Digitalização da saúde: o risco da mercantilização
Novas dinâmicas reorganizam economia capitalista, combinando neoliberalização e financeirização com digitalização. Evento na Fiocruz discute os riscos desse processo para a Saúde e os dados dos brasileiros, na mira das Big Techs
Publicado 12/08/2025 às 12:53 - Atualizado 12/08/2025 às 16:45

Atualmente passando por intensos processos de digitalização, a Saúde e a Educação correm o risco de se tornarem fronteiras da mercantilização de políticas sociais no Brasil, debateram os participantes de evento realizado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na última terça-feira (5). O debate foi promovido pelo projeto “Implicações das Tecnologias Digitais nos Serviços e Sistemas de Saúde”, coordenado pelos pesquisadores Leonardo Castro e Marcelo Fornazin.
Professor da LUT University (Finlândia) e coordenador do Núcleo de Estudos em Economia, Tecnologia e Sociedade (NETS) na Universidade Federal do Ceará (UFC), o pesquisador Edemilson Paraná explicou que as economias capitalistas passam hoje por uma reorganização produtiva em que se combinam neoliberalização, financeirização e digitalização.
Longe de se restringir ao âmbito do mercado financeiro e os setores produtivos tradicionais, essa dinâmica atinge em cheio a Saúde, alertou o pesquisador. Isso porque as corporações tecnológicas (“Big Techs”) transformadas em gigantes econômicas na era neoliberal veem a possibilidade de mercantilizar as políticas do Estado nessa área, integrando-as a seus produtos e serviços. Oferecem-se para hospedar os dados dos sistemas de saúde dos países, por exemplo.
O Brasil, que possui 200 milhões de habitantes e o Sistema Único de Saúde (SUS), gera “uma quantidade de dados de saúde que é colossal”. Por isso, se torna um dos principais alvos do assédio dessas empresas, alertou Paulo Henrique de Almeida, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). No governo Bolsonaro, o DataSUS migrou os dados sensíveis da população brasileira para as nuvens da Amazon – e a medida ainda não foi revertida pela atual gestão. “A voracidade em torno desses dados tem implicações muito sérias”, avalia. Em seu site, a Amazon Web Services vangloria-se que seus servidores recebem “todas as informações de internação, fila de transplantes, redes de atendimento, laboratórios, integrando estados e municípios”.
Nesse sentido, Edemilson alertou que a condição dependente do Brasil é reforçada por essa tendência. “É a 10ª maior economia do mundo e o 4º maior mercado digital, mas seguimos sendo basicamente consumidores de serviços digitais e fornecedores de dados e trabalho barato”, apontou.
Por sua vez, frisando o encontro de duas “fronteiras” da mercantilização, a pesquisadora da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Marcela Pronko, destacou que os cursos de graduação da área da Saúde – em especial a Medicina – são a ponta de lança do processo combinado de financeirização e digitalização da educação.
Turbinadas por programas como o FIES e o Prouni (em si, organizados em torno do mecanismo financeiro das dívidas estudantis), as instituições privadas de ensino superior têm apostado cada vez mais na Educação a Distância (EaD). Nesse mercado, “as formações na área da Saúde são as mais valorizadas, por serem mais caras e terem maior potencial de ganho”, ela explica. Ao acumularem capital com cursos virtuais precários que fragilizam a formação dos profissionais da saúde e de outros campos, as universidades particulares se projetam para abrir capital na Bolsa de Valores – e, assim, fazem girar o motor da financeirização-digitalização com o combustível da Saúde e da Educação.
Na visão de Edemilson Paraná, alguns dos principais “ativos estratégicos dessa nova economia digital” são a capacidade de processamento, armazenamento e catalogação de dados e a “infraestrutura ciclópica” (data centers, geração de energia, cabos de fibra ótica e assim por diante) que a sustenta.
Hoje, o desenvolvimento dessas capacidades pelo Brasil segue incipiente – e há o risco de elas serem construídas de forma subordinada às Big Techs, e não por um caminho autônomo. A Saúde precisa estar atenta a esse processo. “É preciso criar novas possibilidades de soberania digital e comunitária”, concluiu Edemilson.
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