Ética em pesquisa: por que garantir o controle social
Conselho Nacional de Saúde protagonizou a regulamentação da proteção de participantes de pesquisas científicas. O Conep, comitê nacional, estrutura os debates e comitês em todo o país. Mas nova lei suprime sua atuação, fragilizando a participação popular
Publicado 19/08/2025 às 12:27

A Lei 14.874/2024, conhecida como “Lei de Pesquisa Clínica” e apelidada “PL das Cobaias” por alguns de seus críticos, completa, neste mês de agosto, um ano de vigência. Proposto há uma década na Câmara dos Deputados, o projeto, que institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, passou por diversas modificações até finalmente ser aprovado em 28 de maio de 2024. Ainda assim, a última versão do texto passa ao largo do ideal.
No início de maio do ano passado, quarenta entidades assinaram, em conjunto, uma nota que propunha o veto prioritário de oito dispositivos da “Lei de Pesquisa Clínica”. O principal deles era o artigo 2º, XXVI, que segmenta o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, por um lado, em uma instância nacional de ética em pesquisa e, por outro, em uma instância de análise ética em pesquisa, representada pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). Tal instância nacional, a INAEP, foi definida como um “colegiado interdisciplinar e independente, integrante do Ministério da Saúde […], competente para proceder à regulação, à fiscalização e ao controle ético da pesquisa, com vistas a proteger a integridade e a dignidade dos participantes da pesquisa, e para contribuir para o desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos”.
O grande problema, como dita a nota conjunta, é que o projeto delega a regulamentação do Sistema ao Executivo — representado pelo Ministério da Saúde –, quando, historicamente, a instância nacional de ética em pesquisa sempre foi a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), parte do Conselho Nacional de Saúde (CNS). A Conep, que atua através de mais de 800 CEPs espalhados pelo Brasil — constituindo o famoso sistema Conep/CEPs –, bem como o próprio CNS, não só fazem parte, como protagonizaram historicamente toda a discussão sobre ética em pesquisa no país.
Em entrevista ao Outra Saúde, o professor e coordenador da Frente pela Vida (FpV) Túlio Franco corrobora ao explicar que: “A questão central é que a instância nacional, estando vinculada ao CNS e não ao governo, estava sob o controle social. Estando sob o controle social, a Conep sempre teve autonomia para discutir, definir e regulamentar tudo que está relacionado à ética em pesquisa. Quando essa tarefa é atribuída ao Executivo, ela pode sofrer interferências”.
Relembrando que a primeira regulamentação nacional sobre o tema, elaborada pelo CNS, se deu em 1988 a partir da promulgação da Constituição Cidadã, as entidades lembram, ainda por meio da nota, que: “o campo da Ética em Pesquisa é de desenvolvimento teórico, de conhecimento científico, ele próprio com suas experimentações e reflexões, um campo multidisciplinar que necessita do aporte de disciplinas como a epistemologia, a filosofia, a sociologia, a psicologia, entre outras”. A partir disso, entende-se por que este é um campo de disputas de interesses, ao passo que esse novo dispositivo se tornou uma espécie de calcanhar de Aquiles daqueles que defendem a saúde pública e coletiva.
O presidente Lula acabou sancionando a “Lei de Pesquisa Clínica”, em 2024, com veto a dois também polêmicos dispositivos. Um deles ditava o prazo de cinco anos para a oferta gratuita do medicamento experimental aos pacientes a partir da data de disponibilização no mercado privado. Enquanto a Big Pharma defende que o fornecimento obrigatório sem prazo definido traz imprevisibilidade econômica para as empresas e afasta novos investimentos de pesquisa no Brasil, o governo argumenta que o estabelecimento de um prazo contraria o interesse público, viola os direitos dos participantes e compromete os princípios éticos da ciência.
Mas, em uma reviravolta, o Congresso Nacional derrubou o veto do Executivo com votação expressiva dos parlamentares, em junho de 2025. Empresários e entidades ligadas à indústria farmacêutica comemoraram. O presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), Fábio Basílio, em entrevista para o Outra Saúde, explicou os riscos: “a pessoa pode estar tratando uma patologia com um medicamento experimental e a empresa simplesmente vai decidir se pode parar de entregar esse medicamento de forma unilateral”. Desse jeito, a lei torna-se quase contraproducente: ao invés de garantir e fortalecer os direitos dos participantes de estudos clínicos a partir da instituição de um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, a proteção aos pacientes é enfraquecida.
A outra gravíssima falha na legislação, a substituição do sistema Conep/CEPs — que não foi contemplada pelo veto do governo, — não foi nem sequer considerada pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS) na elaboração da proposta de decreto que regulamenta, enfim, a “Lei de Pesquisa Clínica”.
Os membros do colegiado da Conep redigiram, então, uma carta ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, no dia 24 de julho de 2025, denunciando que, além de terem sido ignorados anos de trabalho investidos na formulação e atualização da normatização ética para o desenvolvimento de pesquisa, “a desqualificação e extinção da Conep na proposta apresentada pela sra. Fernanda de Nigri, Secretária da SECTICS, usurpa a sua construção histórica, ao entregar a gestão do sistema exclusivamente ao Ministério da Saúde”.
A proposta endossa não só o desmonte do sistema Conep/CEPs, mas também a acintosa imposição à Conep da função de “CEP acreditado”, desconsiderando sua função na elaboração de diretrizes éticas, coordenação, treinamento, monitoramento e outras atribuições — além do acompanhamento de denúncias de irregularidades, que afetam diretamente os direitos, segurança e bem-estar dos participantes de pesquisa.
Alguns dias depois, no dia 29 de julho, entendendo que, apesar da criação de nova instância, propostas poderiam — e deveriam — ser feitas para contornar o apagamento do sistema Conep/CEPs, a operativa nacional da Frente pela Vida e o CNS reuniram-se com o Ministério da Saúde. De acordo com Túlio Franco, a conversa foi absolutamente amistosa: “Tentou-se construir uma posição que tenha um desfecho legitimado pelas instâncias e entidades envolvidas com o tema da ética em pesquisa e que, ao mesmo tempo, faça a discussão, de fato, funcionar”. Após um longo debate, Túlio conta que foi concedida à operativa nacional da Frente a autorização para elaborar uma proposta de regulamentação da “Lei de Pesquisa Clínica”.
A proposta, ao considerar “a importância estratégica da nova legislação para o desenvolvimento científico nacional e para a proteção dos direitos das pessoas participantes de pesquisa”, expõe quais os princípios orientadores para a regulamentação da lei. Túlio ressalta que, dentre estes, o ponto mais fundamental diz respeito, justamente, à participação da Conep junto à INAEP — instituída a partir da criação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos — em todo trabalho relacionado ao tema.
Em segundo lugar, o coordenador destaca a inclusão da Sociedade Brasileira de Bioética em (SBB), como entidade científica representativa que vem formulando políticas, acompanhando e discutindo mais ativa e organicamente tudo que envolve a ética em pesquisa em seres humanos. “Essas são as questões mais importantes, além, obviamente, da valorização de todo o patrimônio de conhecimento, ao longo de todos esses anos, acumulado pelo sistema Conep/CEPs”, diz Túlio.
Ao passo que se aguarda a devolutiva do Ministério da Saúde, na figura da SECTICS, responsável pela elaboração do decreto de regulamentação da lei, acerca das contribuições da FpV, é fundamental a defesa da inclusão da SBB e da Conep à nova Instância Nacional de Ética em Pesquisa.
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