Conferência Livre constrói bases para virada democrática

Após meses de mobilização e debates, movimentos pela Saúde lançam suas propostas para um SUS fortalecido. Lula rechaça mantra neoliberal, sustenta que “Saúde não é gasto” e promete encerrar subfinanciamento dos serviços públicos

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Após quatro meses de intensos debates e reflexões sobre o futuro do SUS pelo Brasil, aconteceu na última sexta-feira, 5/8, a  etapa nacional da Conferência Livre Democrática e Popular de Saúde. O evento, que teve como palco a Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, em São Paulo, foi marcado por um discurso contundente de Lula. O candidato à presidência anunciou que romperá com a política de sufocamento dos investimentos públicos, que se arrasta desde 2016. “Em meu governo, não haverá teto de gastos”, prometeu. Sustentou ainda, ao contrário do que prega o mantra neoliberal, que “A Educação e a Saúde não são gastos”. E afirmou estar comprometido com a luta pela vida e em defesa do SUS. A íntegra de sua fala pode ser lida aqui e o vídeo (que inclui momentos importantes de improviso, aqui, a partir de 13m12s).

A Conferência aconteceu em três momentos. Pela manhã, uma mesa inicial debateu pontos dos eixos para o resgate do SUS e da Saúde Pública formulados ao longo de dezenas de eventos preparatórios. Em seguida, foi organizado um ato político com a presença dos dirigentes das entidades que constituem a Frente pela Vida e a fala de congressistas que defendem a saúde pública como os deputados Jandira Feghali (PCdoB) e Alexandre Padilha (PT) e o senador Fabiano Contarato (PT). Esta etapa foi encerrada com o discurso de Lula. Por fim, já no período da tarde, uma plenária final para aprovação das Diretrizes para a Política de Saúde no Brasil, com a contribuição dos presentes.

Na primeira parte, durante a mesa Saúde e Democracia: a defesa da vida debateram Sonia Fleury, Carlos Ocké, Conceição Silva, Junior Hekurari Yanomami, Fátima Lima e Luiz Augusto Facchini. Em todas as falas, estava presente o reconhecimento do Sistema Único de Saúde como algo essencial à democracia brasileira e necessário no processo emancipatório do país. Em uma diversidade de rostos e contextos, debateu-se dos problemas da saúde indígena à importância da interseccionalidade para além do discurso.

Mas as falas também apontaram para um futuro em que seja possível superar a destruição que está em curso nos últimos anos, em especial a partir da entrada de Bolsonaro no poder. Carlos Ocké, economista da Associação Brasileira de Economia da Saúde, sugeriu que é preciso elaborar um plano de emergência para ser iniciado em 2023. E ele depende de um novo modelo de desenvolvimento, que pode ter o Complexo Econômico-Industrial de Saúde como uma de suas bases.

No entanto, alertou Sonia Fleury, figura histórica na luta pela criação do SUS, não basta apoiar novos modelos econômicos e de desenvolvimento: é preciso lutar para que sejam destinados a um sistema de saúde equânime. Por isso, defende ela, é preciso lembrar que o projeto para a democracia e o SUS defendido pela Conferência Livre não é o mesmo que o dos empresários ligados ao neoliberalismo. Mesmo assim, Sonia sustenta: chegou a hora da virada, de o Brasil se reaproximar da dignidade da política para a solução de problemas. Ela também exaltou a ideia do orçamento participativo e alertou: é passada a hora de incorporar, na política, a potência das favelas e das periferias, que mostram força mesmo abandonadas do poder público.

Durante o ato em defesa do SUS, que aconteceu após o debate inicial, o palco foi preenchido por figuras essenciais para a luta pela saúde pública. Além do presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, e de líderes da Abrasco (Rosana Onocko), Cebes (Lúcia Souto), Rede Unida (Túlio Franco) e SBB (Elda Bussinguer), participaram políticos e ex-ministros da Saúde. José Gomes Temporão, Humberto Costa e Alexandre Padilha, estavam entre eles. 

Em seu discurso, o senador Contarato comemorou a aprovação, naquele mesmo dia, de projeto de lei de sua autoria que firmou o piso salarial para profissionais da Enfermagem. Jandira Feghali também defendeu a valorização dos trabalhadores da saúde. E afirmou que para garantir o SUS da maneira como foi previsto na Constituição de 1988, será preciso uma vasta mobilização social. Padilha relembrou o momento histórico da 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando foram construídas as bases para o SUS, em 1986.

Um momento forte do ato político aconteceu durante a fala de Putira Sacuena, indígena baré e conselheira de saúde. “É difícil falarmos de saúde indígena com nossos territórios sendo invadidos, não tendo segurança para dormir, crianças passando por um processo de desnutrição, garimpeiros trazendo violência.” Putira emocionou-se ao olhar diretamente ao ex-presidente Lula: “Está na hora de o Brasil acordar e valorizar seus povos, de reconhecer as suas ancestralidades”. “Vocês fizeram a Amazônia ficar do jeito que está”, dirigiu-se a todos os presentes. “Aprendemos a falar a língua portuguesa para que todos vocês nos ouvissem. Saúde é território, saúde é educação, mas acima de tudo saúde é segurança de dormir e acordar vivos – e nossas lideranças precisam disso.”

Lúcia Souto, presidente do Cebes, afirmou que aquele estava sendo um encontro histórico, uma honra para todo movimento sanitário do Brasil. “Não há como resolver emergência sanitária sem solidariedade. O Brasil só mudará com soberania. Queremos radicalizar a democracia com ampla participação popular”, enfatizou. Túlio Franco, coordenador-geral da Rede Unida, destacou que a Frente pela Vida iniciou suas atividades quando o governo negacionista expunha a vida da população. “Sairemos daqui com uma proposta consistente pelas políticas de saúde no Brasil.”

Lula fechou o bloco com um discurso contundente, diferente do que foi visto no primeiro documento de diretrizes lançado por sua campanha, que sofreu críticas de defensores do SUS. “Não podemos continuar usando a palavra gasto quando se trata de cuidar da saúde do povo brasileiro. É um equívoco”, defendeu. Exaltou os trabalhadores da saúde e seu esforço durante a pandemia e frisou a necessidade de investir na Estratégia de Saúde da Família.

Durante o ato, a Frente pela Vida entregou uma carta de compromisso a Lula, convocando-o a inserir em seu programa alguns pontos essenciais. Entre eles, estão a recomposição do orçamento, o incentivo ao Complexo Industrial da Saúde, o reconhecimento do importante papel do Conselho Nacional de Saúde e a necessidade de que o SUS seja público e que atenda todos os brasileiros.

O momento final da Conferência foi de abertura de sugestões dos presentes a um documento que será levado à 17ª Conferência Nacional de Saúde, que acontece em julho de 2023. Esse documento foi elaborado com a colaboração de todas as Conferências regionais que aconteceram desde abril. Essa etapa do evento foi iniciada com a provocação precisa do ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão: “Nós não queremos mais do mesmo, não queremos simplesmente reativar bons programas. É pouco. Queremos ir muito além disso. Só teremos de fato um SUS constitucional se fizermos mudanças profundas na gestão, na relação público-privada, no financiamento, na participação e no planejamento”.

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