Crise no AC Camargo expõe urgência de repensar o SUS

Instituição que é referência nos tratamentos oncológicos ameaça deixar Saúde Pública. Crise expõe desfinanciamento do sistema – mas também necessidade de novas relações com prestadores privados

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Cidade mais rica do país, São Paulo não escapa do samba de uma nota só a que se reduziram as gestões orientadas pelo dogma da austeridade fiscal. Se no começo do ano a prefeitura teve de entrar na justiça para evitar uma greve dos médicos exaustos de trabalhar e adoecer na pandemia, desta vez a bomba foi jogada em seu colo pelo setor privado. O Hospital do Câncer AC Camargo, que desde 1943 presta atendimentos oncológicos, anunciou que em dezembro deixará de atender pacientes do SUS. 

A direção do hospital alega uma defasagem histórica na tabela do sistema, isto é, nos valores que o ministério da Saúde paga por procedimento médico prestado por hospitais privados. Se a ruptura se consumar, o desastre será gravíssimo. Construído com doações públicas, o AC Camargo é, ao lado do Instituto do Câncer, a grande referência paulista em terapias oncológicas no estado. Como enfrentar a crise?

No que se refere ao SUS, “o mais importante é rediscutir as formas de financiamento dos serviços prestados por instituições privadas, pois o problema é maior que a defasagem financeira do pagamento das atividades e procedimentos. Talvez seja necessária uma revisão do modelo de remuneração, que infelizmente está ultrapassado. Ele baseia-se na produção física de serviços, e não na qualidade e no resultado do serviço prestado”, disse ao Outra Saúde Luiz Santini, ex-presidente do Instituto Nacional do Câncer (INCA).

Ele prossegue, abordando os tratamentos oncológicos: “com certeza, esses procedimentos, de alta complexidade, são muito caros”. Por isso, não será possível desatar o nó sem rever o orçamento do Ministério da Saúde, “que não é suficiente para manter as atividades que se propõe a organizar – isto é, a cobertura universal do atendimento à população”.

A revisão das remunerações ao setor privado, um tema debatido há muito no âmbito do SUS, não ocorrerá até dezembro, data do possível descredenciamento do AC Camargo. Como evitar que ele se consume? A prefeitura parece minimizar a perda, falando em “transferir” os 6.500 pacientes tratados no hospital para outras instituições. Porém, não é preciso aceitar a fatalidade.

Os limites da tabela do SUS não são absolutos, lembrou o ex-ministro Alexandre Padilha em entrevista à Rede Brasil Atual. Para manter um serviço essencial à população, a prefeitura pode buscar novas fontes de financiamento, diz ele. Uma cidade com R$ 32 bilhões de arrecadação fiscal tem meios de agir.


Se necessário, aliás, a prefeitura poderia adotar medida mais extrema, mostrou matéria da Folha de S.Paulo. Como o terreno em que está instalado o AC Camargo foi doação do estado de São Paulo, o poder público tem meios jurídicos  para pressionar os administradores a manter o atendimento ao SUS. O que parece faltar é vontade política para exercer tal prerrogativa. Talvez como parte do velho estratagema de sucatear o sistema público e forçar a população a adquirir os planos privados.

Nesse caso, os retrocessos podem não se limitar ao AC Camargo – nem a São Paulo. Ainda antes da crise paulistana, e alegando o mesmo tipo de defasagem, a De Vita, maior rede de hemodiálise do país, com 91 clínicas e 41 mil pacientes, ameaçou interromper a prestação de serviços ao SUS. “Cerca de 90% das clínicas de diálise que atendem à Saúde Pública são privadas”, lembrou outro texto da Folha. 

Às vésperas da eleição presidencial, e em meio a uma retomada das lutas pela Saúde Pública, as crises expõem a necessidade de um amplo debate sobre os rumos do SUS. Para resolvê-la, há um pré-requisito óbvio: superar o desfinanciamento do sistema. Mas parece indispensável reafirmar a consigna de um “SUS 100% público”, que implica estabelecer nova relação com os prestadores privados e reduzir progressivamente o papel que eles desempenham no atendimento à população.

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