Em meio à pandemia, um governo aos pedaços

Aplicativo bizarro do ministério da Saúde vira motivo de chacota e afasta entidades médicas do governo. Planalto bate cabeça para evitar crise iminente de vacinas. E mais: poliicos e poderosos que rechaçaram imunização agora furam a fila

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Por Raquel Torres| Imagem: Aroeira e Luana Moussallen

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SEJA QUAL FOR

O aplicativo do Ministério da Saúde que incentiva o tratamento precoce contra a covid-19 é ainda pior do que se imaginava. Desde o lançamento, na semana passada, já tinha ficado claro que o TrateCov servia basicamente para difundir mais ainda drogas ineficazes como a hidroxicloroquina e a ivermectina entre médicos. Só que a orientação para o uso desses remédios aparece até para pacientes que poderiam se prejudicar com elas. 

Vários repórteres começaram a usar o app, preenchendo a ficha médica com dados imaginários, e receberam como resultado sempre as mesmas orientações. Mateus Vargas, do Estadão, descreve que o ‘kit-covid’ é sugerido toda vez que há a combinação de dois sintomas, mesmo que o paciente não tenha saído de casa nas duas semanas anteriores. Nem a idade interfere na pontuação aplicada, de modo que a lista de medicamentos é apresentada até quando o paciente é um recém-nascido com diarreia e fadiga.

Felipe Betim, do El País, preencheu os campos com dados do seu gato de estimação – um ano de idade, oito quilos, 70 centímetros – e sintomas de febre e fadiga por um único dia. Recebeu a orientação de prescrever um coquetel de sete medicamentos durante cinco dias. Tem ainda um agravante: ele marcou que seu ‘paciente’ tinha insuficiência cardíaca, o que torna o uso de hidroxicloroquina arriscado; mas lá estava ela, entre as indicações.

O jornalista de dados Rodrigo Menegat explorou o código-fonte do aplicativo e descobriu o porquê de tamanha uniformidade: é que ele foi desenhado para exibir a indicação e a posologia de oito remédios (ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, sulfato de zinco, doxiciclina, zinco e dexametasona) sempre que o paciente tiver um número mínimo de ‘pontos’, não importando outros fatores como a combinação dos sintomas, a janela de tempo, a exposição a risco.

A repercussão tem sido gigantesca.  O Conselho Federal de Medicina informou que vai fazer uma análise do aplicativo em seus “aspectos clínicos, jurídicos e éticos”. Lembremos que o CFM deu munição para o governo Bolsonaro empurrar cloroquina goela abaixo dos pacientes, ao publicar ainda em abril um parecer que autorizava a prescrição a pessoas com sintomas leves, mesmo reconhecendo não haver evidências científicas que a suportassem. Já a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Associação Médica Brasileira emitiram ontem uma nota conjunta rechaçando a existência de tratamento precoce. O gesto marca uma mudançade posição da AMB, que antes havia se oposto à SBI defendendo a “autonomia do médico” para prescrever esse tipo de remédio.

OS FURA-FILA

No começo da vacinação contra a covid-19, as poucas doses de CoronaVac disponíveis já começaram a ser surrupiadas por quem não deveria direito a elas. Talvez o caso mais chamativo seja o das irmãs Lins: herdeiras de uma das famílias mais ricas de Manaus, as gêmeas de 24 anos até são médicas, mas nunca atuaram na linha de frente da covid-19. Sem concurso, foram nomeadas em cargo comissionado para trabalhar em uma unidade básica de saúde – uma delas, na véspera do início da imunização, e a outra só no dia seguinte. Se elas não tivessem postado suas espetadas nas redes sociais (e se não tivessem milhares de seguidores), a história poderia até ter ficado na surdina. E isso é o que deve começar a acontecer, já que o prefeito David Almeida (Avante) rapidamente anunciou a publicação de uma portaria que proíbe profissionais de saúde de divulgarem sua vacinação.

Também em Manaus, o jovem filho de um ex-deputado estadual furou a fila. Os prefeitos de Ibati (SE) e Pombal (PB) se vacinaram sem terem nada a ver com o primeiro grupo prioritário. E em Jupi (PE), a secretária de saúde e até o fotógrafo oficial da prefeitura também garantiram suas doses. Nesses três estados, o Ministério Público investiga o problema

A revista Piauí ressalta um movimento que pode beneficiar não apenas casos isolados, mas uma categoria inteira: Laurício Monteiro Cruz, diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, assinou um ofício incluindo sua própria categoria profissional – a dos veterinários – entre os grupos prioritários.

A reportagem gerou uma nota de esclarecimentos por parte do Conselho Federal de Medicina Veterinária explicando que esses profissionais são, sim, considerados trabalhadores da saúde, e que parte deles está na linha de frente da covid-19. Voltando à Pìauí, o professor da USP Mário Scheffer diz que não vai dar para imunizar todos os profissionais de saúde agora, portanto é preciso hierarquizar – para ele, o critério não deve ser a carteira de registro profissional, mas as características da ocupação e do risco a que cada trabalhador está submetido. “A prioridade absoluta, sem discussão, é daqueles que trabalham com pacientes de dovid internados. Em seguida, aqueles que cobrem serviços de urgência e emergência, maternidade e atenção primária, que fazem triagem e encaminhamento de pacientes suspeitos, incluindo o pessoal de apoio”. 

OS QUE NÃO QUEREM

A CoronaVac chegou à aldeia Umariaçu I, no Amazonas, depois de quase dois dias de viagem. São cerca de mil doses destinadas aos Ticunas. Mas, segundo a matéria do Estadão, as fake news chegaram antes da vacina: o cacique Dikicinei Ramos Lopes e parte dos aldeados não apareceu para tomar as injeções, por medo de supostos efeitos colaterais. “Meu povo ticuna aqui está em pânico, porque falaram que a vacina mata, que quem toma vai ficar doido na hora. Uma pessoa que fale um boato ou mentira, eles acreditam”, diz o técnico de enfermagem Tarcis Marques Mendes. Felizmente, essa não parece ser uma posição dominante na aldeia – 500 pessoas receberam a primeira dose na região até agora – mas não deixa de ser bastante preocupante.

Enquanto isso, na capital do Rio de Janeiro, o secretário de Saúde Daniel Soranz afirmou que já houve recusa em tomar a vacina. De acordo com ele, foi o caso de seis idosos em asilos e ainda de profissionais de saúde (sem número definido).A motivação teria sido “ideológica”. 

A hesitação de parte dos trabalhadores de saúde em receber a vacina tem sido relatada em diversos países, como Alemanha e Estados Unidos, e obviamente é um grande problema,  ainda mais se considerarmos que os profissionais de saúde são um peças importantes na hora de comunicar ao resto da população sobre a necessidade de se imunizar.

Em tempo: foram relatadas 33 mortes entre idosos que receberam a vacina da Pfizer na Noruega. Essa informação está circulando amplamente e levantando dúvidas sobre a segurança da vacinação; no entanto, a autoridade sanitária do país comunicou que não há vínculo estabelecido entre o imunizante e as mortes. A cada dia morrem em média 45 idosos nesses lares na Noruega, e não tem havido excesso de mortalidade. O país passou a recomendar, porém, que seja avaliada caso a caso a decisão de vacinar pacientes com a saúde muito frágil, pelo risco que efeitos colaterais como febre ou náusea possam oferecer.

DESESPERO BATE À PORTA

O assessor para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, Filipe Martins, deu ontem uma entrevista à Rede TV! dizendo que tem havido “um grande alarde em torno de nada“. O que ele chama de “nada” é o atraso na chegada dos matéria-prima necessária para a fabricação da CoronaVac e da vacina de Oxford/AstraZeneca, o que periga fazer com que a campanha de vacinação no Brasil seja pausada poucos dias depois de começar.

A Fiocruz já reconheceu que a distribuição de suas vacinas, antes prevista para o início de fevereiro, pode acabar ficando para março. O Instituto Butantan, por sua vez, chegou ao limite da produção da CoronaVac com os ingredientes ativos de que dispunha. “Posso garantir a investidores e consumidores que fiquem tranquilos”, continuou Martins, afirmando que o Brasil está negociando a compra de insumos de “outros países”. 

O ar tranquilizador não consegue enganar. Quanto à negociação com a China, a interlocução do ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo (que não perde uma oportunidade de falar mal do país) dificilmente trará algum resultado. Ontem ele negou que problemas de “natureza política” estejam interferido no fornecimento de insumos, mas disse que “não é possível falar de prazo nesse momento”. O governo parece ter desistido dele e está mobilizando outros atores – do vice-presidente Hamilton Mourão à ministra da Agricultura Tereza Cristina – para tentar levar a conversa adiante. Ontem à tarde, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello se reuniu com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming. O embaixador também conversou com Rodrigo Maia (o presidente da Câmara afirmou, em seguida, que as razões para o atraso são puramente técnicas). E, com o rabo entre as pernas, o presidente Jair Bolsonaro solicitou uma conversa telefônica com presidente chinês Xi Jinping. Não se sabe se será atendido.

Enquanto isso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) disse que está em diálogo com as autoridades chinesas, por conta própria.

O governo também tenta tatear as autoridades indianas – por enquanto, sem sucesso. Parece que agora já nem há mais a expectativa de conseguir a liberação imediata dos insumos, mas ao menos que o governo da Índia solte algum comunicado público garantindo que esse envio será feito no “curto prazo”. Segundo o Valor, os aliados políticos de Bolsonaro veem nesse comunicado uma forma possível de reduzir os danos políticos que o atraso tem gerado. Fontes ouvidas pela reportagem dizem que não há nenhum sinal de que a entrega possa ocorrer ainda este mês

Essa semana a Índia anunciou o início da exportação de insumos para seis países, mas não incluiu o Brasil. Uma das explicações para a trava é a inadmissível falta de apoio do governo brasileiro à proposta indiana de quebra temporária de patentes durante a pandemia, apresentada no ano passado à OMC. Seja como for, está bem claro que nesse momento o mercado prioritário para a China são os países africanos, enquanto para Índia são seus vizinhos asiáticos. 

NÃO MELHORA

A crise da falta de oxigênio já se arrasta há duas semanas no Amazonas e a situação no Pará tem se agravado; mais de 20 pessoas já morreram no interior dos dois estados por conta desse problema logístico altamente previsível. Uma força-tarefa com integrantes dos Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho formalizou um pedido de providências ao Ministério da Saúde e ao Governo do Pará, solicitando que eles informem sobre as ações em curso. Há uma grande preocupação de que o problema se espalhe ainda mais. 

Quem pode ser responsabilizado por essa tragédia? “Em tese, é possível que advenha responsabilização criminal pelas mortes. Se os administradores do hospital ou agentes públicos sabiam que o oxigênio não era suficiente e, podendo agir para evitar a tragédia verificada, não o fizeram, poderão responder pela prática do crime de homicídio por omissão. Contudo, para que isso ocorra, as investigações precisarão demonstrar que eles sabiam do risco, tinham condições concretas de evitar a falta dos equipamentos, e, mesmo assim, deixaram de agir, omitindo-se ilegalmente”, explica no Estadão o advogado criminalista Conrado Gontijo, cuja avaliação é corroborada por outros especialistas.

ESTÁ DE VOLTA

Imediatamente após sua posse, o presidente dos EUA Joe Biden assinou 17 ordens executivas, incluindo as que colocam o país de volta à OMS e ao Acordo de Paris – ambas já eram ações esperadas. Hoje mesmo uma reunião do Conselho Executivo da OMS vai ter a participação de Anthony Fauci, que comanda a força-tarefa da Casa Branca contra a covid-19, como chefe da delegação do país.

A reconciliação com a OMS pode ter um efeito imediato muito importante em relação à pandemia: a entrada dos EUA na Covax Facility, o que deve alavancar a iniciativa. 

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