HIV: novos avanços da ciência podem ser para poucos

Um tratamento preventivo invejável pode reduzir drasticamente a incidência da aids. Por temerem que indústria farmacêutica restrinja o acesso, personalidades lançam manifesto em favor do livre licenciamento

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Um avanço científico notável na luta contra a aids passou despercebido na maior parte dos jornais brasileiros. É o advento do cabotegravir injetável e de longa duração (CAB-LA). Insere-se na categoria dos PRePs – as drogas que, ministradas antes das relações sexuais, evitam a contaminação, ainda que um dos parceiros seja portador do HIV. Ao contrário das fórmulas atuais – apresentadas  na forma de comprimidos, que precisam ser ingeridos a cada dia – a versão injetável atua no organismo por até dois meses. Seria uma ótima alternativa, já que uma das principais dificuldades com os PRePs é garantir adesão duradoura ao tratamento. Mas há um entrave a seu uso: os lucros da indústria farmacêutica.

Em 28 de julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o uso da droga. Sugeriu que os países considerem o fármaco no atual “momento crítico”, em que os avanços anteriores para combater as infecções por HIV estancaram: 2021 contabilizou 1,5 milhão de novos casos, número semelhante ao de 2020. Foi o ano de menor queda anual de casos desde 2016 e, segundo uma projeção do Unaids, haverá 1,2 milhão de novas infecções por HIV em todo o mundo em 2025 se o ritmo continuar o mesmo – mais de três vezes acima do limite original proposto pela OMS, de 370 mil casos. 

Os PrEPs, são considerados estratégicos para conter as infecções pelo vírus – especialmente em países mais pobres ou em populações vulneráveis. “Um dos grandes entraves para conseguirmos a redução de casos é o fato de que precisamos interferir no comportamento sexual da população. A PrEP é uma estratégia que não interfere nesse âmbito: o remédio garante uma boa proteção sem mudar os hábitos sexuais dos indivíduos”, explica Bruno Ishigam, infectologista da Clínica do Homem ligada a aids Healthcare Foundation em Recife. Alessandra Nilo, coordenadora geral da ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, acrescenta:  “Já temos evidências científicas de como as desigualdades estão no centro das dificuldades de sucesso da resposta eficaz contra o HIV”, alerta. A especialista lembra que a própria PrEP em comprimidos sequer chegou a grande parte dos países da África. “Não se trata de uma profilaxia que foi descoberta ontem. Completamos quase uma década de uso da PrEP, mas menos de 1 milhão de pessoas têm acesso à terapia. Trata-se de uma desigualdade entre países e intrarregional.”

É este, precisamente, o objetivo do alerta lançado há uma semana por um conjunto de personalidades globais ligadas à luta pela Saúde Pública. Elas advertem: “Além de prevenirem, os antirretrovirais de longa duração podem ser parte de um tratamento revolucionário, capaz de prevenir mortes. Mas esses remédios estão disponíveis apenas nos países de alta renda, por um preço de dezenas de milhares de dólares – longe do alcance das populações e governos nos países de renda média e baixa”. Entre os signatários estão Joseph Stiglitz e  Françoise Barré-Sinoussi, laureados com o Nobel; os ex-chefes de Estado do Malawi e da Nova Zelândia, Joyce Banda Helen Clark; artistas como  Olly Alexander (cantor e ator), Stephen Fry (ator, escritor e apresentador), Adam Lambert (cantor e compositor), David Oyelowo (ator, produtor e diretor) and Arnaud Valois (ator). Suas principais propostas à indústria farmacêutica são claras: anunciar um preço acessível para a nova droga; revelar publicamente os custos de produção; licenciar o fármaco para laboratórios de todo o mundo. 

Ainda na semana passada, a imprensa repercutiu outro avanço na luta contra a aids – este, porém, de alcance mais restrito. Trata-se da cura do quarto paciente infectado por HIV. O caso, assim como os outros, foi raro. Um portador de HIV recebeu transplante de medula óssea, devido a uma leucemia. Mas os médicos selecionaram um doador especial. Ele possuía uma rara mutação no gene CCR5 – responsável por produzir uma das proteínas que permite a entrada do HIV nas células humanas de defesa CD4+. Pessoas que possuem esta mutação são resistentes à infecção por algumas das variantes do HIV. O paciente que recebeu o transplante conseguiu eliminar o vírus.

Para o infectologista Bruno Ishigami, da Clínica do Homem ligada à Aids Healthcare Foundation em Recife, os investimentos em terapia genética prometem diminuir sua complexidade com o passar do tempo. “Para o HIV em específico, se a terapia genética pudesse ser realizada sem riscos, teríamos uma chance de cura plausível cientificamente”, explica. Segundo ele, o maior problema será disponibilizar uma possível cura, quando e se ela existir. “Hoje os tratamentos já são caros. Se eles não fossem oferecidos gratuitamente, teríamos milhares de mortos no Brasil. Quando falamos em terapia genética ou transplante de células-tronco, o custo seria muito maior”, conclui. 

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