Patentes: Alckmin pode ter papel crucial

Movimentos se reúnem com ministro da Indústria para dizer: política do INPI deve se pautar pelo direito à saúde dos brasileiros. Caso baixe a cabeça para vontades da indústria, governo porá soberania nacional e bem-estar da população em risco

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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É algo próximo de um consenso que a tática de frente ampla foi indispensável para a apertada vitória de Lula nas eleições presidenciais do ano passado. Porém, desde o começo, estavam colocadas no tabuleiro político as limitações dessa aposta: a principal delas, a necessidade de fazer concessões aos segmentos menos avançados, ou mesmo conservadores e empresariais, que se dispuseram a compor a aliança democrática.

Com isso, caiu no colo das organizações populares e movimentos sociais – aí incluídos os que lutam pelo direito à saúde e defendem os princípios da reforma sanitária – a tarefa de pressionar o novo governo no sentido contrário. Isto é, cobrar todos os dias seu compromisso com os segmentos populares e suas bandeiras.

Uma das pautas decisivas em que não pode haver conciliação entre o que beneficia a população e o que exigem as empresas, argumentam os movimentos, é a política patentária do governo, uma questão bastante complexa e que raramente ocupa os principais noticiários do país. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), responsável por executar essa política, responde ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que hoje é ocupado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin.

Por isso, nesta semana, diversas organizações que compõem o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) se reuniram com Alckmin para entregar uma carta com uma série de propostas para uma política de patentes soberana e popular, incluindo  a “excepcionalidade da saúde na Propriedade Intelectual”. Outra Saúde conversou com Susana van der Ploeg, coordenadora do GTPI e parte da delegação que dialogou com o vice de Lula, para entendê-las.

A pressa na análise de patentes

Equipes do GTPI e do MDIC reunidas, com Alckmin à direita. (Foto: Cadu Gomes/VPR)

A reunião teve como pretexto uma decisão anunciada do titular do MDIC ainda no início do ano: Alckmin propôs que seja diminuído para apenas dois anos o prazo do INPI para concessão dos pedidos de patentes. Como a grande maioria dos depositantes de patentes são corporações estrangeiras, “a indústria farmacêutica transnacional” foi um dos principais setores a “tentar mostrar para o governo que eles são prejudicados pela demora do INPI” e arrancar essa concessão, explica Susana.

Mas o GTPI questiona a ideia, e acredita que o fundamental para o trabalho do INPI não é a velocidade – mas o rigor da análise. “O que a gente precisa é impedir o evergreening, as patentes secundárias, as patentes frívolas, as patentes sem inovação, em especial na área farmacêutica”, reivindica sua coordenadora. Todas essas são estratégias das corporações globais para acumular patentes e, com uma só tacada, travar o desenvolvimento de empresas locais e seguir lucrando por mais tempo com a saúde dos povos.

Além disso, a pressa na concessão de patentes contrasta com a lentidão do governo em responder à carta que solicita o licenciamento compulsório do dolutegravir, recebida em abril e até hoje não atendida. Utilizado para o tratamento de HIV por centenas de milhares de brasileiros, o medicamento está sob o que o GTPI considera uma “patente imerecida” da farmacêutica britânica ViiV. Alckmin e sua equipe se comprometeram a retomar a análise da carta.

Por todos esses elementos, o Grupo pede que o governo reconsidere a proposta – e também toda a lógica que vem sendo aplicada na política de Propriedade Intelectual (PI), herdeira do período neoliberal. “Esse sistema de PI é prejudicial para a indústria nacional e para a saúde pública”, eles alegam.

Anvisa fora do jogo, a gosto das transnacionais

Ainda em 2021, o rigor na análise dos pedidos de patente também foi prejudicado pela exclusão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Antes, a Anvisa entrava no processo de análise dos requisitos de patenteabilidade dos produtos farmacêuticos com uma perspectiva de saúde pública. De uma hora para outra, sem discussão pública, isso se modificou completamente e só o INPI analisa esses produtos”, explica o GTPI.

Com o fim da chamada “anuência prévia” da Anvisa, abriu-se ainda mais a porteira – já que o controle sobre a Big Pharma nunca foi pleno – para a concessão de patentes questionáveis, com grande ônus ao Estado.

“O orçamento da saúde está cada vez mais tomado por medicamentos patenteados, e outras ações, como campanhas, ficam prejudicadas. O orçamento para hepatites no Brasil, por exemplo, vai praticamente todo para a compra de medicamentos”, exemplifica Susana. Na tuberculose, “os medicamentos são caros e o Brasil é um país endêmico, então seria de interesse público não conceder essa patente”, diferente do que faz o INPI hoje, ela reivindica.

O horizonte, lembra o grupo, deveria ser o de não-concessão. Mas, para Alckmin, foi apresentada a alternativa de ser mais firme na exigência de contrapartidas aos donos das patentes. “A gente concede, mas em três anos a farmacêutica tem que produzir esse medicamento, incluindo o insumo farmacêutico ativo (IFA) aqui. Isso gera empregos, desenvolvimento e capacitação, além de garantir autonomia ao Estado frente à flutuação de preços”, sugere a coordenadora do GTPI.

Para que haja correlação de forças favorável para essa visão, a participação da Anvisa na análise das patentes pode ser essencial.

Complexo econômico-industrial da saúde

Equipes do GTPI e do MDIC reunidas, com Alckmin à esquerda. (Foto: Cadu Gomes/VPR)

Nesse âmbito da soberania farmacêutica, o GTPI frisou com Alckmin a centralidade do incentivo da produção local de medicamentos – e apresentou uma perspectiva sobre a importância de alinhar a política patentária “à soberania sanitária, ao desenvolvimento e à pesquisa nacional”.

“O investimento é super importante, ainda mais depois que a gente saiu de uma pandemia e viu como o Estado está extremamente vulnerável”. Mas, para a coordenadora do GTPI, a questão das patentes é incontornável. “Investir no complexo econômico-industrial da saúde é uma medida louvável, mas isso não vai acontecer de forma efetiva se não houver uma modificação da política de propriedade intelectual desse país”, frisa a advogada.

O exemplo indiano foi citado. “A Índia é hoje a maior exportadora de medicamentos genéricos do mundo, é a farmácia do Sul Global. Mas isso acontece porque ela tem  normas rigorosas para patentes farmacêuticas, impede o evergreening e é a favor da licença compulsória”, explica.

Por uma nova Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual

Outra caminho sugerido pelo GTPI para a colaboração do MDIC nessa reorientação das políticas que incidem sobre a Saúde é pela via da criação de condições para uma efetiva participação popular na revisão da Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual (ENPI) do Estado brasileiro. 

A ENPI hoje em vigor, promulgada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, “teve a participação da sociedade civil, de universidades, pesquisadores, mas sem modificar nada do que já estava na cabeça do governo”. “A gente participou dessa elaboração, mas não fomos ouvidos. Quem capturou todas as políticas de propriedade intelectual foram os agentes e procuradores de corporações transnacionais”, denuncia Susana.

São várias, portanto, as formas com que o MDIC pode cumprir um papel estratégico na elevação das políticas de Saúde do Brasil a um novo patamar. Alckmin, se agir nesse sentido e não titubear frente às pressões estrangeiras, deixará um importante legado. 

A urgência da reconstrução nacional após os anos de golpe e bolsonarismo pede decisão. Mas não só ela: a saúde dos brasileiros, pilar de construção de um país mais solidário e socialmente justo, também.

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