Filtrar o sangue contra covid longa, novo mito médico

Em desespero, pacientes dispendem milhares de dólares para realizar aférese. Útil contra certas doenças, procedimento não tem sinal de eficácia em sintomas prolongados da contaminação pelo coronavírus. O infectologista Celso Ferreira Ramos Filho explica por quê

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Nas últimas semanas, alguns veículos nacionais e internacionais noticiaram sobre um tratamento inusitado. N Europa, pessoas abastadas estão se dirigindo a clínicas privadas para se submeter a um processo de “lavagem” do sangue, com o objetivo de tratar os sintomas de covid longa. Para leigos, o conceito pode remeter aos procedimentos efetuados por médicos clássicos e medievais, que ficaram conhecidos como “sangrias”: retirar parte do sangue do paciente com o intuito de curar ou aliviar alguma doença. 

A realidade é que o procedimento procurado por alguns europeus nada tem a ver com o que era feito no começo da história da medicina. Na realidade, trata-se de um tratamento caro e complexo – um caso recentemente reportado divulgou que um paciente britânico desembolsou cerca de R$ 257 mil pela terapia, chamada de aférese. 

A aférese ou LDL é um método eficaz e bem estabelecido na medicina, utilizado para separar componentes presentes no sangue. “Ela é bastante utilizada para a transfusão de plaquetas, por exemplo. Numa doação normal de sangue a quantidade de plaquetas é pequena, então se faz esse processo de separação com fins de doação”, explicou em entrevista a Outra Saúde o infectologista Celso Ferreira Ramos Filho, membro da Academia Nacional de Medicina. “[O LDL] é usado também para retirar outros componentes do sangue, como líquidos ou solúveis para transfusões”, explica. 

O método é usado também para filtrar componentes problemáticos do sangue para o tratamento de doenças específicas, como a anemia falciforme, caracterizada por uma alteração genética que muda o aspecto das hemácias, causando trombose. Nesse caso, a aférese é utilizada em casos das chamadas “crises falsêmicas”. “Para o tratamento de covid longa, cujo mecanismo de formação não conhecemos por completo, utilizar essa terapia me parece um absurdo completo”, argumenta Ferreira. 

Em primeiro lugar porque, segundo o especialista, a aférese nunca deve ser feita de forma isolada, mas em repetidas sessões para garantir a eficácia do tratamento. Além disso, o método é invasivo pois requer que o paciente receba uma medicação anti coagulação, que traz um “pequeno risco aceitável”. “Todo risco é aceitável, em termos médicos, desde que o benefício seja palpável e razoável. Quando o benefício não é previsível, não se pode aceitar qualquer risco. E esse é um processo tecnicamente complexo e caro”, conclui Ferreira. 

No caso de pacientes com covid longa – condição caracterizada pela permanência dos sintomas de covid-19 semanas e até meses após o teste negativo – a aférese estaria sendo aplicada para remover uma variedade de coisas do sangue, que podem ou não ser negativas. Isso inclui moléculas inflamatórias.

Uma investigação britânica conjunta do veículo ITV News e da revista acadêmica The BMJ entrevistou uma das médicas responsáveis por aplicar o procedimento. Sua hipótese é de que o sangue de pessoas com covid longa é mais viscoso e contém pequenos coágulos sanguíneos; então, segundo ela, diluir o sangue com anticoagulantes e aférese pode melhorar a microcirculação e, por consequência, a saúde geral. Mas não há evidências que deem respaldo a essa teoria. 

A investigação também entrevistou Gitte Boumeester, paciente holandesa que pagou mais de 60 mil dólares – praticamente todas as suas economias – por uma terapia de aférese em uma clínica no Chipre. Desesperada pela busca do alívio de seus sintomas, assinou um formulário de consentimento duvidoso “cheio de erros de ortografia, erros gramaticais e frases incompletas”, segundo publicou o Wired.  Ao jornal, especialistas criticaram a omissão dessas clínicas e seus profissionais em deixar claro aos pacientes a “natureza experimental” dos tratamentos caríssimos. “Mesmo que não fosse caro. Não vejo como esse método poderia ser possível para tratar a covid longa”, conclui Celso Ferreira Filho. 

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