Vacinas: empresas já tramam um mega-fura-fila

Depois de negligenciar compra de imunizantes, governo dá sinal verde a plano que pode tirar milhões de doses dos grupos prioritários. E mais: pandemia ameaça economia global; caótico, ultracapitalismo não consegue enfrentá-la

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Por Raquel Torres| Imagem: Edu Oliveira

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AS NEGOCIAÇÕES DO SETOR PRIVADO

O governo federal mandou uma carta à AstraZeneca dizendo que não se opõe à compra de 33 milhões de doses da vacina contra a covid-19 pelo setor privado. O documento foi obtido primeiro pelo Globo e se refere a uma negociação de empresários revelada ontem cedo pelo Painel da Folha

A história, segundo apurações de vários repórteres, é a seguinte: desde meados da semana passada, um grupo de grandes empresas tem conversado com o Ministério da Saúde para negociar a autorização para a compra do lote. As 33 milhões de doses estariam disponíveis para venda a partir da Inglaterra, desde que pelo menos 11 milhões fossem adquiridas de uma só tacada. Para isso, a pasta deveria editar um ato estabelecendo quais seriam as condições para a permissão. E, pelo acordo em andamento, metade das doses adquiridas seriam doadas ao SUS, enquanto a outra parte seria distribuída entre os funcionários das empresas e seus familiares.

Não se sabe direito de quem foi a ideia dessa divisão. De acordo com o Globoquem começou a conversa com grandes empresários foi a Gerdau, mas a siderúrgica nega ter liderado o movimento ou sugerido a retenção de vacinas pela iniciativa privada. Uma fonte ouvida pelo jornal diz que foi o próprio governo federal quem sugeriu a cota de 50%. 

Pelo menos 12 empresas foram convidadas a participar das reuniões. Porém, o grupo acabou rachando antes de o negócio vingar, porque os empresários não conseguiram concordar quanto à forma de distribuição. Alguns queriam essa doação de 50% das doses ao governo federal, mas outros achavam que todo o lote deveria ser destinado ao setor público. Neste segundo grupo estavam empresas como Itaú e Santander – uma das preocupações era que a tentativa de criar uma campanha paralela de vacinação pudesse gerar críticas entre os consumidores. No fim, outras grandes empresas como Petrobras, Vale, JBS e Bradesco também saíram da conversa. Como a cota mínima a ser comprada é alta, a ausência delas pode inviabilizar a aquisição. Mas ainda empresas que insistem na negociação, aceitando a entrada de quem mais tiver interesse. Ontem elas se reuniram, num encontro virtual com 72 pessoas. 

PORTEIRA ABERTA

Voltando ao posicionamento do governo federal: o texto é assinado por Élcio Franco, secretário-executivo da pasta e pelos ministros Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e José Levi (Advocacia-Geral da União), mas a Folha afirma que o assunto foi discutido com o presidente Jair Bolsonaro na semana passada e ele deu seu aval. Além da reserva de metade das doses para o SUS, a carta estabelece que as doses privadas não poderiam ser vendidas, apenas aplicadas de graça nos funcionários, e que deveria haver um sistema de rastreamento de vacinas. 

Não faz nem duas semanas que, em reunião com a Fiesp, representantes do governo – entre eles o mesmo Élcio Franco – disseram que esse tipo de compra de vacinas para a aplicação em funcionários seria proibida. Uma justificativa para a mudança é o alto preço do lote negociado pelo setor privado – cada dose custa US$ 23,79, mais de quatro vezes o preço pago pelo governo federal nas unidades importadas da Índia. O cálculo é que se conseguiria, “de graça”, ter 16,5 milhões de doses para imunizar cerca de oito milhões de pessoas. 

Mas o fato é que o acordo implica também deixar de imunizar oito milhões de brasileiros dos grupos preferenciais. Além do mais, o país poderia escolher pagar pelo lote inteiro e alcançar essas pessoas. “Havia no Executivo quem discordasse da hipótese de as firmas vacinarem funcionários antes de o SUS concluir a imunização de idosos, mas essa visão foi vencida.”, diz a Folha. Apesar de fontes anônimas do governo terem sido ouvidas pelos repórteres, os ministérios envolvidos não se manifestaram sobre o caso. Se confirmado de forma oficial, o aval do governo decerto abre precedente para que essa se torne uma prática comum. 

Um ponto que gera estranhamento, no mínimo, é essa repentina disponibilidade de 33 milhões de doses da AstraZeneca, por um preço bem mais alto que o definido inicialmente, justo quando a farmacêutica anunciou que precisa reduzir o número de vacinas que vai entregar à União Europeia por “falhas na produção”. Em cenário de escassez, “toda vacina que for para o setor privado estará sendo tirada do setor público”, como já bem disse a epidemiologista Denise Garrett, no início do ano. 

PELO BOLSO

Um estudo de modelagem divulgado ontem pela OMS tenta colocar sob outro prisma a necessidade de garantir ao mundo inteiro a vacinação contra covid-19. Em vez de argumentos caritativos, a pesquisa trata dos impactos econômicos que os países ricos devem sofrer caso não se preocupem com isso. 

Se tudo continuar como está – com os países em desenvolvimento patinando em um número reduzido ou ainda inexistente de doses –, as economias avançadas podem ter perdas de quase US$ 5 trilhões. Sairia mais barato o investimento para que as vacinas chegassem a mais gente: o custo total para o financiamento do ACT (o acelerador de acesso a ferramentas contra a covid-19, do qual faz a Covax Facitily faz parte), é de US$ 38 bilhões. 

As perdas se explicam pelo fato de as economias serem interligadas: os pesquisadores analisaram as redes de produção e comércio de 65 países em 35 setores e viram que, nos que são gravemente afetados pelo vírus, cai a capacidade de produção de bens que são exportados aos países ricos, assim como a demanda pelos produtos vendidos por estes. Quanto pior o acesso aos imunizantes, pior o prejuízo para nações ricas. “Na verdade, ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo”, resumiu o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus. No caso do Brasil, a conta pode chegar a US$ 336 bilhões.

Hoje, 44% dos países ainda não viram nem a cor de uma vacina contra a covid-19. O problema está ilustrado na seção =igualdades, da Piauí. Na África, só o Egito já conseguiu começar sua campanha. A Guiné recebeu até agora 25 doses (você não leu errado: são mesmo só 25 unidades). Em alguns lugares, as pessoas podem ter que esperar no mínimo até 2022 pelo acesso. Um agravente nisso tudo é que, quanto mais uma população demora para ser vacinada, maiores as chances de os vírus circulando originarem novas variantes – que podem, por exemplo, ser menos sujeitas à proteção das vacinas. A rapidez é fundamental para que não se crie uma bola de neve. 

VÃO CHEGAR

Numa mudança de tom forçada pela necessidade,  Jair Bolsonaro agradeceu no Twitter pela “sensibilidade do governo chinês”. Isso porque o país liberou a vinda de 5,4 mi llitros do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) da CoronaVac, com os quais o Instituto Butantan vai poder produzir mais cinco milhões de doses da vacina. A remessa deve chegar os próximos dias. Já a matéria-prima para a vacina de Oxford/AstraZeneca (que já era para ter sido entregue) estaria, segundo Bolsonaro, com sua liberação “acelerada”. 

O presidente agradeceu também aos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Eduardo Pazuello (Saúde) e Tereza Cristina (Agricultura), e acabou comprando mais uma briga com João Doria (PSDB). Segundo nota do governo paulista, o governo federal não teve nada a ver com a liberação.

Até Michel Temer (o próximo chanceler?) se envolveu na jogada. Ele afirma ter conversado ontem de manhã com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, garantindo que os insumos seriam enviados “o mais rápido possível”.

Aliás, Temer foi um dos ex-presidentes, junto a José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, reunidos para um “ato institucional” promovido por Doria em prol da vacina. 

FALTA VIGILÂNCIA 

Foi anunciado mais um caso de pessoa infectada com a variante brasileira do coronavírus, agora nos Estados Unidos. O paciente é de Minnesota e tem histórico recente de viagens para cá. Segundo as autoridades, ele foi identificado por meio de vigilância aleatória de amostras de sangue. 

Se foi encontrada por rastreamento aleatório em outros países, é bem capaz de ela estar bem espalhada pelo Brasil. E, segundo um estudo da Fiocruz Amazônia e do Lacen (Laboratório Central de Saúde Pública do estado), ao menos em Manaus ela já é prevalente, além de estar também nas cidades do interior.

A variante de Manaus já virou uma linhagem própria, a B.1.1.28.1, que tem dez mutações no gene que codifica a famosa proteína spike (usada pelo coronavírus para se conectar às células humanas). Entre essas mutações, três são as mesmas observadas em variantes de fora do país. Por que isso preocupa? “Para ter surgido em três lugares distintos com as mesmas mutações é porque alguma vantagem para o vírus essas mutações estão trazendo”, explica Felipe Naveca, da Fiocruz, responsável pelo sequenciamento e pela identificação dela. Tudo indica que ao menos a maior transmissibilidade é uma dessas vantagens.

Um problema gravíssimo apontado na matéria da Folha é que, ao contrário do que acontece no resto do mundo, por aqui a descoberta de uma nova variante potencialmente perigosa não foi seguida por medidas para contê-la – um lockdown em Manaus teria sido necessário, por exemplo. “Embora o Ministério da Saúde tenha sido notificado sobre o caso de reinfecção com a nova variante e emitido uma nota, os outros estados devem seguir uma vigilância contínua para poder monitorar se essa variante já se espalhou pelo país”, alerta Naveca. Relacionado a isso está o fato de se faz pouco o sequenciamento do vírus no Brasil. O Reino Unido já fez mais de 800 mil sequenciamentos, mas por aqui o trabalho de instituições como a Fiocruz é insuficiente nesse aspecto. Não que falte consciência dessa necessidade – o problema é a escassez de insumos e investimentos.

REVENDO ESTRATÉGIAS

A Pfizer e a Moderna anunciaram ontem que suas vacinas contra a covid-19 oferecem menos proteção em relação à variante B.1.351, identificada inicialmente na África do Sul (e que tem mutações em comum com a variante brasileira). De acordo com as empresas, ainda haveria algum grau de proteção, mas obviamente há preocupações.

No caso da Moderna, um trabalho publicado em plataforma de pré-impressão (ainda sem revisão por pares) indicou uma redução de seis vezes na eficácia dos anticorpos produzidos. A empresa começou a desenvolver uma nova forma da vacina para ser usada como dose de reforço mais adiante. Outra opção é usar uma dose extra da própria vacina já testada e aprovada.  E Ugur Sahin, presidente executivo da parceira da Pfizer, a BioNTech, disse que está em contato com agências reguladoras para ver o que seria necessário para aprovar uma nova versão do seu imunizante que tivesse maior capacidade de evitar essa variante.

Um ponto positivo nas vacinas de mRNA, como é o caso dessas duas, é que a reformulação é mais rápida do que quando são utilizadas tecnologias tradicionais. Segundo Sahin, a empresa poderia desenvolver uma vacina ajustada em seis semanas. 

ANDANDO EM CÍRCULOS

O governo da Bahia pediu ao STF que autorize o uso emergencial de vacinas que já tenham essa aprovação em outros países, o que tornaria possível a aplicação da Sputnik V em brasileiros. Por conta disso, o ministro Ricardo Lewandovski pediu informações à Anvisa. A agência, por sua vez, defendeu que não vai liberar nada sem o aval dos técnicos do órgão, e para uma empresa solicitar esse aval é preciso que tenha conduzido ensaios de fase 3 no Brasil – sendo que a Sputnik não foi testada aqui. Acontece que a União Química, que produziria o imunizante no país, quer testá-la e já solicitou permissão à Anvisa faz um tempinho. Mas falta a agência deixar

ESTÁ ABERTO

O ministro do STF Ricardo Lewandovski determinou ontem a abertura do inquérito que vai investigar a omissão de Eduardo Pazuello na do colapso da Saúde em Manaus. O ministro da Saúde precisa prestar depoimento à Polícia Federal em cinco dias após ser intimado, e a investigação tem 60 dias para terminar. 

BRUMADINHO, DOIS ANOS

Ontem o rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, completou dois anos sem reparação por parte da Vale. Há uma ação no valor de e R$ 54 bilhões (R$ 26 bi para os danos sofridos pelo Estado e R$ 28 bi pelos danos morais e sociais da comunidade), mas a empresa tenta negociar o valor – sem que os atingidos participem da discussão. 

Os efeitos do crime ambiental vão mais longe do que a morte de 272 pessoas e o desaparecimento de outras 11. Com o rio Paraopeba contaminado, a população não pode mais pescar ou cultivar vegetais para consumo ali perto. Mesmo a água a tratada pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) vem suja, de modo que é preciso comprar água mineral para beber. “As pessoas continuam a morrer diariamente. Pessoas que sequer fazem parte das estatísticas, mas que morrem de diversas doenças causadas de forma direta e indireta por esse crime da Vale, pessoas que sentem na pele, que morrem de depressão, muitas tentativas de autoextermínio e muitas doenças causadas por tristeza, porque as pessoas tiveram a sua dignidade abalada”, diz Joelisia Feitosa, uma das atingidas, ao Brasil de Fato.

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