À espera das próximas pandemias

Livro a ser lançado hoje resgata a memória do negacionismo e negligência no enfrentamento da covid. Autor alerta: apesar da virada no Ministério da Saúde, país permanece vulnerável, pois continua a negligenciar investimento em Ciência

Créditos: Reprodução
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LANÇAMENTO
Não há mundo seguro sem ciência
De Luiz Carlos Dias
Editora Paraquedas
30 de agosto, 10h na Sede da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Rio de Janeiro

Luiz Carlos Dias em entrevista a Gabriela Leite

Há pouco mais de quatro anos, uma crise sanitária sem precedentes começava a tomar conta do Brasil. As transformações causadas pela pandemia de covid-19 foram intensas e atingiram toda a população – mas hoje ela é pouco lembrada e deixou de fazer parte do dia a dia. Para que o país não esqueça das mortes, dos momentos de sofrimento e das consequências brutais do descaso do governo, é preciso que a memória seja resgatada. Mas é também necessário pensar em que medidas devem ser tomadas para que a situação não se repita. 

Um livro, que está sendo lançado hoje, serve como lembrança do período tenebroso – e traz reflexões sobre o perigo de atravessar uma crise dessa magnitude negando o conhecimento científico, como foi feito no Brasil. Não há mundo seguro sem ciência é o título da nova obra de Luiz Carlos Dias, químico, pesquisador da Unicamp e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Mais do que isso, Luiz foi uma das vozes que buscaram informar a população sobre o vírus e as medidas para evitá-lo. E que se levantaram para combater o negacionismo e as fake news, que vinham muitas vezes de atores políticos que deveriam agir para contê-la. 

Por estar na linha de frente da guerra contra as informações falsas, Luiz foi capaz de mostrar a pandemia de covid por outro ângulo, escancarando o impacto do negacionismo e da desinformação na vida dos brasileiros. O livro, lançado pela editora Paraquedas, lista as principais fake news disseminadas no período e aborda temas como movimentos antivacina e o impulso dado pelo governo da época ao chamado “kit Covid” – que consistia de uma série de medicamentos ineficazes contra a doença. A obra cobre eventos desde o início da pandemia, em 2019, até o pós-pandemia, em 2024, trazendo ainda reflexões sobre como os cientistas podem combater a desinformação também nos dias atuais.

Mas a importância de Não há mundo seguro sem ciência não está apenas no valoroso trabalho de recuperação da memória. Luiz mostra, no livro e na entrevista que concedeu a Outra Saúde, que ainda é muito grande o risco trazido pelas redes de propagação de informações falsas e negacionismo. “Sem um combate eficaz a essa desinformação, estaremos sempre vulneráveis, não apenas a crises sanitárias, mas também às suas consequências sociais e políticas”, alerta o cientista. Esses grupos que disseminam fake news estão a postos para aproveitar cada nova crise que surge.

Para combater essa situação durante a pandemia, ele e outros cientistas fizeram o que estava a seu alcance para informar a população. Mas para atravessar outras crises, seria necessário uma outra estrutura – para começar, das próprias instituições científicas do país. Luiz lamenta que o Brasil não tenha, ao que parece, aprendido a lição com a pandemia. “Veja o que aconteceu com a dengue: os casos deste ano superaram os números dos anos anteriores. Com as mudanças climáticas, que muitos ainda não levam a sério, os mosquitos transmissores de doenças poderão circular durante o ano inteiro, e não apenas nos meses mais quentes do verão”, lamenta.

A própria ciência, no Brasil, continua bastante sucateada, mesmo com a chegada de um governo progressista, que prometeu defendê-la. O que foi feito, até hoje, foi importante mas ainda muito insuficiente – e a situação continua drástica. “Hoje, para muitas instituições, deixar a luz acesa já é lucro. Infelizmente, essa é a nossa realidade. Ter dinheiro para investir em ciência, em pesquisa científica, em formação de recursos humanos, é um luxo hoje.” Sem investimento na ciência, o Brasil também voltará a ter enorme dificuldade em enfrentar as próximas crises.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

Fale um pouco sobre o papel dos cientistas em crises como foi a da pandemia de covid-19.

Como cientistas, temos um papel fundamental, que vai além de desenvolver ciência socialmente relevante; devemos também levar a melhor informação científica à sociedade, especialmente em momentos de crise sanitária.

Durante a pandemia, a sociedade viu que podia confiar nos cientistas e nas universidades públicas. Nosso papel como divulgadores científicos foi crucial para esclarecer e orientar, enfrentando uma máquina de desinformação com enorme capilaridade. Enquanto os cientistas tentavam disseminar informações corretas, havia uma onda negacionista em paralelo. Nem todos nas universidades estavam do lado da melhor ciência, o que tornou a situação ainda mais desafiadora.

Cientistas precisam se envolver cada vez mais em atividades de esclarecimento, mas só isso não basta. Durante a pandemia, muitos de nós atuaram na grande mídia, em mídias locais e até em grupos de WhatsApp para enfrentar a desinformação com as ferramentas que tínhamos. Embora não fosse a melhor forma, fizemos o que era possível. Agora, precisamos pensar em como nos preparar melhor para o futuro.

A ciência desempenha um papel essencial na melhoria da qualidade e expectativa de vida, com avanços como antibióticos, vacinas, saneamento básico e alimentos saudáveis. Todas essas áreas estão diretamente conectadas com a ciência, e é importante destacar que tanto as ciências exatas quanto as humanas e biológicas foram cruciais durante a pandemia, influenciando até nossa saúde mental.

A saída da pandemia foi construída com base na ciência e no desenvolvimento de vacinas, graças ao trabalho de muitos profissionais em diversas áreas. Sabemos que os prejuízos foram enormes, mas é essencial que, daqui para frente, estejamos mais organizados e aprendamos com as lições deixadas pela pandemia. No meu livro, ofereço algumas sugestões sobre como avançar – ainda que não sejam definitivas.

O Brasil estaria pronto para uma nova pandemia hoje?

Eu não vejo isso. Parece que a pandemia passou e esquecemos tudo. Não sei se muitas lições foram realmente aprendidas. O Brasil sempre foi um modelo em vacinação infantil, com doenças controladas por vacinas e campanhas em massa para imunizar crianças menores de 5 anos. No entanto, nos últimos anos, vimos uma queda acentuada na cobertura vacinal infantil, de 95% para algo entre 65% e 70%.

Com uma cobertura vacinal tão baixa, corremos o risco de ver o retorno de doenças como poliomielite e sarampo. Para evitar isso, precisamos alcançar uma taxa de cobertura próxima de 95%, o que requer políticas de incentivo e campanhas nacionais massivas. Essas campanhas precisam estar presentes em todas as mídias – rádio, jornal, televisão, em horário nobre. Mas isso não aconteceu após a pandemia, nem mesmo com o atual governo. Houve alguma melhora? Sim, em algumas vacinas, com a taxa de cobertura subindo de 75% para 80%. No entanto, ainda estamos longe do ideal.

É importante lembrar que estamos falando de vacinas, algo que os brasileiros sempre valorizaram. O PNI é um exemplo disso, sendo um modelo de vacinação que sempre teve grande adesão popular. Mesmo com o avanço das redes sociais e mídias digitais, que poderiam disseminar informações de forma mais rápida e eficaz, não vemos essas campanhas de vacinação acontecendo como deveriam. Além disso, precisamos de outros investimentos urgentes, como no SUS, que está em parte sucateado, e em políticas públicas voltadas para o saneamento básico e o fornecimento de água potável.

Infelizmente, ainda não temos saneamento básico e água potável em todo o território brasileiro, e essas são medidas fundamentais. Veja o que aconteceu com a dengue: os casos deste ano superaram os números dos anos anteriores. Com as mudanças climáticas, que muitos ainda não levam a sério, os mosquitos transmissores dessas doenças poderão circular durante o ano inteiro, e não apenas nos meses mais quentes do verão. Precisamos de uma estruturação completa, um ecossistema que envolva proteção ambiental, conscientização da população, saneamento básico e campanhas de vacinação.

Sabemos que parte do desastre na pandemia foi gerado por um governo que odiava e combatia a ciência, e que sucateou a pesquisa científica e as universidades no Brasil. Mas e hoje? Lula 3 está sendo melhor para a ciência brasileira?

O pior momento para a ciência no Brasil foi durante o governo Bolsonaro, mas havia esperança de que as coisas mudassem radicalmente com o governo Lula. Infelizmente, essa mudança não ocorreu como esperávamos. Embora a ciência tenha mostrado sua importância durante a pandemia, ainda estamos longe de oferecer o suporte necessário para formar uma nova geração de cientistas.

Atualmente, estamos vendo cortes profundos nas bolsas de pesquisa e falta de infraestrutura nas universidades federais. A área científica não recebe o apoio que precisa do atual governo para se desenvolver e defender a nossa soberania. Além dos problemas de financiamento, enfrentamos uma grave falta de equipamentos e uma burocracia que dificulta a importação de insumos essenciais para a pesquisa. Essa situação está levando nossos melhores cérebros para o exterior, já que as condições para fazer ciência aqui são desfavoráveis.

A ciência brasileira enfrenta muitos desafios, e a situação só piora com a falta de uma política de Estado robusta. O sistema nacional de ciência e tecnologia está colapsado, resultado de anos de descaso e destruição, especialmente no último governo. Infelizmente, manter as instituições funcionando já é uma vitória em muitos casos. Investir em ciência e tecnologia é crucial para o desenvolvimento do país, mas o Brasil ainda está muito aquém do necessário, com investimentos de apenas 1% do PIB.

Para reconstruir o que foi destruído, precisamos de uma mudança radical nas políticas de financiamento e na valorização da ciência. O sistema nacional de ciência e tecnologia no país está colapsado. É muito doloroso ver o esforço de décadas tendo sido jogado no lixo por pessoas ignorantes, como foi no último governo, que não enxergavam a importância da ciência.

Mas hoje, para muitas instituições, deixar a luz acesa já é lucro. Infelizmente, essa é a nossa realidade. Ter dinheiro para investir em ciência, em pesquisa científica, em formação de recursos humanos, é um luxo hoje.

Países como China e Coreia do Sul investem mais de 2% do PIB em ciência e tecnologia, e isso lhes permitiu se tornarem grandes potências. Se o Brasil não seguir esse exemplo, estaremos comprometendo nosso futuro. É urgente criar condições mínimas para que os jovens cientistas possam aplicar seus conhecimentos aqui, evitando que sejam capturados por outros países ou desistam da carreira científica.

Por fim, precisamos de um conjunto amplo de políticas que favoreçam o desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e social. Um ambiente mais favorável à ciência é essencial, e isso exige uma política de Estado que ainda não temos, mesmo com o novo governo. Algumas coisas melhoraram, mas não na velocidade que a gente gostaria. Nós já temos muitas dificuldades e desafios para fazer ciência nesse país – e estamos muito longe de melhorar.

Parte do problema se deve aos movimentos antivacinas e negacionistas. Como lidar com essa ascensão desses grupos?

É urgente enfrentar o movimento antivacinas, que está crescendo no país. Se passarmos por outra crise sanitária, precisaremos novamente que vacinas sejam desenvolvidas rapidamente. No entanto, a máquina de desinformação estará pronta para espalhar novas mentiras contra as vacinas. Essas vacinas são ferramentas essenciais de saúde pública, e não podemos esquecer que vivemos em um mesmo planeta, dependemos uns dos outros e, por isso, também dependemos dos ecossistemas que estamos destruindo.

Não posso afirmar que estamos preparados para uma nova crise. Estamos longe disso. Certamente, podemos enfrentar outras pandemias ou crises sanitárias. Não sabemos de onde virá a próxima. Antes, acreditava-se que seria causada por uma gripe, mas foi pela covid-19. A próxima pode, de fato, ser uma gripe, como a H1N1, que é terrível e letal.

Atualmente, estamos novamente lidando com a questão da mpox, anteriormente conhecida como varíola dos macacos. A OMS mudou o nome para proteger os animais, mas a doença continua sendo um desafio. Com as mudanças climáticas, a globalização e o aumento das viagens, as doenças têm hoje uma capacidade enorme de se espalhar rapidamente, principalmente as virais, transmitidas pelo ar.

Para enfrentar esses desafios, também precisamos combater a máquina de desinformação, que ameaça nossas vidas, o futuro de nossas crianças e a própria democracia. Sem um combate eficaz a essa desinformação, estaremos sempre vulneráveis, não apenas a crises sanitárias, mas também às suas consequências sociais e políticas.

Uma maneira de combater a desinformação é manter viva a memória da pandemia, um dos pontos importantes do seu livro. Mas, nele, você também sugere algumas saídas para o negacionismo. Pode citar algumas delas?

Na minha visão, quem não viveu o período da pandemia, ao ler o livro, terá uma boa ideia do que foi. E quem viveu, lembrará de muitas coisas e descobrirá detalhes que talvez não soubesse na época.

Começo falando de como me envolvi com atividades de divulgação científica, especialmente após minha participação na análise das cápsulas de fosfoetanolamina, conhecida como “pílula do câncer”, em 2016, a convite do Ministério da Ciência e Tecnologia, durante o governo Dilma. Nesse processo, conheci vários divulgadores científicos, e acabei atuando bastante durante a pandemia.

O livro, portanto, não é só sobre a pandemia, ele aborda muitas outras questões, inclusive estratégias para nos organizarmos e tentarmos mudar o cenário atual – em especial com o combate à desinformação e ao negacionismo em um sentido mais amplo.

O aparelhamento ideológico do Conselho Federal de Medicina (CFM), por exemplo, foi uma surpresa e mostrou como o movimento negacionista é forte. Existe toda uma máquina de desinformação, como a Brasil Paralelo, produzindo conteúdos bem organizados e eficazes.

Esse movimento é muito inteligente na criação de desinformação – algo que quem defende a ciência não tem conseguido combater de forma eficaz. Eles produzem conteúdos que apelam para a emoção, enquanto a ciência é mais objetiva e não tem o mesmo impacto emocional.

Precisamos aprender a nos organizar para comunicar a ciência de uma maneira que desperte mais interesse e envolvimento por parte da sociedade, tal como as fake news conseguem fazer. Será necessário muito diálogo para entender o comportamento negacionista e encontrar soluções.

Entre as estratégias, estão uma política de Estado para ciência e educação. Mas a regulação das plataformas digitais também será essencial. Não consigo ver como combater esse movimento anticiência sem uma maior transparência no funcionamento das plataformas digitais e uma política pública para regulação – sempre preservando a liberdade de imprensa e expressão, mas enfrentando o impulsionamento de conteúdos falsos e criminosos, o discurso de ódio. O que é crime no mundo real tem que ser considerado crime no mundo digital também.

Vamos precisar de políticas de regulação de tecnologias de inteligência artificial, de educação básica de qualidade, letramento científico, letramento digital.

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