Cana-de-açúcar, modernização e adoecimento

Novo caso de trabalho escravo joga luz sobre a persistência de relações sociais arcaicas no campo. De nada servem as máquinas, quando não muda a mentalidade de ultraexploração das elites, aponta pesquisador

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Na semana passada, um grupo de 18 cortadores de cana foi resgatado de trabalho análogo à escravidão em Guariba, interior do estado de São Paulo. Os trabalhadores foram encontrados sem alimentação, água e equipamentos de proteção individual (EPIs), além de não terem acesso a um espaço para dormir e a condições sanitárias básicas. Casos do tipo levantam o questionamento: por que persistem, no século XXI, condições tão extremas? Elas seriam uma exceção na cena do agronegócio brasileiro — hoje marcada por mecanização, imensas propriedades e uso intenso de capital? O leque de doenças de trabalho no canavial — que inclui intoxicação por agrotóxicos e fuligem, cortes por facão, alta incidência de doenças pulmonares e cardíacas — estaria sendo vencido? 

A resposta é complexa, explicou a Outra Saúde, o economista Francisco José da Costa Alves, professor na da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e um estudioso profícuo das relações de trabalho no campo brasileiro. Aberrações como as de Guariba já não são comuns. Mas o corte manual da cana continua implicando, além de enorme insalubridade, condições que levam ao adoecimento físico e psíquico. E o uso das máquinas, que avançou muito nas últimas décadas, produziu uma modernização conservadora. Aleḿ de resultar em enorme desemprego, ela não venceu a precarização — que agora atinge os operadores das colheitadeiras

A maioria das doenças de que são acometidos os cortadores manuais de cana deriva de sua forma de pagamento”, explica Alves. Isso porque os trabalhadores são remunerados por produção, no caso, por tonelada cortada. O valor da tonelada é definido em negociação com o sindicato. Mas o trabalhador não tem como contar se está cortando uma tonelada, já que o cômputo ocorre apenas na usina. “O cortador trabalha o dia todo sem saber quanto vai ganhar. Ele só sabe que se produzir mais, vai ganhar mais. Por isso, trabalha mais do que seu corpo aguenta, mais do que seus limites físicos, e adoece”, explica Alves. 

O esgotamento por trabalho  soma-se a uma série de outros fatores laborais. “O cortador de cana opera com um facão sempre muito afiado, levando a ferimentos recorrentes. Por trabalhar no campo, sofre com as ações da natureza — chuva e sol. É vítima de insolação. Bebe água somente quando pára de trabalhar, o que leva a desidratação. Isso provoca diversas doenças, inclusive paradas cardíacas e respiratórias”, explica. Problemas nas articulações também são frequentes, devido aos esforços repetitivos por longas horas. O sistema respiratório é particularmente comprometido, visto que o canavial é queimado previamente ao corte – espalhando fuligem – e hoje é comum a pulverização de agrotóxicos maturadores por avião na plantação. 

O paradoxal é a persistência das mesmas condições — ainda que revestidas de outra roupagem — com a modernização do campo. “No estado de São Paulo, cerca de 80% da cana já é cortada por máquinas, que substituíram os trabalhadores manuais sem transição. Estima-se que 250 mil postos de trabalho direto tenham sido perdidos em 5 anos”, afirma Alves. Com a transição, surgiu outro contingente de trabalhadores nos canaviais: os operadores de máquinas agrícolas. Mas nada essencial mudou. 

Esses profissionais trabalham em turnos de 12 horas por dia, intercalados. “Não há mais pausa para refeições ou para as necessidades fisiológicas. Eles aproveitam as paradas das máquinas, que se dão aleatoriamente — devido a algum problema mecânico, por falta de caminhões para o transporte de cana, por problema na usina que para a moagem”, explica o economista.  A tensão é um fator psicológico constante. Cada trabalhador deve operar, diariamente, uma máquina de 4 milhões de reais. Segundo Alves, em caso de problema com o equipamento, o valor é descontado do salário. E este agora é variável: apenas uma parte da remuneração é fixa, enquanto a outra é definida pela mesma lógica segundo a qual quanto mais se produz, mais se recebe. E em caso de paradas constantes ou corte mal feito, ganha-se menos. 

As condições exaustivas foram ditadas por um processo que, segundo os ideólogos neoliberais, atualizaria as relações trabalhistas. A “reforma” aprovada em 2017, durante o governo Michel Temer, eliminou direitos, estimulou a precarização e permitiu terceirizar qualquer atividade. Junto com ela, cresceu também o medo constante de perder o emprego, aspecto que segundo Alves poderá ter grandes impactos na saúde psicológica dos trabalhadores. Na continuação de sua pesquisa, ele pretende estudar também a incidência de doenças como ansiedade e depressão – junto de suas consequências físicas – na saúde daqueles que trabalham no canavial. 

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