Consu: o governo se enrosca em sua própria teia

Declarações constrangedoras de Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos foram feitas no conselho recriado por Temer — e mantido por Bolsonaro — para tramar a privatização do SUS. Entenda o que é ele. E mais: a CPI tenta cercar os genocidas

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POR QUE O CONSU NÃO DEVERIA EXISTIR

O governo Michel Temer estava decidido a mudar as regras dos planos de saúde, em sintonia com os desejos de algumas empresas do setor. Assim que assumiu, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, falava dia sim, dia também sobre a “importância” de aprovar regras mais flexíveis que tornariam os planos mais populares ou acessíveis. Segundo ele, mais participação privada seria a “grande solução para o SUS”. 

No meio do caminho, tinha algumas pedras, entre elas a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – responsável por regular o setor.  Nesse contexto, o governo resolveu ressuscitar os mortos, e reativou o Consu, Conselho de Saúde Suplementar, 18 anos depois do seu esvaziamento.

Antes da criação da ANS, cabia ao conselho formado por ministros aprovar as regras que ordenam o mercado de planos e seguros de saúde. Depois que a agência foi criada, entendeu-se que o Estado tinha investido em um corpo técnico especializado para debater e decidir sobre esses temas. 

Ontem, o governo Jair Bolsonaro deu um ótimo exemplo do erro pregresso de reativar o Consu. Ao invés de discussões técnicas, os ministros da Casa Civil – que comanda o colegiado –, e da Economia conduziram uma espécie de conversa de boteco, regada a confissões e fake news – além, é claro, dos chavões de sempre contra o papel do Estado na garantia do direito à saúde. 

Antes de resumir esse festival de declarações lamentáveis, chamamos atenção para um ponto que não entrou no radar do noticiário. As reuniões das diretorias colegiadas das agências são transmitidas ao vivo, ficam gravadas. Pode-se discordar das decisões tomadas, mas pelo menos acontecem em um clima republicano. O mal-estar da reunião do Consu ontem se deu justamente quando Paulo Guedes foi avisado que a agenda estava sendo gravada. “Só não manda para o ar por favor”, pediu o ministro a assessores do Ministério da Saúde. A pasta tirou das suas redes o vídeo do encontro, recuperado e reproduzido apenas nas suas partes mais esdrúxulas pela CBN

Guedes não queria que fosse a público seu endosso à teoria da conspiração, difundida nos meios bolsonaristas, de que o governo chinês criou o SARS-CoV-2 em laboratório. Segundo o ministro da Economia, “o chinês inventou o vírus e a vacina dele é menos efetiva que a do americano”. O “argumento” continua: “O americano tem cem anos de investimento em pesquisa. Os caras falam: qual é o vírus? É esse? Tá bom. Decodifica. Tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor que as outras. Então vamos acreditar no setor privado”. Como bem lembrou o G1, o titular da Economia se engana no geral e no detalhe: “a vacina da Pfizer não foi desenvolvida por americanos, mas por um casal de cientistas alemães de origem turca, dono da empresa BioNTech”.

O embaixador da China não perdeu tempo: no Twitter, Yang Wanming lembrou que o país asiático forneceu, até agora, 95% das vacinas e insumos para fabricação de imunizantes usados pelo Brasil – e que 84% das doses aplicadas por aqui são de CoronaVac

Paulo Guedes se viu obrigado a fazer uma retratação: “Eu usei uma imagem infeliz. Nós estávamos em uma reunião interna nossa e falávamos sobre a necessidade do setor privado de saúde complementar nos ajudar no combate à pandemia e como é importante que esse setor privado possa colaborar. E, tratando disso, elogiando o setor privado, usei uma imagem que é o seguinte: veja só, esse vírus que veio de fora e atinge uma economia de mercado forte, como são os EUA e encontra empresas como Pfizer e Roche, como ele consegue produzir respostas”. E emendou: “Eu tomei a CoronaVac”. 

Falando em tomar vacina, a reunião do Consu foi palco para uma confissão do ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos. Ele afirmou que tomou “escondido” a vacina contra a covid-19. “Tomei escondido, né, porque era a orientação, mas vazou (…). Não tenho vergonha, não. Vou ser sincero: eu, como qualquer ser humano, quero viver. Tenho dois netos maravilhosos, uma mulher linda. Tenho sonhos ainda. Quero viver, porra! Se a ciência, a medicina, está dizendo que é vacina, quem sou eu para me contrapor?”

Não ficou só aí. Ramos usou o espaço institucional para desabafar sobre seus esforços de convencer Bolsonaro a se vacinar. “Estou envolvido pessoalmente, tentando convencer o nosso presidente, independente de todos os posicionamentos. E nós não podemos perder o presidente para um vírus desse. A vida dele no momento corre risco. Ele tem 65 anos”.

Quase 400 mil mortes depois, o ministro reconheceu que a pandemia é grave, pois chegou a conhecidos dele: “E tenho tentado convencer o presidente de que essa cepa – eu tive covid em outubro do ano passado – ela é uma variante muito violenta que está ceifando vidas e próximas da gente. Na outra leva, isso não acontecia. Eu tenho um coronel que trabalha comigo na reserva, um homem de 38 anos, saudável, fazia maratona, tudo. Pegou covid e em dez dias morreu”, disse.

Pois é… E se Ramos “quer viver”, seu colega de Esplanada reeditou a lógica daquele discurso de que “todo mundo queria ir a Disney” – até empregadas domésticas – para reclamar da longevidade conquistada pela população brasileira. “Todo mundo quer viver cem anos, 120, 130 [anos]”, declarou Guedes. Segundo ele, “não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar” as demandas de atenção à saúde dos brasileiros na medida em que envelhecem. De acordo com o ministro, não foi a pandemia que “tirou a capacidade de atendimento do setor público” mas sim “o avanço na medicina” e “o direito à vida”.

Em 2020, a expectativa de vida ao nascer caiu um ano, caindo a 75,4 anos. Quem ouve Guedes falar pensa que faz parte de um projeto de governo em prol das contas públicas… Lembra outra integrante do governo, a superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Solange Vieira, que segundo múltiplos relatos afirmou em uma reunião no ministério da Saúde em maio do ano passado que era “bom” que as mortes se concentrassem “entre os idosos”. “Isso vai melhorar nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”.

Por fim, Paulo Guedes voltou a defender a criticada ideia de que o Estado banque vouchers para atendimento privado de saúde. “Você é pobre, você tá doente, tá aqui seu ‘voucher’. Vai no [hospital Albert] Einstein, se você quiser. Vai aonde você quiser, tá aqui o ‘voucher’. Se quiser, você vai no SUS”. Segundo o ministro, no futuro, o setor privado vai responder pela maior parte do atendimento de saúde no país.

A reunião do Consu contou com a presença do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, do secretário-executivo da pasta, Rodrigo Cruz; do assessor especial, Daniel Pereira; e do ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres.

CPI INSTALADA

A CPI da Pandemia foi instalada ontem – e o primeiro dia de funcionamento do colegiado foi de derrotas seguidas para o governo Jair Bolsonaro. Os aliados do Planalto lançaram mão do “kit obstrução'”: foram mais de duas horas tentando barrar a eleição do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), e depois a indicação de Renan Calheiros (MDB-AL) como relator. No processo, o governista Ciro Nogueira (PP-PI) rachou com os colegas da base aliada e votou não em Eduardo Girão (Podemos-CE), mas em Aziz.

Já o filho 01, Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), fez queixas sobre a “ingratidão” do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que manteve a instalação da comissão, a despeito da liminar que barrava a indicação de Renan: “Pacheco diz que decisão [do STF] não se discute, se cumpre. Mas passados alguns dias, a Justiça determina que Renan não seja relator, e ele diz que não vai cumprir”. Segundo o senador, Pacheco não teve “consideração” pelo governo por não “buscá-lo” para ouvir o ponto de vista do Planalto. E a despeito de todo o histórico familiar, chamou o presidente do Senado de “irresponsável” porque “em algum momento as audiências e as sessões terão que ser presenciais”, e isso seria um risco para parlamentares e funcionários. 

Mas nada disso deu certo – e, para completar, no meio da confusão para impedir a assunção de Renan à relatoria, os senadores foram informados que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região havia caçado a liminar do juiz Charles Renaud Frazão de Moraes que impedia o emedebista de ser nomeado.

Empossado, o emedebista fez um discurso duro contra Bolsonaro: “Não foi o acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência e eles serão responsabilizados. Essa será a resposta para nos reconectarmos com o planeta. Os crimes contra humanidade não prescrevem jamais e são transnacionais. Slobodan Milosevic [ditador sérvio, 1941-2006], e Augusto Pinochet [ditador chileno, 1915-2006] são exemplos históricos. Façamos nossa parte”, disse.

Renan anunciou que vai requisitar todos os documentos do governo federal sobre a aquisição de vacinas, aquisição de medicamentos ineficazes contra a covid-19, crise de Manaus… O martelo sobre o plano de trabalho será batido amanhã, durante a segunda reunião do colegiado. 
Há um acordo que prevê que o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, seja o primeiro a ser ouvido, na terça-feira que vem. Dessa forma, a comissão seguiria a ordem cronológica, chamando depois Nelson Teich, Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga. 

Já são mais de 170 requerimentos apresentados ao colegiado. Muitos deles fazem parte da estratégia do governo. Parlamentares aliados querem ouvir médicos que defendem o uso de cloroquina & cia, como Nise Yamaguchi – que na quinta-feira passada, esteve no Palácio do Planalto para uma reunião. Também faz parte dessa estratégia tentar desviar o foco do governo federal para estados e municípios, com solicitações de informações sobre o uso dos recursos transferidos pela União na pandemia. 

“Os requerimentos dependem da aprovação da maioria da comissão – os governistas estão em minoria, com quatro dos 11 membros titulares”, destaca uma matéria d´O Globo.Em tempo: Uma reportagem no site da revista Nature entrevistou cientistas brasileiros e mostra ao mundo uma lista enorme de críticas a Jair Bolsonaro, dentre elas a que o presidente provocou “uma crise épica na saúde pública”. 

REPERCUSSÕES

Kirill Dmitriev, diretor do fundo que financiou o desenvolvimento da vacina Sputnik V, disse em coletiva de imprensa que a rejeição da Anvisa à importação emergencial do imunizante foi uma decisão “política e tendenciosa”, fruto da pressão dos EUA.  Ele se referiu ao já conhecido relatório oficial norte-americano que, ao descrever as atividades realizadas pelo governo Trump, menciona que o adido de saúde do país “persuadiu o Brasil a rejeitar  a vacina russa”.

Essa é a posição oficial dos desenvolvedores do produto: “Os atrasos da Anvisa na aprovação da Sputnik V são, infelizmente, de natureza política e não têm nada a ver com acesso à informação ou ciência”, diz um comunicado à imprensa publicado no site da vacina e no seu perfil do Twitter. O texto afirma que adenovírus replicantes não foram encontrados em nenhum lote produzido da Sputnik V, e que só são usados vetores adenovirais não replicantes do tipo E1 e E3, inofensivos a seres humanos. 

Ao ValorDmitriev disse que a Anvisa divulgou “fake news” e misturou coisas substancialmente diferentes quando chegou a criticar a aprovação de produtos dos concorrentes: “É muito estranho. Ao mesmo tempo, autorizam vacina no Brasil que tem casos de trombose venosa cerebral severa”, disse, referindo-se às vacinas da AstraZeneca e da Janssen. Como se sabe, os dados completos sobre esses casos foram ostensivamente analisados pela OMS e pela agência europeia, que reconheceram o problema como um efeito raríssimo. 

O fundo russo ainda não forneceu os dados brutos sobre a vacina. No Twitter, porém, chamou a agência brasileira para um “debate público perante a comissão competente do Congresso“. A comunidade científica – incluindo quem sempre havia advogado pela aprovação do imunizante – elogiou a decisão da Anvisa, com base nas informações disponíveis até agora.

Já o conjunto de governadores que pede a importação emergencial pretende contestar o veto da agência, apresentando novos dados e solicitando novo parecer. “Vamos reunir um grupo de cientistas da Bahia, fazer uma reunião com o Instituto Gamaleya (responsável pela vacina) para discutir os pontos específicos apontados pela Anvisa”, diz Fábio Villas-Boas, secretário de saúde da Bahia, na matéria do Estadão. Segundo o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), o parecer técnico será levado ao STF. A expectativa é que o ministro Ricardo Lewandowski autorize a compra. 
Ou seja: pode ser que no fim das contas a definição sobre o uso do imunizante acabe nas mãos da Justiça, e não do órgão regulador. Não sabemos que tipo de precedente isso poderia abrir.

HAVERÁ MUDANÇAS?

Quase 400 membros do Parlamento Europeu (MEPs) e de parlamentos nacionais de vários países da União Europeia emitiram ontem um apelo conjunto, pedindo que o bloco mude ideia quanto à quebra temporária de patentes durante a pandemia. Já falamos muito aqui sobre essa proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul, que é apoiada por cerca de 100 países e pelo diretor-geral da OMS, mas está empacada há meses na Organização do Comércio (OMC) por resistência dos países europeus e dos Estados Unidos. 

Health Policy Watch nota que essa é só mais uma entre várias iniciativas recentes para pressionar esses governos por posições mais razoáveis. A explosão da covid-19 na Índia – com a consequente interrupção em suas exportações de imunizantes, que apertou ainda mais o nó do desabastecimento global – pode ser o começo de um ponto de virada. A Covax Facility, que depende não só de recursos financeiros como também da oferta de vacina, chegou a 120 países mas só conseguiu entregar 48  milhões de doses até agora. O objetivo é chegar a dois bilhões.

No início da semana, comentamos que mais de dois milhões de pessoas assinaram petições enviadas à Casa Branca demandando que os EUA apoiem o licenciamento compulsório. E, segundo a Reuters, o governo finalmente está avaliando essa possibilidade. Mas nenhuma decisão foi tomada ainda: “Há muitas maneiras diferentes de fazer isso [aumentar a oferta global de imunizantes]. Agora, essa [a quebra de patentes] seria uma das maneiras, mas precisamos analisar o que faz mais sentido”, disse ontem a secretária de imprensa Jen Psaki.

Nesta sexta vai haver um novo debate na OMC sobre isso. 

PRÓ-MONOPÓLIO

No Intercept, a repórter Tatiana Dias fala de como o lobby contra a quebra de patentes despejou R$ 1,5 milhão em jornais brasileiros para pagar por publieditoriais, que são peças de propaganda com “cara” de reportagem – elas vêm com manchete, infográficos e texto com linguagem jornalística, mas com um selinho (que pode muito bem passar batido) avisando que se trata de publicidade.

Nesse caso, não se tratava de uma campanha voltada para as vacinas na pandemia. O alvo era a análise do STF sobre o artigo 40 da Lei de Propriedade Intelectual, que permite que no Brasil o prazo de vigência das patentes se estendam para muito além dos 20 anos inicialmente determinados. O julgamento do Supremo estava marcado para o início do mês, e foi nessa época  que as falsas reportagens se multiplicaram. Mas foi adiado e está na pauta de hoje. Por isso, os veículos de comunicação estão novamente inundados por esse tipo de peça, como esta, produzida pela Interfarma.

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