Como patentes atrasam o combate às hepatites

Para prolongar lucros com sofosbuvir, remédio que cura a hepatite C, empresa dos EUA chegou a bloquear genérico no Brasil – encarecendo e dificultando ações contra a doença. Reforçar soberania em tecnologias de saúde se mostra essencial

Foto: GTPI/Rebrip
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Por Susana van der Ploeg e Bartolomeu Luiz de Aquino, para a coluna Saúde não é mercadoria

No Brasil, segundo os dados do Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais de 2025, entre 2000 e 2024, foram registrados mais de 826 mil casos confirmados de hepatites virais, sendo a hepatite C a mais prevalente (com 342 mil casos) e também a que mais causa mortes, responsável por 75% dos óbitos relacionados a essas infecções.

A transmissão de hepatites virais está fortemente associada a determinantes sociais da saúde, afetando desproporcionalmente populações em situação de vulnerabilidade, em contextos de pobreza e exclusão social, como pessoas privadas de liberdade, usuárias de drogas, moradores de rua, moradores nas áreas ribeirinhas, quilombolas e profissionais do sexo.

Durante muitos anos, no Brasil, pacientes com hepatites virais não tinham acesso aos testes de diagnóstico nem a tratamentos adequados. Até recentemente, a linha de cuidado das hepatites no Ministério da Saúde fazia parte do orçamento de produtos especializados, financiados pelo MS, mas adquiridos de forma descentralizada, o que dificultava o acesso em diversas regiões. Apenas em 2021, após intensa mobilização do Movimento Brasileiro de Hepatites Virais, as hepatites passaram a integrar o componente estratégico da assistência farmacêutica, por meio da Portaria GM/MS nº 4.114. 

Desde então, houve avanços importantes, mas os desafios seguem sendo expressivos. O principal deles envolve a trajetória do medicamento sofosbuvir, que combina a promessa de cura da hepatite C após 12 semanas de tratamento com a frustração das dificuldades de acesso ao fármaco. A história desse medicamento revela a estratégia abusiva da farmacêutica norte-americana Gilead  para lucrar o máximo possível com sua patente, o impacto do monopólio na saúde pública e, mais recentemente, a entrada do genérico no SUS por meio de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs).

Cura negada: o monopólio de sofosbuvir

O sofosbuvir é um antiviral de ação direta utilizado no tratamento da hepatite C crônica, que representa um avanço significativo por substituir terapias anteriores menos eficazes e com muitos efeitos colaterais, como o interferon peguilado. Desenvolvido inicialmente pela empresa Pharmasset com financiamento público, o sofosbuvir entrou em estudos clínicos e, em 2011, a multinacional americana Gilead Sciences adquiriu a Pharmasset por 11 bilhões de dólares, tornando-se detentora das patentes do medicamento no Brasil e no mundo. Em 2013, o medicamento foi aprovado nos EUA. 

No entanto, a Gilead adotou uma estratégia agressiva de monopólio, utilizando o sistema de patentes de forma abusiva e impondo preços escandalosamente altos. Nos Estados Unidos, o tratamento de 12 semanas foi lançado ao custo de 84 mil dólares — o equivalente a mil dólares por comprimido. A cura fora do alcance! Campanhas como as do Médicos Sem Fronteiras denunciaram o absurdo da precificação, comparando o sofosbuvir a diamantes e ouro: “medicamentos não são artigos de luxo, mas a grama do sofosbuvir custa 67 vezes mais que a do ouro”.

O relatório do Grupo Direito e Pobreza da USP apresenta uma análise detalhada e rigorosa sobre a atuação da Gilead no mercado brasileiro de medicamentos à base de sofosbuvir, essencial no tratamento da hepatite C. O estudo demonstra que, entre 2015 e 2018, a empresa deteve 99,96% das vendas públicas, configurando um monopólio fático e, a partir de 2019, um monopólio formal com a concessão da patente. Nesse período, a Gilead praticou discriminação de preços entre entes federativos — cobrando até quatro vezes mais de estados e municípios — e aumentos arbitrários de até 1.400% quando não havia concorrência. 

Quando o laboratório público Farmanguinhos tentou entrar no mercado com um genérico, os preços caíram drasticamente, mas a Gilead rapidamente obteve a patente para impedir a concorrência e retomar os lucros abusivos. A análise revela uma estratégia deliberada de extração de recursos públicos, incompatível com o direito à saúde. A partir da comparação internacional, o estudo escancara ainda a prática sistemática de discriminação de preços por parte da Gilead, cobrando valores muito inferiores em países com concorrência e sem patente, como Índia e África do Sul — onde o preço por cápsula foi até sete vezes menor do que no Brasil.

Leia a reportagem de Outra Saúde que noticiou a entrega do primeiro lote do sofosbuvir por Farmanguinhos.

A pesquisa do Grupo Direito e Pobreza da USP demonstrou que os preços não são definidos por lógica de mercado, mas pela existência de monopólios assegurados por um sistema de patentes distorcido. O relatório reforçou a necessidade de uma resposta firme do Estado brasileiro: é urgente acionar os mecanismos legais previstos na legislação nacional e internacional, como o licenciamento compulsório, para proteger a saúde pública, o SUS e a soberania nacional frente ao abuso das grandes farmacêuticas.

Entre 2015 e 2018, o SUS gastou mais de R$ 1,4 bilhão com o medicamento, e o acesso ficou restrito a pacientes em estágios avançados da doença. Em compra realizada em 24 de agosto de 2017, o governo brasileiro pagou cerca de US$ 4.200 por cada tratamento com Sofosbuvir (12 semanas). O valor ultrapassa em muitas vezes o preço pago em outros países que tomaram medidas para garantir a oferta de genéricos. Na Índia, o mesmo tratamento custava cerca de US$ 100 e no Egito cerca de US$ 180. Até 2016, já haviam sido tratadas mais de 1 milhão de pessoas no Egito, enquanto no Brasil foram tratados apenas 55.509 pacientes até abril de 2017.

A Gilead apresentou dezenas de pedidos de patente relacionados ao sofosbuvir. Várias instituições, como GTPI/Rebrip, ABIA, Farmanguinhos, Anvisa, Abifina e a Blanver, apresentaram subsídios pedindo a rejeição da patente, alegando ausência de requisitos de patenteabilidade. O INPI chegou a emitir parecer técnico contra a concessão, mas mudou de posição após pressão judicial da Gilead, concedendo a patente em 2018. A medida gerou uma série de reações judiciais e administrativas, incluindo liminares, ações da Defensoria Pública da União e uma representação no CADE por abuso de posição dominante.

Mesmo antes da patente ser oficialmente concedida, a Gilead atuava para bloquear concorrência e limitar a produção de genéricos. Judicializou contra Farmanguinhos, tentou impedir entregas de medicamentos por empresas concorrentes vencedoras de pregões e denunciou acordos de desenvolvimento do genérico ao TCU. Em 2018, cerca de 15 mil tratamentos genéricos ficaram retidos por liminar da Gilead. A empresa também se recusou a negociar preços compatíveis com as estimativas do Ministério da Saúde, levando ao fracasso de pregões como os de 2020 e 2022. A Gilead foi única participante, mas seus preços foram considerados abusivos — um deles foi de cerca de R$ 15.167 por tratamento, posteriormente reduzido a cerca de R$ 6.300, ainda acima do estimado pelo Ministério (R$ 4.721), levando o certame ao fracasso e forçando o MS a aceitar os valores exigidos para não interromper o fornecimento de medicamentos via SUS.

Leia reportagem de Outra Saúde sobre os altos preços dos medicamentos de hepatite e o percalço que representam para o combate à doença.

Da Gilead às PDPs: por que o Brasil ainda paga caro pelo Sofosbuvir?

Sabemos que o sistema de patentes tem como objetivo o monopólio para garantia do lucro, restringe o acesso a medicamentos essenciais e impõe preços abusivos. Em vez de garantir tecnologias para o bem comum, ele tem servido para assegurar lucros bilionários aos acionistas de grandes farmacêuticas. A atuação da Gilead no Brasil é emblemática dessa distorção: a empresa lançou mão de uma série de manobras legais e extralegais para prolongar artificialmente o monopólio do sofosbuvir, explorando o SUS e restringindo o acesso à cura da hepatite C. 

Diante da atuação predatória da Gilead e para reduzir a dependência tecnológica e garantir o acesso universal, o Estado brasileiro buscou uma alternativa para garantir o acesso ao tratamento da hepatite C e reduzir a dependência tecnológica: por meio do Programa de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), foram firmadas, entre 2012 e 2018, iniciativas com laboratórios públicos como Farmanguinhos e FURP e empresas nacionais como Blanver, EMS e Cristália, para viabilizar a produção local dos medicamentos sofosbuvir e daclatasvir, inclusive de seus Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA). A expectativa era clara: absorção tecnológica, fortalecimento da produção nacional e redução progressiva dos preços.

Apesar de não haver mais barreira patentária sobre o sofosbuvir e de já existir produção local do genérico, o preço do medicamento no Brasil continua sendo motivo de grande preocupação. Se compararmos os valores atualmente pagos pelo Ministério da Saúde com os preços praticados pelo Fundo Estratégico da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), fica evidente que o país está pagando muito mais do que deveria para adquirir tanto o sofosbuvir quanto o daclatasvir.

Hoje, o preço por comprimido do sofosbuvir 400 mg no Brasil é de R$ 29,50, e do daclatasvir 60 mg, R$ 27,50. Como esses dois medicamentos compõem um dos principais esquemas terapêuticos utilizados para tratar a hepatite C, o custo total por paciente chega a R$ 4.788,00. Já pelo Fundo Estratégico da OPAS, os preços por comprimido são de R$ 2,55 e R$ 2,75, respectivamente — o que reduziria o custo do tratamento para apenas R$ 445,20 por paciente. A diferença é brutal.

Esses valores exorbitantes pagos pelo Ministério da Saúde não apenas limitam o número de pessoas que poderiam ser tratadas e curadas da hepatite C, como também impõem uma carga desnecessária ao orçamento da União, comprometendo recursos que poderiam ser destinados a outras políticas públicas de saúde.

É inaceitável que, após uma luta tão longa para garantir a produção de genéricos e romper o monopólio da Gilead, o Brasil continue pagando caro pelo sofosbuvir. É necessário urgentemente rever os contratos das PDPs, assegurar a transparência nos custos de produção e retomar o controle público sobre o financiamento de tecnologias estratégicas para a saúde. Permanecer pagando preços inflacionados, mesmo com genéricos já disponíveis e sem barreiras patentárias, é uma afronta ao direito à saúde e à boa gestão dos recursos públicos.

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