As despesas catastróficas com saúde privada no Brasil

Operadoras argumentam que o seguro poupa gastos exorbitantes com assistência médica. Mas estudo da Fiocruz aponta o contrário: famílias de baixa renda e com idosos podem comprometer até metade da renda com planos de saúde

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O impacto dos gastos com planos e seguros de saúde na renda da população brasileira foi pouco estudado até o momento. Revisões sistemáticas desse tipo de dado, em alguns países, mostraram que possuir o “benefício” reduz o risco de empobrecimento das famílias. Mas não no caso do Brasil: segundo o mais recente estudo sobre o tema, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, casos extremos podem comprometer mais de 40% da renda das famílias – justamente de quem contribui para a assistência médica privada.

O estudo foi feito com base nos últimos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, que analisou 57.920 domicílios brasileiros, entre 2017 e 2018. Os resultados são significativos: mesmo sem gastos adicionais com medicamentos e serviços, os planos de saúde levam 5,6% das pessoas com 60 anos ou mais a comprometer mais de 40% de sua renda domiciliar per capita apenas com as mensalidades. Na classe média, das 22 milhões de famílias que declararam pagar planos, 8,7% (1,9 milhão de pessoas) gastam mais de 40% da renda domiciliar per capita com saúde – quando inclusos serviços, compras de medicamentos e as mensalidades dos convênios.

No Brasil, a despesa com saúde em relação ao gasto total das famílias tem crescido ao longo das últimas décadas. Na pesquisa realizada durante os anos 1970, a participação do gasto com saúde no consumo total foi de 4,2%; na pesquisa feita entre 2008 e 2009, 7,2%; na última, entre 2017 e 2018, o gasto médio de brasileiros com saúde foi de 8% do total despendido. Significa que a soma das despesas das famílias sofreu um aumento de 90,5% nos últimos 50 anos.

Ricardo Moraes, pesquisador da UFRJ e um dos autores do artigo, atribui a insegurança financeira associada às despesas com saúde privada aos reajustes das mensalidades – consistentemente acima da inflação, e que foram se acumulando nos últimos anos. “As definições de gasto catastrófico com saúde consideram que ele acontece quando as pessoas têm que abrir mão de gastos básicos (como alimento e moradia), por um certo período de tempo, para pagar despesas com saúde. Isso pode acontecer com pessoas que têm que arcar com grandes aumentos nas mensalidades de seus planos e não podem, no momento, abrir mão desse serviço.”

Entre o início de 2011 e o fim de 2019, os reajustes anuais de mensalidades autorizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para os planos individuais acumularam aumento de 140,3% – no mesmo período, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulou alta de 66,5%. Os autores sugerem que as variações abusivas observadas nos últimos anos podem indicar também que as operadoras se beneficiam de “baixa elasticidade-preço da demanda por seu serviço”. Ou seja: esperam que, mesmo com o aumento de preços e com o alto comprometimento de sua renda, os usuários de planos hesitem em cancelar o serviço.

Os pesquisadores usam como exemplo o que ocorreu ao longo da pandemia do coronavírus: a taxa de ocupação de leitos, durante o período de isolamento social, em setembro de 2020, foi de 64% – abaixo da taxa de ocupação registrada em setembro de 2019, de 74%. Ao mesmo tempo, apesar da crise econômica, o número de beneficiários dos planos foi pouco afetado, permanecendo relativamente estável em 47 milhões. Isso significa que os planos tiveram aumentos em suas margens de lucro nesse período. Segundo a própria ANS, a chamada “sinistralidade” (razão entre as despesas com serviços de saúde e a receita com mensalidades) chegou à mínima histórica de 62% em junho de 2020, 20 pontos percentuais abaixo do registrado em junho de 2019.

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