O mito das vitaminas para uma vida longa

Investimento pesado das indústrias durante a pandemia criou cenário propício para venda de suplementos vitamínicos no Brasil. Benefícios não são comprovados. Como seu uso indiscriminado tem a ver com o tempo do capitalismo

Yulia Reznikov/Getty Images
.

Aparecem aos montes novos estudos relativos aos benefícios das vitaminas, com influencers que recomendam determinadas marcas de suplementos alimentares ou até mesmo com alguma propaganda de multivitaminico na televisão. O mercado de vitaminas e suplementos passou a ser um importante foco de investimentos depois da pandemia de covid-19, movimentando hoje cerca de 110 bilhões de dólares por ano. 

“Percebemos uma incidência muito grande das grandes corporações, das indústrias farmacêuticas, inclusive com a influência na produção científica”, conta Fernando Lamarca, professor do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao Outra Saúde. Junto a colegas e alunos, ele mapeou alguns estudos publicados em 2020 que correlacionaram o uso de vitamina D com a prevenção da covid. Segundo ele, houve muitas “extrapolações” de estudos anteriores, ligados a outras doenças respiratórias, que foram usados também para a covid – ainda que faltassem testes com o novo vírus. Fernando explica que esse método é chamado de “cherry piking”: quando autores selecionam, propositalmente, apenas evidências de estudos anteriores favoráveis à narrativa de sua pesquisa.

Em um dos estudos favoráveis à profilaxia com vitamina D para a covid-19, o grupo de Lamarca identificou que, dos 7 autores, quatro deles tinham alguma relação com a indústria de produção de vitaminas. Apenas um era da área acadêmica e não tinha conflito de interesses com a pesquisa. O medo da nova doença e as incertezas científicas do momento geraram um terreno fértil para os interesses lucrativos das indústrias de suplementos, que passaram a vender artigos para um suposto aumento da imunidade contra a covid-19. 

Ele explica que muitos estudos são conduzidos desde o princípio com um viés específico, tornando-se problemáticos do ponto de vista metodológico – independente de serem lançados em períodos de epidemias ou pandemias. Nesses casos, seria necessário levar em conta uma série de requisitos: a quantidade dos dados compilados, a amostra que foi estudada (crianças, adultos, pessoas com deficiência ou sem) e o tempo de realização do estudo. A existência de conflito de interesses, muitas vezes omitida, passa pela informação sobre os pesquisadores e o financiamento do estudo em questão. 

Mel, vinho, selênio, zinco, vitamina C. A vitamina D não foi o único produto que teve sua produção científica influenciada durante o período – mas foi uma das mais emblemáticas, inclusive por ter sido incluída no “kit covid” propagandeado pelo governo federal que, na época, chegou a isentar a taxação de impostos de importação sobre os componentes do kit. A facilitação do governo somou-se a uma estratégia corporativa agressiva. Lamarca conta que seu grupo de pesquisa chegou a formalizar uma denúncia contra uma grande farmacêutica por desrespeito ao código do consumidor. 

“O que vemos é uma prática muito agressiva da indústria de suplementos, que chega a produzir evidências a favor de sua estratégia corporativa e a influenciar políticas públicas”,  explica Lamarca. De abril de 2020 a março de 2021, o consumo de vitamina D no Brasil aumentou em 100%, segundo dados do Conselho Federal de Farmácia

Com a atenuação da pandemia, o Brasil continua um território fértil para a venda de suplementos. A oferta personalizada via internet, que já era uma realidade nos Estados Unidos, vem se popularizando e, recentemente, a start-up brasileira Vitamine-se, recebeu um aporte de R$ 8 milhões de seus investidores. 

O efeito no organismo 

Em artigo recente para a Folha de São Paulo, o médico Drauzio Varella destacou a atualização da análise feita pelo United States Preventive Services Task Force, o USPSTF, a respeito do impacto dos suplementos vitamínicos no risco de doenças cardiovasculares, câncer e na mortalidade geral da população adulta. Os resultados confirmaram que não há benefícios comprovados do uso de suplementos em adultos saudáveis. No caso das vitaminas C e D, podem haver malefícios no uso exagerado, como maior risco cálculos renais.

As vitaminas, do ponto de vista biológico, desempenham várias funções no organismo, atuando como cofatores para diversas etapas de nosso metabolismo – suas quantidades corretas são essenciais, portanto, para a produção de energia.  “De uma forma geral, hoje não temos evidências de que indivíduos saudáveis necessitam de suplementação de qualquer nutriente”, explica Lamarca. A alimentação adequada e saudável, nesses casos, é suficiente para prover os nutrientes necessários para o funcionamento correto do corpo humano. “Em caso de uma deficiência nutricional constatada, certamente o indivíduo irá se beneficiar da reposição do suplemento”, conclui o nutricionista.

Diante da existência de diversas pesquisas sobre os possíveis efeitos correlacionados de suplementos e vitaminas em nosso corpo, os especialistas pedem cuidado. “As publicações são muito heterogêneas, dependem muito do público em questão. Sabemos, por exemplo, de regiões endêmicas onde existe uma deficiência de micronutrientes. Nesse caso são necessárias políticas públicas para minimizar os agravos à saúde decorrentes da hipovitaminoses”, conta Lamarca. Em outros casos, algumas doenças determinam a necessidade de uma quantidade maior de um nutriente específico. “O problema é quando essa essa necessidade de nutrientes é colocada como se fosse algo positivo para todo mundo, como aconteceu na pandemia”, argumenta. 

Para Drauzio Varella, o aumento da procura por suplementos e vitaminas, acelerado pela pandemia, tem relação com o “sonho da fonte da juventude”: os comprimidos e vitaminas estariam dando a sensação de cuidado com a saúde “sem nenhum esforço”. Mas, para além do empenho individual, existe também o desconforto imposto pelo desenvolvimento do atual sistema econômico – e suas relações de trabalho. 

“No mundo moderno e extremamente corporativo, não temos energia suficiente para fazer atividade física e não conseguimos nos alimentar bem. Acabamos dedicando todas nossas fichas a comprimidos. Precisamos rever esse processo”, argumenta Lamarca. As jornadas exaustivas de trabalho, muitas vezes precarizado, unidas à crise econômica que leva ao aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, complementam um cenário de vida pouco saudável. A realização de hábitos saudáveis implica na disposição financeira, física, mas também de tempo – para cozinhar as próprias refeições e se exercitar, por exemplo. “Essa indústria é muito inteligente. Ela se adapta ao ambiente para potencializar seus lucros e a pandemia foi um exemplo disso”, conclui Lamarca.

Leia Também: