Farmacêuticas contra a ética em pesquisa clínica no Brasil

Câmara aprova projeto de lei que atropela atual Conselho Nacional de Ética em Pesquisa. O argumento: suposta lentidão nos processos. Mas pode causar graves danos, ao fragilizar direitos dos voluntários e afastar a participação popular do processo

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Na quarta, 29 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 7082, de 2017, apresentado pela ex-senadora Ana Amélia (PSD-RS), que praticamente destrói o atual regramento sobre pesquisas farmacêuticas com seres humanos. O projeto retira do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) o poder de aprovar e validar pesquisas, em especial de fármacos. O Conep é vinculado ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), cuja composição tem larga representatividade de profissionais de saúde, universidades e sociedade civil.

Aprovada a proposta, qualquer um dos 878 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), instâncias inferiores ao Conep espalhadas pelo Brasil, pode validar a liberação de tratamentos ou produtos farmacêuticos da mais alta importância na sociedade, e que poderão ser absorvidos pelo SUS. Repudiado por todas as associações e movimentos relevantes do campo da saúde, o PL defendido pela direita parlamentar parece defender interesses privados bastante específicos.

“O processo de pesquisa nem sempre foi ético. Muitas atrocidades foram feitas em pesquisas científicas, e foi necessário criar diretrizes. O sistema brasileiro se divide entre antes e depois da Conep”, explicou Dirceu Greco, doutor em Medicina Tropical, no podcast AbraSUS, do Conselho Nacional de Saúde.

O sistema ao qual se refere foi criado em 1996, a fim de estabelecer um controle social da pesquisa. De forma inovadora, garante o direito dos voluntários a acessar seus resultados e também a receber o produto em questão por tempo indeterminado, ou até sua absorção pelo sistema público – caso a iniciativa seja bem sucedida. O PL retira esses direitos e garantias e, de forma pusilânime, afirma que está a resguardar a ética na pesquisa.

Como explicou Laís Bonilha, coordenadora da Conep, o acesso à informação e mesmo ao novo remédio por parte do participante é uma característica preciosa do sistema brasileiro e inclusive atraiu empresas e pesquisas ao país.

“Temos um sistema estruturado e capilarizado há 27 anos. A Conep organiza todo o sistema, faz atualizações, controla cadastros e organiza os CEPs. As pesquisas são desenvolvidas no país todo, algo muito importante para a sociedade. É importante fomentar a pesquisa no país e para isso é necessário ter garantia ética nas pesquisas desenvolvidas com humanos. Precisamos da cultura de que é seguro e confiável participar de pesquisas, a sociedade precisa confiar nelas”, explicou Laís, no mesmo podcast.

Como ambos deixaram claro na entrevista conduzida pela jornalista Natália Ribeiro, o surrado argumento neoliberal de que a atual estrutura de funcionamento é lenta e burocrática não passa de uma fraude. “É um perigo destruir um sistema que se mostra funcional. Existia uma dificuldade quando ele se estruturava, mas tal argumento já está ultrapassado. Mais de 50% dos pareceres da Conep são emitidos na metade do tempo combinado, de 60 dias. A gestão do sistema evoluiu e consegue emitir pareceres cada vez mais rápidos. São 93% de pareceres dentro do prazo”, elucidou Laís Bonilha.

Apoiado por um grupo de parlamentares que não tem nenhuma contribuição sólida para a produção de políticas públicas em Saúde, ou mesmo para o aprofundamento da democracia em seu sentido mais amplo, o projeto de lei (PL) que quer tirar a atribuição do Conep merece ser tratado com a máxima desconfiança. Chega a ser tão nocivo que, como explica Laís Bonilha, pode afastar até as grandes empresas financiadoras de pesquisas:

“Insisto no clima de desenvolvimento de pesquisa. O patrocinador estrangeiro não se implica em pesquisas que possam ferir a ética entre seres humanos. Às vezes patrocinadores nos buscam sem pesquisadores para saber se as coisas estão bem. Vejo a conversa de trazer mais pesquisas se desburocratizar o sistema. Mas isso não é bom pra ninguém. Nossa posição é a de proteger o participante, mas há um interesse comum a todos os entes aqui citados. O sistema sob controle social tem muito menos risco de gerar conflito de interesses. Tanto que a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde e o Departamento de Ciência e Tecnologia se pronunciaram contra.”

Mais que isso, em tempos de negacionismo científico e insistência no discurso contra vacinas, manter o atual sistema CEP/Conep é fundamental para preservar o estímulo da sociedade em contribuir com a pesquisa científica.

“A importância dessa estrutura vai muito além do interesse de pesquisadores. Pensar que só interessa a eles é uma percepção errônea, pois interessa e beneficia a todos. O sistema CEP/Conep representa essa garantia à sociedade. Isso interessa a pesquisadores, patrocinadores e sociedade. Uma motivação da participação das pessoas em pesquisas é poder acompanhar o andamento e os resultados. A visão do PL é unilateral, só de quem executa as pesquisas. E as pessoas só aderem a pesquisas na medida em que se sentem seguras”, prossegue Laís.

Como mencionado, não há apoio ao projeto em nenhum setor da sociedade comprometido com o SUS e o direito à saúde no Brasil. “A versão em tramitação apresenta, no capítulo VI, uma série de barreiras a garantia do participante em receber a medicação pós-estudo e impõe limitação de tempo, o que pode ocasionar uma série de riscos à saúde do indivíduo, e também uma pressão indevida pela incorporação de fármacos ao SUS. Com a aprovação da versão atual do substitutivo do PL 7082, o país perderá os avanços alcançados pelo Sistema CEP/Conep, que é um modelo consolidado ao longo de décadas, o qual demostrou sua força e agilidade durante o período da pandemia de covid-19, inclusive com suspensão de pesquisas eticamente não aceitáveis e encaminhamento ao Ministério Público”, publicou em nota o Fórum de Comitês de Ética em Pesquisa da Fiocruz.

Entidades como Abrasco e Frente Pela Vida também se opõem sem hesitações ao projeto, que agora segue para votação no Senado. Para Jacinta Sena, presidenta da Associação Brasileira de Enfermagem, trata-se de um movimento com interesses visíveis, com a cara de um neoliberalismo que parece cada dia mais abdicar de qualquer fachada democrática. “Foi uma derrota acachapante. As farmacêuticas realmente estão com força no Congresso. Adicionando a PEC do Plasma que vai ao plenário a qualquer momento, definitivamente assumiram a ofensiva. Toda a área da pesquisa em Saúde precisa se mobilizar contra a proposta”, sintetizou.

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