WikiFavelas: A difícil tarefa de aquilombar a política

Um mapeamento (em construção) das deputadas negras que chacoalham a política brasileira. Quem são. Suas bandeiras. Como elas articulam cultura, feminismo e resistência periférica. O racismo cotidiano que enfrentam no Congresso

Deputada Monica Francisco (PSOL/RJ)
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Em abril de 2022, durante a pré campanha presidencial de Lula, uma foto chamou atenção na internet: 17 pessoas reunidas para decidir sobre a chapa presidencial, todas brancas e apenas duas mulheres. Mesmo que os governos anteriores do PT, de Lula e Dilma Rousseff, tenham sido os que mais incluíram mulheres e negros, foi inevitável refletir sobre como a fotografia do poder no Brasil, ainda que no campo progressista, democrático e popular, precisa mudar de forma mais significativa. Por sua vez, a foto da posse do presidente Gustavo Petro na Colômbia expressa a mudança desejada em toda América Latina, ao incluir os povos originários e firmar compromisso com a pauta racial. Em uma sociedade marcadamente elitista, Francia Marquez, mulher negra e mãe solo, passou a ocupar o lugar de vice-presidenta e ministra das relações interiores.

Nas eleições brasileiras de 2022 a Coalizão Negra Por Direitos lançou a campanha “Quilombo nos parlamentos”, trazendo a referência dos antepassados que resistiram à escravidão e se auto-organizaram em Quilombos. Aquilombar a política é a proposta de ampliar a participação negra tanto no Congresso Federal como nas Assembleias Legislativas nos estados. Segundo Sheila de Carvalho, integrante da Coalizão Negra, “construir uma democracia de fato exige equidade racial, justiça social e respeito aos direitos humanos. Como diz o lema da Coalizão Negra: enquanto houver racismo, não haverá democracia”. Já Vilma Reis, intelectual negra e militante dos direitos humanos na Bahia, também integrante da Coalizão Negra, sinaliza que “essa ação é histórica: 40 anos depois da primeira eleição de Benedita da Silva, a Coalizão Negra por Direitos entra na cena política para dizer que tudo que a gente falou lá é possível. Já em 1986, lutamos para eleger constituintes negros como Carlos Alberto Caó de Oliveira, que incluiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível na Constituição de 1988. Estamos agora em uma reviravolta na política. […] Nós resolvemos pautar isso de forma estrutural e estruturante e assim, ‘aquilombar’ a política”.

Com muitas lutas em todo o país, o cenário ainda é complexo: apenas 94 das 513 cadeiras de deputadas federais eleitas em 2022 são ocupadas por mulheres (18% do total), sendo apenas nove mulheres negras: Áurea Carolina (Psol-MG); Daiana Santos (PCdoB-RS); Denise Pessôa (PT-RS); Carol Dartora (PT-PR); Erika Hilton (PSOL-SP); Benedita da Silva (PT-RJ); Dandara (PT-MG); Taliria Petrone (PSOL-RJ); Jack Rocha (PT-ES) e Marina Silva (REDE – SP – SP). Já entre os 27 governadores eleitos, há nove autodeclarados negros: ​​Paulo Dantas (MDB-AL); Wilson Lima (União Brasil-AM); Coronel Marcos Rocha (União Brasil-RO); Ibaneis Rocha (MDB-DF); Gladson Cameli (PP-AC); Clécio Luis (Solidariedade-AP); Elmano de Freitas (PT-CE); Fátima Bezerra (PT-RN); Wanderlei Barbosa (Republicanos-TO). Cabe destacar que Ibaneis, Gladson e Clécio se autodeclararam como brancos nas últimas eleições e mudaram sua autodeclaração apenas em 2022.

Para piorar, em 2022, os partidos que mais elegeram candidatos autodeclarados negros — que se identificam como pardos ou pretos — para a Câmara dos Deputados são de direita. Fato esse que pode ser explicado pela mudança da regra (Emenda Constitucional 111) relativa à distribuição para os partidos de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que passaram a ter valor majorado pela eleição de parlamentares mulheres e negros a partir da eleição de 2022. Portanto, trata-se de uma nova frente de batalha, capaz de conjugar a luta racial com um projeto emancipatório no Parlamento.

No entanto, não se trata apenas de eleger parlamentares comprometidos com os direitos humanos e sociais das populações negras e periféricas, mas de criar condições de transformação das formas de exercício do poder cristalizadas nesta arena política. Os relatos daquelas que ocupam o parlamento sendo mulheres, negras, pobres, de favelas e periferias são assustadores. Em 2019, dois casos: tanto a deputada Monica Francisco (PSOL/RJ) como a deputada Dani Monteiro (PSOL/RJ) foram barradas ao tentar usar um elevador privativo para deputadas na ALERJ, Monica enquanto ia para a posse de um desembargador e Dani durante sua rotina de trabalho na casa. Logo depois, Dani também teve suas roupas criticadas por outro colega, também deputado. Por que nossas deputadas negras e faveladas não são vistas como deputadas quando começam a habitar as casas legislativas? O que há em comum entre elas? São duas deputadas negras e faveladas, corpos, vestimentas, cabelos e estética muito diferentes dos homens brancos de ternos pretos que habitaram sempre essa casa.

Monica Francisco também relata que frequentemente é “confundida” com as outras poucas deputadas negras na casa:

“Também acontece frequentemente na Alerj de confundirem as pessoas (negras) e chamarem uma pelo nome da outra. E aí eu digo: ‘Meu nome é Mônica Francisco, eu não sou Renata Souza, eu não sou Enfermeira Rejane, eu não Tia Ju, eu não sou Dani Monteiro’. Isso acontece, inclusive, com autoridades. Outro dia eu estava conduzindo uma audiência e uma alta autoridade falando com uma deputada negra pelo nome da outra, mesmo com uma placa na frente dela com o nome dela. Ela já estava visivelmente irritada, aí eu tive que interromper e corrigir: ‘Essa é a deputada tal, a outra nem está na sala” ‘.

Neste caso, trata-se de uma maneira de denegação do direito básico da cidadania, o direito a um nome e uma identidade, o que, por suposto, visa desqualificar o papel político da parlamentar. No entanto, em entrevista ao Dicionário de Favelas, no Blog do CEE, Mônica Francisco nos fala das estratégias das deputadas negras para hackear o poder nas assembleias, a principal delas sendo a mandata, foram de trabalho coletivo, oriundo de lutas em movimentos sociais e de sobrevivência em favelas e periferias, que foram introduzidas no Legislativo. Apesar da lei somente permitir a eleição de uma parlamentar, a organização do mandato se faz de forma compartilhada com um grupo que se organizou desde a campanha à eleição até a gestão do exercício do poder legislativo.

Os muitos episódios de discriminação escancaram uma realidade: alguns corpos não são aceitos nos espaços de poder. O lugar natural para pessoas negras e faveladas nunca foi, nesse Brasil, o da cena política. Luiz Antonio Simas, historiador, defendeu recentemente que nossa tarefa é fazer esse Brasil dar errado. “Veja bem: esse Brasil, da escravização de pessoas, das oligarquias, da desigualdade, da violência, da exclusão… Esse Brasil é o projeto colonial que deu certo”. É o país “fundado na ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do indígena, na escravização do negro”.

Como explicar tamanha desigualdade racial (e de gênero) na distribuição do espaço na política institucional no nosso país? Sem dúvidas, há uma marca dos processos de escravização e colonização, mas gostaríamos de falar sobre dois momentos: as duas primeiras constituições do Brasil República. Em 1824, a primeira Constituição brasileira, preocupada em manter a estrutura social do estado monárquico e escravocrata, cerceou, desde sua origem, os direitos políticos de parte da população brasileira. Eram considerados “cidadãos ativos”, possuidores de direitos políticos, somente aqueles que possuíam propriedades. Na época, também foi estabelecido um critério de renda mínima para o voto, e mulheres, indígenas e pessoas escravizadas não poderiam votar. Em 1891, logo após a assinatura da lei Áurea, que teoricamente encerrava a escravização no Brasil, uma nova Constituição foi promulgada. Nela, observamos que o voto passa a ser considerado “universal” – mas um olhar cuidadoso nas entrelinhas nos mostra que essa pretensa universalidade é fabricada sem esforço de agregar a diversidade que nos constitui: ainda que o critério de renda mínima para conceder direitos políticos à alguém não existisse mais, ainda fica cerceado, pela Constituição de 1891, o direito ao voto os analfabetos, das mulheres e das pessoas em situação de rua, por exemplo. Se pararmos para analisar o período numa perspectiva crítica, compreendemos que a abolição da escravatura não garantiu às pessoas negras libertas o acesso a direitos fundamentais como moradia, terra, educação formal e outros. Dessa forma, a segunda Constituição da República constrói uma falsa ideia de universalidade que, na prática, retira do jogo político e da distribuição de poder na sociedade a maior parcela da população à época.

É verdade que no Brasil não tivemos leis segregacionistas como nos Estados Unidos, no Conjunto de leis de Jim Crow, ou como na África do Sul, com o regime de segregação racial do Apartheid. Mas, por aqui, a colonialidade do poder se sustentou e sustenta criando mecanismos tão profundos e perversos quanto as medidas dos Estados Unidos ou África do Sul. Então, se a nossa Constituição de 1988 indica que somos todos iguais perante a lei, as nossas construções subjetivas e ações cotidianas mostram outras realidades.

Diante disso, a tarefa do dia é a subversão: fazer com que o poder finalmente chegue às mãos dos mais pobres, das pessoas negras, dos moradores de favelas e periferias não é um capricho, é uma forma de reparar séculos de violência que estrutura a sociedade brasileira. É pensar o mundo de outras formas, como nos ensina Milton Santos ao falar sobre a ideia de “sabedoria da escassez”: há potência e há uma construção subjetiva diferente para as populações subalternizadas, porque é na luta para superar a escassez que são fabricadas novas formas de vida, novas formas de se relacionar com o outro, novos sentidos para o mundo. Áurea Carolina (PSOL-MG), atualmente deputada federal, é um dos nomes que pode nos ajudar a construir esse outro futuro: recentemente, foi indicada para compor a equipe de transição de Lula na pasta de cultura.

Erica Malunguinho (PSOL/SP), primeira mulher trans eleita nominalmente como deputada no Brasil, defende que “a falta de diversidade e de alternância de poder política brasileira afeta a democracia”. Segundo a deputada, essa defesa não é apenas sobre representatividade vazia, mas sobre a qualidade da ocupação dos parlamentos, sobre a forma e conteúdo da política que passa a poder circular nos espaços de decisão, relação com a intelectualidade favelada e com a possibilidade de partir da realidade da maioria da população para construir uma radicalidade que pode transformar o país. Dialogar com as experiências de tantas potências que estão ocupando o parlamento como multidão – como foi a experiência da gigante Marielle Franco – mas também olhar para o passado e entender como Jurema Batista, Lélia Gonzalez e Benedita da Silva foram peças fundamentais num período ainda mais árduo para a disputa de espaços de poder por mulheres negras e pobres.

Erica Malunguinho está correta – as potências de favelas podem inventar presentes e futuros muito melhores para toda a população. É o caso da ação legislativa no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) que destinou 20 milhões de reais para a Fundação Oswaldo Cruz construir, junto a movimentos sociais, coletivos e organizações de favelas, medidas para combater a pandemia de covid-19 nos territórios. O fazer-política não é uma abstração, mas uma arte importante de tessitura de um mundo novo. E essa tessitura só faz sentido quando, por um lado, dá espaço para as diferentes expressões do mundo se fazerem presentes ali; mas também quando se permite enfrentar as desigualdades e violências que há 500 anos atravessam a vida de setores sociais específicos.

Como forma de visibilizar o trabalho de tantas militantes de favelas e periferias, especialmente durante o mês de lutas que é o Novembro Negro, o Dicionário de Favelas Marielle Franco iniciou um processo de mapeamento de parlamentares faveladas pelo Brasil. Inicialmente, há 10 personalidades mapeadas, mas a expectativa é crescer a lista, entendendo não apenas a quantidade de pessoas de favelas que ocupam o parlamento, mas visibilizando a qualidade dessas ocupações. Muitas parlamentares abordam em seus mandatos questões no campo dos direitos humanos, direitos das pessoas de favelas e periferias, antirracismo, questões de gênero e sexualidade, educação, cultura… Conheça e colabore com o verbete!

Faveladas no parlamento: algumas lideranças

Benedita da Silva (PT/RJ) – Praia do Pinto / Chapéu Mangueira – RJ

Primeira senadora negra do Brasil, Benedita da Silva, mulher preta e evangélica, de pai pedreiro e mãe lavadeira. Aos 80 anos e prestes a completar 40 anos na política, ela foi reeleita, em 2022, deputada federal. Fará parte da bancada da Câmara pelos próximos quatro anos, que vai de fevereiro de 2023 a dezembro de 2026. A parlamentar obteve 113.831 votos pelo Rio de Janeiro e exercerá seu quinto mandato na Câmara Federal.

Marielle Franco (PSOL/RJ) – Maré – RJ

Marielle Francisco da Silva, Marielle Franco, vereadora da cidade do Rio de Janeiro, mundialmente conhecida após ter sido assassinada, junto com seu motorista Anderson Gomes, em 14 de Março de 2018. Mais de um ano após esse crime brutal, a sociedade, sua família e suas eleitoras e eleitores ainda continuam sem saber quem mandou matá-la e porquê. Entre as poucas certezas, sabemos que foi um crime político. Eleita com 46.502 votos em 2016, aos 37 anos, foi a quinta parlamentar mais votada da cidade e a segunda mulher com mais votos, mas não pode concluir o seu mandato de quatro anos. A incidência política de Marielle não começou na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, nem se encerrou após sua morte.

Mari, como era conhecida entre suas amigas, amigos e colegas de trabalho, apresentava-se recorrentemente como mulher, negra, mãe, socióloga e cria da Maré! Agora, Marielle Franco passa a ser também símbolo das lutas de todas as mulheres que desejam um mundo livre de opressões. Não à toa, a frase “Marielle é semente” tomou conta do mundo.

Renata Souza (PSOL/RJ) – Maré – RJ

Renata Souza é cria da favela da Maré. Feminista preta, é formada em jornalismo pela PUC-Rio. Mestre e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Pós-doutora pela UFF.

Renata defende os direitos humanos há mais de 20 anos. Integrou a equipe de Marcelo Freixo e foi chefe de gabinete de Marielle Franco. Em 2018, foi a deputada estadual mais votada da esquerda no Rio de Janeiro, eleita por 63.937 pessoas.

Dani Monteiro (PSOL/RJ) – São Carlos – RJ

Nascida no Morro de São Carlos, Dani Monteiro é a primeira da família a ingressar na universidade. Foi estudante cotista do curso de Ciências Sociais na UERJ. É feminista, além de militante por direitos humanos, direitos LGBT, direito à cidade. Também faz parte do movimento estudantil, do Movimento Negro Unificado (MNU) e, do coletivo RUA Juventude Anticapitalista. Em 2022, foi eleita com 50.140 votos a Deputada Estadual pelo Estado do Rio de Janeiro.

Mônica Francisco (PSOL/RJ) – Borel – RJ

Eleita com 40.631 votos, Mônica Francisco é uma mulher preta, periférica, evangélica progressista que sabe seu lugar de fala e o usará para fazer ecoar as vozes periféricas, feministas, LGBTQIs, faveladas e de todas e todos que vivem no Rio de Janeiro. Nascida no morro do Borel, na Zona Norte do Rio, Mônica Francisco, 48 anos, é também pastora evangélica, formada em Ciências Sociais, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Militante dos direitos humanos, Mônica Francisco foi assessora da vereadora Marielle Franco.

Leci Brandão (PCdoB/SP) – Mangueira – RJ

Deputada estadual no terceiro mandato, Leci Brandão da Silva, nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 1944. Cantora, compositora e percussionista. Importante referência do samba, tem a carreira marcada pelo sucesso de público e de crítica e pelo engajamento na luta por liberdade e direitos.

Simone Nascimento (PSOL/SP) – Pirituba – SP

30 anos, jornalista, Simone Nascimento é uma mulher negra, de quebrada, feminista e moradora de Pirituba. Em 2020 concorreu ao cargo de vereadora nas eleições municipais de São Paulo e se tornou suplente do PSOL. Em 2022 foi eleita CoDeputada Estadual com a Bancada Feminista do PSOL, em uma votação histórica: 259.711 votos.

Benny Briolly (PSOL/RJ) – Niteroi / Fonseca – RJ

Benny Briolly, de 29 anos, é a primeira vereadora transexual a assumir um mandato na Câmara Municipal de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Com 4.458 votos, a candidata foi a quinta mais bem votada para ocupar uma vaga na Casa Legislativa. Benny é um dos mais importantes símbolos de luta do povo trabalhador, da liberdade religiosa, das mulheres, do povo negro e de toda população oprimida e periférica.

Monica Benício (PSOL/RJ) – Maré – RJ

Monica Benício é militante de direitos humanos e ativista LGBTI+. Arquiteta urbanista formada pela PUC-Rio, onde também se tornou mestra em Arquitetura, na área de “Violência e Direito à Cidade”. Nascida e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro. Eleita vereadora com 22.919 votos, tem pautado sua atuação na promoção e defesa dos direitos das mulheres e no debate urbanístico com foco na inclusão social.

Verônica Costa (PL/RJ) – Morro do Juramento – RJ

Verônica Chaves de Carvalho Costa (Rio de Janeiro, 21 de abril de 1974) é uma empresária, radialista, cantora, apresentadora de televisão e política brasileira filiada ao Partido Liberal (PL), sendo considerada uma das principais responsáveis pela popularização do funk no Brasil e no mundo. Conhecida como a Mãe Loira do Funk., criou a equipe de som “Furacão 2000”, juntamente com seu então marido Rômulo Costa. Após a separação, montou sua própria equipe “A Glamourosa”.

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