões. Fui o primeiro a ver a caixa que armazenava as vacinas a menos 70 graus. Eu também levei a caixa para o presidente Bolsonaro ver”, conta, acrescentando que a empresa estava disposta a “antecipar entregas, aumentar os volumes” e cobrar menos de US$ 10 por dose, bem abaixo dos US$ 30 cobrados de Israel. “Infelizmente, as coisas travavam no Ministério da Saúde”. Segundo ele, por conta das “três famosas cláusulas leoninas do contrato”. 

A Pfizer queria que o foro para a solução de eventuais conflitos fosse baseado em Nova York, também a isenção de responsabilização por eventos adversos causados pelo imunizante e que o Brasil apontasse ativos que cobrissem potenciais danos financeiros com indenização. “Houve várias reuniões para discutir e tentar superar esses obstáculos”, disse à revista. “Quando você tem um laboratório americano com cinco escritórios de advocacia apoiando uma negociação que envolve cifras milionárias e do outro lado um time pequeno, tímido, sem experiência, é isso que acontece”, criticou. 

Wajngarten tenta pintar um quadro em que Bolsonaro e Paulo Guedes estavam de acordo com a compra, mas no meio do caminho havia “a equipe que gerenciava o Ministério da Saúde”. 

A Pfizer ofereceu ao governo brasileiro no dia 15 de agosto a opção de comprar 70 milhões de doses, com entrega prevista a partir de dezembro passado. Quase um mês depois, em 12 de setembro, o CEO mundial da farmacêutica, Abert Boula, enviou uma carta não só a Pazuello, mas também ao presidente brasileiro e ao ministro da Economia, pedindo celeridade nas negociações.  

Há duas interpretações da entrevista circulando na imprensa. Alguns “por integrantes da equipe de Jair Bolsonaro”, teriam recebido a jogada de Wajngarten “como um gesto de canalhice e covardia”. “As palavras foram usadas por um dos ministros do governo, que afirma que, ao atirar no ex-ministro Eduardo Pazuello, Wajngarten fatalmente atinge Bolsonaro, ainda que pareça poupá-lo”, informa a coluna de Mônica Bergamo.

Mas entre deputados “prevalece a leitura de que as declarações de Wajngarten buscam tentar jogar a responsabilidade do agravamento da crise sanitária no colo de Pazuello e foram uma jogada ensaiada entre o ex-chefe da Secom e Bolsonaro”, apurou o Valor. Segundo o jornal, na leitura dos parlamentares a estratégia não foi “bem amarrada”, já que há vários registros oficiais que mostram a ausência de autonomia do ex-ministro da Saúde em relação ao presidente. “Nos bastidores, até mesmo aliados do Centrão falam em ‘jogo duplo de Bolsonaro’, que, na avaliação deles, deu aval para que o ex-secretário fizesse as declarações, enquanto prepara o terreno para acomodar Pazuello em um cargo dentro do Palácio do Planalto”. 

Como efeito concreto, Wajngarten – que já seria ouvido – agora deve ser um dos primeiros convocados pela CPI da Covid. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) já escreveu o requerimento em que o ex-secretário de comunicação falará na condição de testemunha, e pede para que ele disponibilize “e-mails, registros telefônicos, cópias de minutas do contrato, dentre outras provas para confirmar sua afirmação”.

Wajngarten também tem muito a explicar pela sua atuação na Secretaria de Comunicação. Para ficar em um exemplo: foi na sua gestão que foi veiculada a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, que estimulava a livre circulação de pessoas e vírus e só foi tirada do ar porque a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF ameaçou processá-lo por improbidade administrativa. 

Wajngarten foi indicado ao governo por Meyer Nigri, dono da construtora Tecnisa – que também teria sido responsável pela indicação de Ricardo Salles e de Nelson Teich. 

TREINE SEU GENERAL

O governo teme que Eduardo Pazuello se descontrole na CPI da Covid da mesma forma como perdeu as estribeiras na despedida do Ministério da Saúde, quando afirmou que existe um esquema de distribuição de verbas – ou “pixulé” – para favorecer políticos na pasta.

Para evitar mais ‘revelações’, o general da ativa usará seu tempo para se “debruçar sobre uma série de documentos, dados e informações oficiais que reforcem a narrativa de que o governo não foi omisso na pandemia nem na crise do oxigênio em Manaus”, diz O Globo.  

É sempre bom lembrar que esse intensivo de Pazuello será pago pela Viúva, já que o militar está para receber um cargo na Secretaria-Geral da Presidência. E o melhor de tudo é que o chefe do general, ministro Onyx Lorenzoni, foi escalado para treiná-lo e “evitar que o ex-ministro se desestabilize diante da pressão”.

Não é só. Segundo o jornal, Pazuello terá à sua disposição um grupo de trabalho formado por integrantes de diferentes ministérios. E quem vai reunir as informações necessárias para responder aos questionamentos da CPI é outro investigado em potencial: o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, nomeado assessor especial da Casa Civil na última sexta-feira. 

O GT é uma ideia do ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, e deve se reunir semanalmente no Planalto, para elaborar um roteiro que será utilizado para integrantes do governo se defenderem na CPI. Dentre os participantes, estão servidores da Saúde, Defesa, Economia, do Itamaraty, Comunicações, da Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU) e Secretaria de Governo, entre outros. 

Nesse sentido, a Casa Civil pediu a vários ministérios um relatório de todas as ações tomadas no combate à pandemia, principalmente em relação a 23 acusações mapeadas pelo próprio governo. Estão na lista a negligência na compra de vacinas, a promoção do mentiroso “tratamento precoce” contra a covid-19, a militarização do Ministério da Saúde, a minimização da gravidade da pandemia, a ausência de incentivo à adoção de medidas restritivas para reduzir o contágio pela doença, etc.

REAFIRMAÇÃO COMO ESTRATÉGIA

Além do cargo e do treinamento, Eduardo Pazuello também tem recebido convites para viagens e elogios de Jair Bolsonaro. Além da ida ao interior de Goiás semana retrasada, na sexta-feira o general da ativa foi levado a… Manaus. 

No epicentro de uma das piores crises do governo durante a pandemia, o presidente recebeu uma homenagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas: o título de cidadão amazonense

Bolsonaro afirmou que a homenagem “é sinal” de que seu trabalho e o de Pazuello “foi muito bem feito”. Simpatizantes de Bolsonaro, que se aglomeraram com permissão dos organizadores do evento, gritavam “Pazuello governador”. 

Mais tarde, já sob o efeito da entrevista de Fábio Wajngarten, o presidente afirmou que o general não teve culpa pelo atraso na compra da vacina da Pfizer. “Seria uma irresponsabilidade do governo despender recursos para algo que ninguém sabia o que era ainda porque não estava ainda no mercado”. É claro que ele se esquece que o contrato com a AstraZeneca foi assinado muito antes de a vacina ter seu uso emergencial aprovado pela Anvisa… 

Em Manaus, afirmou que o Exército pode ir “para a rua” para, segundo ele, reestabelecer o “direito de ir e vir e acabar com essa covardia de toque de recolher”.

E na quinta-feira, durante a transmissão ao vivo, Bolsonaro voltou a falar em hidroxicloroquina – ou melhor, de “um negócio” que tomou que serve para tratar malária, artrite e lúpus, numa referência clara ao medicamento. 

Ligando todos esses pontos, senadores que compõem a CPI da Covid enxergam que está em curso uma tentativa de Bolsonaro de mobilizar a sua base para compensar a vulnerabilidade no colegiado. “Em caráter reservado, parlamentares que preferem não se identificar afirmam que a posição de Bolsonaro provavelmente reflete uma nova estratégia, a de partir para o confronto fora do ambiente da CPI, uma vez que não terá controle sobre o andamento das investigações”, informa a Folha.

UM MÊS NO CARGO

Na sexta-feira, Marcelo Queiroga completou um mês no comando do Ministério da Saúde. Assim que assumiu o cargo, prometeu lançar um protocolo com orientações para o transporte público. Até hoje, nada. 

E a data foi marcada exatamente pelo anúncio de um outro protocolo. Ao Globo, o ministro disse que sua equipe trabalha para apresentar à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec) uma “análise de todos os fármacos que se usam no tratamento da covid-19, qualificando a evidência científica que há em relação a cada um deles”. Inclusive da cloroquina e da ivermectina.

Pois é… Segundo Queiroga, há “o desejo do presidente da República de que os médicos tenham a autonomia de tomar as melhores decisões para seus pacientes”. 

“Sabemos que a covid foi descoberta no final de 2019 e, àquela época, não havia tratamento específico e ainda hoje não há tratamento específico. Várias medicações foram aventadas entre elas essas que você citou (cloroquina e ivermectina). Hoje há consenso amplo de que essa medicação em pacientes com covid grave, em grau avançado, não tem ação, embora em pacientes no estágio inicial, existem alguns estudos observacionais que mostram alguns benefícios desses dois fármacos que você citou. É uma questão técnica que médicos avaliam e, aí, tomam a decisão em relação à prescrição”, disse. 

Perguntado sobre quais estudos seriam esses, o ministro se limitou a dizer: “Tem vários estudos. Não vou nominar”. 

PAROU DE CRESCER

Após um breve período de melhora, o ritmo da vacinação no Brasil estagnou. Um mês atrás o momento era de aceleração, com a marca de um milhão de doses por dia tendo sido alcançada pela primeira vem em  1º de abril. Se em 15 de março a média diária era de 343 mil doses aplicadas, saltou para 700 mil apenas duas semanas depois. Mas o número vem crescendo muito pouco deste então: nos últimos sete dias, o número de doses aplicadas passou de 35,8 milhões para 41,6 milhões, juntando primeiras e segundas doses – a média diária foi de cerca de 830 mil. Isso segundo a imprensa, que recolhe dados junto aos estados. O painel oficial do Ministério da Saúde está sempre atrasado e os números lá são significativamente piores: nas contas do governo federal, só foram aplicadas 38 milhões de doses.

Como observa a reportagem da Folha, o aumento do ritmo em março aconteceu depois de o Ministério da Saúde orientar que estados e municípios parassem de guardar imunizantes até então reservados para a segunda dose. O ganho de velocidade foi portanto artificial, não significando necessariamente um aumento das doses disponíveis. Desde então, temos visto pausas nas aplicações por falta de segunda dose. A última notícia do tipo vem de Maceió (AL), que ontem mesmo suspendeu a vacinação com o reforço da CoronaVac.

TROCA-TROCA

Em todo o país, pelo menos 16,5 mil pessoas tomaram a primeira dose da  vacina de Oxford/AstraZeneca e a segunda da CoronaVac – ou vice-versa –, mostra uma reportagem da Folha a partir de dados do Datasus. O erro aconteceu em quase todo o país, menos o Acre e no Rio Grande do Norte.

Desnecessário dizer que a mistura das duas não foi testada, portanto não se sabe o resultado. Elas têm tecnologias totalmente diferentes, e intervalos entre as doses também distintos: três meses para a da AstraZeneca, quatro semanas para a CoronaVac. “Quem tomou uma dose de um fabricante e outra dose de outro não tomou nenhuma dose completa da vacina”, resume a imunologista Cristina Bonorino, dos comitês científico e clínico da Sociedade Brasileira de Imunologia. 

O pior é que, aparentemente, não há nenhuma orientação do Programa Nacional de Imunização sobre o que fazer depois que esse tipo de erro acontece.

REDUÇÃO

E o Ministério da Saúde atualizou mais uma vez o cronograma com a previsão de entrega de vacinas contra a covid-19. No primeiro semestre, o país deve ter 22,5% menos doses do que o estimado. Considerando só a previsão que havia para maio, a redução é de 31%: de cada 100 doses prometidas, só 69 chegarão. O calendário foi divulgado no sábado em coletiva de imprensa, depois de uma ordem do ministro do STF Ricardo Lewandowski. A última previsão tinha sido feita há mais de um mês, em 19 de março.

Como a disponibilidade de vacinas está atrelada, até agora, à importação de insumos, há grande expectativa sobre o começo da produção totalmente nacional pela Fiocruz. Mas as coisas não vão bem: o contrato de transferência de tecnologia com a AstraZeneca não foi assinado, não há cronograma de entrega e a planta industrial para a produção ainda não foi aprovada pela Anvisa. Também não há nenhum plano de ação para o caso de atrasos. As informações constam de um documento entregue pela Fundação ao TCU em 24 de março, e que foi obtido pela Folha. A instituição disse à reportagem que ainda não há previsão para a assinatura do contrato, que deveria ter sido feita no ano passado.

SITUAÇÃO ATUAL

A covid-19 já matou em 2021 mais brasileiros do que em todo o ano passado. Foram cerca 196 óbitos desde o início de janeiro, pouco mais do que os 195 mil registrados em 2020. Os números estão caindo, porém. Apesar de a média móvel de mortes continuar alta (em 2,5 mil), ela vem baixando progressivamente, e o número de ontem é 20% menor que o de 14 dias atrás.

Como já dissemos por aqui, a melhora é em grande parte resultado das medidas restritivas adotadas por estados e municípios. O problema é que os hospitais continuam abarrotados. Há um mês o monitoramento da Fiocruz apontou que passávamos pelo maior colapso sanitário da história, com 25 unidades federativas com taxas de ocupação de UTI acima de 90%. Pois agora ainda são 22.  Entre elas, 14 estados e o Distrito Federal têm mais de 90% de suas vagas ocupadas.

RETRATO DA CONCENTRAÇÃO

O mundo atingiu neste sábado uma impressionante marca: menos de cinco meses após o início das primeiras campanhas de vacinação contra a covid-19, chegou-se a um bilhão de doses aplicadas. Quase 13% dos habitantes do planeta receberam alguma dose de vacina. Só que quase 60% do total foram para apenas três países: Estados Unidos (222 milhões), China (216 milhões) e Índia (138 milhões). Nos dois últimos, as populações são tão gigantescas que mesmo assim a cobertura vacinal continua pequena. Países de baixa renda só receberam 0,3% de todas as doses administradas até agora.

Do diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, em artigo no New York Times: “O problema com o inferno é o seguinte: se você joga água em apenas uma parte dele, o resto continuará queimando”.

Mais de dois milhões de pessoas assinaram petições enviadas à Casa Branca com um propósito: convencer o governo Joe Biden a apoiar a proposta de quebra temporária de pantentes que está em discussão na OMC. Se os EUA afinal mudarem sua posição, isso será importante para destravar aquele que é possivelmente o único movimento capaz de permitir o acesso universal à vacinação. Por ora, o embate continua travado. Além dos EUA, a União Europeia, o Reino Unido e a Suíça são contra.

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