A indústria de alimentos e a mercantilização da vida
A verdade por trás da narrativa de que “se alimentar bem é questão de responsabilidade individual”: o impacto da indústria alimentícia e seu lobby na saúde pública
Publicado 01/07/2025 às 19:14
A nutricionista e pesquisadora estadunidense Marion Nestle, em livro publicado em 2002, argumenta que, por trás da narrativa de que decisões alimentares são questão de responsabilidade individual, há um sistema projetado para incentivar as pessoas a comerem mais e desencorajar escolhas saudáveis. Nesse sistema, a indústria de alimentos e seu lobby têm grande influência sobre políticas governamentais, e a preocupação principal é sempre o lucro, nunca a saúde pública.
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, em 2025, Marion diz que: “As empresas de alimentos criam um ambiente que estimula o consumo excessivo de comida, por meio de publicidade, marketing indireto, brindes, redes sociais, apoio a organizações, apoio a pesquisas. Longe da vista do público, há lobby e financiamento de campanhas eleitorais. A responsabilidade pessoal não têm chance contra essa investida esmagadora”. Não é à toa que, em meio a movimentos que denunciam a insegurança alimentar, como o MST, se paute que “comer é um ato político”. Comer de forma saudável quando os alimentos, e a terra em que eles são produzidos, são instrumentalizados pelo capital financeiro é, de fato, resistir e enfrentar todo um sistema alimentar.
De maneira similar, o livro “O Triunfo da Dúvida”, de David Michaels, investiga a fundo e empiricamente as ações de gigantes corporações em busca de limpar a própria imagem e maximizar os lucros em detrimento da saúde das populações. No capítulo “O uso de opioides”, publicado também pela Outra Saúde, Michaels conta como a indústria farmacêutica impulsionou a epidemia de opioides nos EUA a partir dos anos 1990. Com um uso ardiloso de pesquisas científicas, médicos passaram a receitar medicamentos poderosos para dores físicas de baixo impacto, difundindo que os opioides eram seguros e não viciantes. O estrago foi gigantesco, de forma que a vida de milhares de trabalhadores foram destruídas. Enquanto isso, os donos de farmacêuticos milionários tornaram-se bilionários e a indústria farmacêutica virou o que chamamos hoje de “Big Pharma”.
Não é difícil traçar paralelos entre o modus operandi da Big Pharma e da indústria de alimentos. O público-alvo desta última, ao invés de trabalhadores, são as crianças, de modo que grande parte do marketing de junk food – comida de baixo valor nutricional e alta densidade calórica, como salgadinhos, biscoitos, sucos artificiais – é todo direcionado para o público infantil. Os resultados são altas taxas de obesidade e a cada vez maior relação entre ultraprocessados e doenças crônicas. Como disse Marion Nestle: “A indústria alimentícia não é um serviço social ou uma agência de saúde pública. Seu único propósito é gerar lucro para os investidores”.
Ainda assim, Nestle diz que o interesse público em nutrição e saúde é hoje maior do que nunca. Por outro lado, trata-se de um ambiente que prolifera dietas milagrosas e informações contraditórias a uma alimentação verdadeiramente saudável, que também deve ser acessível. Neste contexto, a regulamentação de propagandas e marketing de alimentos, sobretudo os ultraprocessados, é essencial. O Brasil, bem como outros países latino-americanos, lidera em iniciativas para proteger a saúde pública dos tentáculos gananciosos dos gigantes da indústria alimentícia, mesmo que ainda com desafios significativos. Acontece que, tratando-se do grande capital, o enfrentamento de propagandas e estratégias que prejudicam a saúde pública deve ser global.
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