Atrofia Muscular Espinhal e o alto custo do cuidado

Cerca de 300 crianças nascem com a doença anualmente, mas diagnóstico é complicado e às vezes vem tarde. Remédio que pode curar é considerado o mais caro do mundo. Uma mãe conta as dificuldades de criar seu filho de 22 anos

Créditos: Iname
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Fátima Braga em entrevista a Gabriel Brito

Fátima Braga, 54, é administradora de empresas em Fortaleza. Em tese, teria uma vida com condições materiais superiores à grande maioria dos brasileiros. Mas seu filho, Lucas, nasceu há quase 22 anos com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo 1, doença neurodegenerativa que impossibilita o pleno desenvolvimento das funções motoras mais essenciais. Mesmo com tratamento garantido pelo SUS e com assistência de plano de saúde, ela precisa gastar milhares de reais todos os meses para dar a ele uma vida digna. A expectativa média de seus portadores é de 10 anos de idade. Em casos em que o diagnóstico e o tratamento demoram, o que não é raro, este tempo pode baixar para algo em torno de dois anos. Anualmente, cerca de 300 crianças nascem com AME no Brasil.

Ao Outra Saúde, Fátima Braga contou um pouco de sua história e dos imensos sacrifícios vividos por mães que cuidam de pacientes com AME. Aqui, vale lembrar que mais essa tarefa do cuidado humano, invisível, não remunerado nem coberto por alguma política pública, recai sobre a mulher. Ela e outras mães avisam à sociedade que, tal como seus filhos, também precisam de acolhimento e tratamento.

“É uma questão super importante e uma das coisas que mais me incomoda. Estou há quase 22 anos na luta com a AME e não temos nenhuma política pública voltada às mães e sua saúde mental. Nem todo dia somos fortes e aguentamos isso tudo. Passei por um período difícil recente, passei por uma cirurgia, que ainda está aberta e tive de deixar minha dor de lado para cuidar de meu filho. Há de se convir que não é só a criança que adoece, mas toda a família. Casamentos acabam, mães deixam de trabalhar, porque mesmo com home care não há condições de passar 12 horas por dia fora de casa e deixar seu filho com outras pessoas. E nesse âmbito do home care as mães assumem a frente em 99% das vezes”, desabafou.

Fátima é presidente da Associação Brasileira de Amiotrofia Espinhal, uma das cinco grandes associações que reúnem mães de portadores de AME. Elas fazem parte do Universo Coletivo AME, mais uma rede de solidariedade tecida no chão social, a juntar pessoas que compartilham histórias de luta, sofrimento, invisibilidade e privações. E querem ser ouvidas pelo poder público.

“Pode-se fazer diagnóstico precoce, incluir a AME no teste do pezinho, dar prioridade. Estamos falando da segunda doença genética que mais mata no Brasil até os dois anos de idade. A AME não tira só a questão motora de andar, mas de respirar, se alimentar. A criança fica em cima de uma cama, comendo por sonda, respirando por aparelhos e tudo isso com sua cognição normal. É isso que dói, pois a criança vai crescendo totalmente consciente de sua condição especial, de que precisa de cuidados. Se trabalhássemos em cima do diagnóstico, que já é lei e só falta ser aplicada, quantas crianças poderiam ser salvas e ter uma vidinha normal?”, explica Fátima.

Na conversa com o Outra Saúde, ela explicou que o SUS funciona para tratar a AME. Mas há necessidades que vão além do previsível, como mostra a história de Lucas, que supera a expectativa de vida média da enfermidade e vive resguardado em casa, num quarto adaptado com estrutura hospitalar para tratá-lo. Os custos mensais para Fátima batem na casa dos R$ 15 mil. Algo fora da realidade da maior parte das famílias brasileiras.

“Algumas vezes precisamos escolher o que é ou não é importante. Recentemente, tive de pagar para meu filho ter um acesso venoso em domicílio, pois não dava para levá-lo ao hospital, uma vez que os médicos – neste caso cirurgião vascular – do hospital não tinham agenda. Lucas tinha urgência de tomar antibiótico venoso. Tive de contratar uma profissional para fazer do quarto do meu filho um centro cirúrgico e conseguir o acesso. Tive de chamar infectologista, pneumologista, tudo particular. Alguns exames feitos para controlar a infecção do Lucas tiveram de ser pagos, pois o plano não cobria, o que é um absurdo. Confesso que deixo de pagar algumas coisas para investir na saúde do meu filho”, contou.

Como se vê, os tratamentos da doença são custosos, não só do ponto de vista financeiro, dado que os três remédios disponíveis no Brasil são de alto custo. O zolgensma, recém-incorporado pelo Conitec, ficou conhecido como o “remédio mais caro do mundo”, e promete cura a crianças portadoras de AME, desde que tratadas antes dos dois anos de idade. No mês passado, o Hospital Infantil Lucídio Portella, no Piauí, foi o primeiro a aplicar uma dose deste fármaco em uma criança. Mas a situação de quem já convive com a AME segue duríssima.

“Quem abriu as portas e salvou o Lucas foi o hospital público pediátrico da cidade, que é referência. Com um ano de vida, ele já tinha plano de saúde, mas na época, quando precisamos, negaram atendimento a meu filho, alegando que ele tinha doença pré-existente. Usei tratamentos públicos e privados, mas neste segundo caso tive de entrar na justiça. Na saúde privada, os passos são bem menores. Conseguimos alguma coisa, mas menos que no serviço público. Meu filho tem home care no plano, conquistamos um espaço para sermos ouvidos. Mas quando precisamos ver especialistas específicos precisamos pagar em particular, porque os melhores profissionais não estão atendendo nos planos. É um custo bastante alto quando se deseja um atendimento melhor.”

Em suma, estamos falando de um drama da saúde que exige intervenção política multidimensional, para além do paciente. De um lado, o melhor que a medicina pode oferecer. E rapidez no diagnóstico, decisivo para a sorte de quem nasce com tal doença. De outro, um olhar mais cuidadoso, pois como explica Fátima as condições para auxílio aos familiares já existem. “É sabido que a nossa carga emocional é muito alta. Não precisamos de investimentos em coisas novas. Bastava vontade política para fazer os CAPS atenderem essas mães, que sofrem de ansiedade, depressão. Sempre vemos mães que se suicidam, não aguentam o tranco, vira e mexe uma mãe tira a própria vida, porque não tem estrutura familiar, é uma pessoa mais fragilizada, não é ouvida… O que recebemos de pancada vocês não têm ideia.”

Leia a entrevista completa com Fátima Braga.

O que você pode contar de sua relação com a Atrofia Muscular Espinhal de seu filho? Vocês fazem o tratamento desde o início da vida de Lucas?

Lucas começou a ter alguns sintomas, mas há 22 anos não se falava em AME. Assim, ele começou a viver a doença da maneira mais triste, através de suas complicações enquanto recém-nascido, logo aos quatro meses de vida. Teve de ser entubado aos quatro meses e a partir daí teve toda sua vida transformada. Ele entrou no hospital de um jeito e saiu de outro, traqueostomizado, alimentando-se por uma sonda na barriga.

Foram uns seis meses para os médicos notarem que ele era diferente, que tinha algo não condizente com uma criança de seis meses. Até o diagnóstico ser fechado, ele tinha 1 ano e 2 meses e era tratado como se tivesse uma doença neuromuscular a ser investigada. Na época, lembro que para conseguir um exame genético tive de correr atrás, me virar no hospital Sara Kubitschek, um ambiente fechado, mas consegui que fizessem um exame genético do meu filho.

Conviver com a AME é como se todos os dias tivéssemos de nos equilibrar numa corda bamba. Nenhum dia é igual ao outro. O paciente dorme de um jeito, amanhece de outro, sucessivamente. Ao longo desses 22 anos, foi um esforço sobrenatural para conseguir dar-lhe qualidade de vida.

Vocês usam o sistema público e privado simultaneamente para o tratamento da AME em todos esses anos?

Quem abriu as portas e salvou o Lucas foi o hospital público pediátrico da cidade, que é referência. Com um ano de vida, ele já tinha plano de saúde, mas na época, quando precisamos, negaram atendimento a meu filho, alegando que ele tinha doença pré-existente. Usei tratamentos públicos e privados, mas neste segundo caso tive de entrar na justiça.

Dentro do serviço público, trilhamos um caminho e este hospital é referência para criança com AME no Norte/Nordeste. Hoje fazem um trabalho belíssimo, tem laboratório de neurogenética, hospital-dia, os médicos hoje dominam a doença e o hospital virou referência. Na saúde privada, o os passos são bem menores. Conseguimos alguma coisa, mas menos que no serviço público. Meu filho tem home care no plano, conquistamos um espaço para sermos ouvidos. Mas quando precisamos ver especialistas específicos precisamos pagar em particular, porque os melhores profissionais não estão atendendo nos planos. É um custo bastante alto quando se deseja um atendimento melhor.

Dessa forma, o SUS até funciona bem, mas não tem toda a estrutura multiprofissional necessária?

O SUS tem os profissionais, mas meu filho é atendido pelo home care do plano. E como não é mais um paciente infantil, não tem mais idade para ser atendido no hospital pediátrico.

Mas por que a estrutura não se estende a pessoas em idade adulta?

No Brasil, a AME tipo 1, a mais grave, não tem estrutura suficiente em nenhum lugar do Brasil, pois tradicionalmente é uma doença cujos portadores têm baixa expectativa de vida. Quando o paciente se torna adulto, é como se tudo começasse de novo.

Como é essa rotina de busca por tratamento nos sistemas público e privado, seus gastos e como isso afeta a vida de pessoas como você?

O home care tem médicos generalistas, clínico, geriatra. Meu filho acabou de sair de uma pneumonia. Eu precisava de um infectologista e um pneumonologista. Os planos não têm esses profissionais no home care, só no consultório. Mas como vou levar ao consultório um paciente acamado, preso a um respirador, que faz uso de medicamento venoso? O médico teria de vir, mas o plano não tem atendimento domiciliar. Você que chame no particular e pague. E assim vamos sobrevivendo.

E como vocês vão sobrevivendo, diante dos custos que isso carrega? Foi essa dificuldade econômica que levou à criação das associações de familiares que cuidam de pessoas com AME?

Temos uma longa amizade, entre todas as cinco associações reunidas no universo coletivo AME, afinal, somos todas mães de filhos com AME. Tivemos necessidade de criar as associações para tratar de políticas públicas, trazer pelo menos o básico aos pacientes. Nos unimos para ter mais força, mais voz, mais política pública, tratamento, diagnóstico. Ao longo dos últimos dois anos elaboramos um trabalho muito bacana, com associações no Nordeste, Sudeste e Sul. São cinco grandes grupos que trabalham a questão da AME, uma experiência de longos anos de caminhada.

Sobre os custos, algumas vezes precisamos escolher o que é ou não é importante. Recentemente, tive de pagar para meu filho ter um acesso venoso em domicílio, pois não dava para levá-lo ao hospital, uma vez que os médicos – neste caso cirurgião vascular – do hospital não tinham agenda. Lucas tinha urgência de tomar antibiótico venoso e não tem veia suficiente para aguentar. Tive de contratar uma profissional para fazer do quarto do meu filho um centro cirúrgico e conseguir o acesso. Tive de chamar infectologista, pneumologista, tudo particular. Alguns exames feitos para controlar a infecção do Lucas tiveram de ser pagos, pois o plano não cobria, o que é um absurdo. Eram simples exames de sangue, chamados procalcitonina. Custa R$ 270, mas ao longo de um tratamento onde se faça quatro vezes já passa de R$ 1.000. Fora outros gastos.

Confesso que deixo de pagar algumas coisas para investir na saúde do meu filho. E não queria que ele se submetesse a ir ao hospital, onde poderia piorar. A AME é assim, a imunidade das pessoas é melhor em casa, enquanto no hospital ficam bem vulneráveis a infecções, bactérias, é bem complicado.

Vemos que os remédios para AME são bem caros. É possível melhorar as condições de tratamento das pessoas doentes? O que poderia ser acrescentado?

Os três medicamentos incorporados ao SUS são caríssimos, um deles de terapia gênica. E não é por estar incorporado que o acesso é fácil, ainda que se pense isso. Mas a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) faz um protocolo de diretrizes terapêuticas que diminui o caminho para o paciente chegar ao medicamento. Colocam-se limites de idades e outras barreiras para acessar o tratamento. Tem pacientes que demoram um ano ou vários anos para ter um diagnóstico. Por exemplo, coloca-se que paciente até o quinto mês de vida tem direito a um dos remédios. A criança começa a dar sinais de AME aos três meses, mas chega aos seis meses sem diagnóstico. Quando vamos atrás, está fora do protocolo e fica sem acesso, e assim chega-se a ações judiciais. Portanto, não é só incorporar ao SUS, mas dar condições de acesso.

O ministério pode fazer diagnóstico precoce, incluir a AME no teste do pezinho, dar prioridade. Estamos falando da segunda doença genética que mais mata no Brasil até os dois anos de idade. A AME não tira só a questão motora de andar, mas de respirar, se alimentar. A criança fica em cima de uma cama, comendo por sonda, respirando por aparelhos e tudo isso com sua cognição normal. Isso que dói, pois a criança vai crescendo totalmente consciente de sua condição especial, de que precisa de cuidados. Se trabalhássemos em cima do diagnóstico, que já é lei e só falta ser aplicada, quantas crianças poderiam ser salvas e ter uma vidinha normal?

Por fim, devemos falar de todo o alto custo de ter um filho com AME tipo 1, do acesso aos medicamentos, de diagnóstico precoce, educação, pois tais crianças não têm como ir à escola. Aqui no Ceará tem um projeto que leva professores aonde estão as crianças, mas nos outros estados do Brasil essas crianças não têm sequer direito à educação, o que é um absurdo. Portanto, o poder público tem uma dívida muito grande conosco. Falamos de uma doença que foi descoberta há quase 140 anos e até agora praticamente não avançamos.

Que estratégias vocês desenvolvem para dar conta de dificuldades que em muitos casos devem transcender suas condições materiais, físicas e psicológicas?

É uma questão super importante e uma das coisas que mais me incomoda. Estou há quase 22 anos na luta com a AME e não temos nenhuma política pública voltada às mães e sua saúde mental. Nem todo dia somos fortes e aguentamos isso tudo. Passei por um período difícil recente, passei por uma cirurgia, que ainda está aberta e tive de deixar minha dor de lado para cuidar de meu filho. Para se ajudar numa hora dessas devemos trazer experiências de outros lugares e assim tentar minimizar a dor de quem sofre.

Estávamos com várias agendas, inclusive de viagens a Brasília, e fiquei no meu canto cuidando de mim, mas queremos políticas públicas para as famílias, não só a criança diagnosticada com a doença. Há de se convir que não é só a criança que adoece, mas toda a família. Casamentos acabam, mães deixam de trabalhar, porque mesmo com home care não há condições de passar 12 horas por dia fora de casa e deixar seu filho com outras pessoas, pois a identidade materna faz as coisas fluírem mais. E nesse âmbito do home care as mães assumem a frente em 99% das vezes.

É sempre bem difícil. Tentamos ser ouvidas, levar nossa experiência, mesmo sem sermos pessoas da área da saúde. Aprendi ao longo desses 22 anos que nem todos os médicos querem nos ouvir, nem acham que estamos certas. Agora mesmo, quem diagnosticou que havia algo errado com meu filho, o que os exames provaram, fui eu.

É um desgaste muito grande, psicologicamente temos de recorrer a remédios, porque tem hora que não dá pra aguentar. Temos crise de choro, não conseguimos dormir, comer… É muito complexo, estamos falando de uma doença extremamente grave. Trazemos para dentro de casa uma criança que estaria na UTI do hospital. É uma responsabilidade imensa, pois quem está conosco é uma técnica de enfermagem. Não tenho médico, especialista, e tenho de saber tudo. Quantas vezes, com essas mãos aqui, salvei a vida de meu filho? Isso tem um peso emocional muito grande.

Há uma agenda de demandas estabelecida por vocês ao poder público? O que poderia ser feito para melhorar essa realidade?

Temos o aparelhamento através dos CAPS, que existem em todo o Brasil. Por que não usar tais equipamentos para mães atípicas, mães de filhos com doenças crônicas? É sabido que a nossa carga emocional é muito alta. Não precisamos de investimentos em coisas novas. Bastava vontade política para fazer os CAPS atenderem essas mães, que sofrem de ansiedade, depressão. Sempre vemos mães que se suicidam, não aguentam o tranco, vira e mexe uma mãe tira a própria vida, porque não tem estrutura familiar, é uma pessoa mais fragilizada, não é ouvida… O que recebemos de pancada vocês não têm ideia. Parece que não temos o pátrio poder sobre nossos filhos. E tem uma hora que não dá mais pra ficar calada. Portanto, penso que seria bom colocar os CAPS, que já têm tratamentos para coisas como ansiedade e depressão, a serviço de mães atípicas.

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