“Renda Básica como instrumento de liberdade”

Pesquisador defende política que vá além do Bolsa Família. Num país de riqueza concentrada, um salário pago a todos, independente de trabalho, amplia escolhas e chances de desenvolvimento. E complementa os serviços públicos

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Jônatas Rodrigues da Silva em entrevista a João Vitor Santos, no IHU

A Campanha da Fraternidade deste ano, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, lança luz sobre a fome que temos vivido no Brasil. O texto base da Campanha chama atenção de que a fome, além de ultrajante para a sociedade como um todo, condena as pessoas famélicas como se estivessem nos piores dos cárceres. Nesse mesmo sentido, o pesquisador e cientista social Jônatas Rodrigues da Silva reflete que não somos livres. Se é verdade que a fome nos encerra com grilhões, a pobreza é a sentença que leva à fome e ao aprisionamento das pessoas. “O Brasil, ao contrário do que muitos dizem, não é um país rico. Somos um país de renda média e altamente concentrada numa pequena elite que se recusa a aceitar mudanças nesta estrutura”, observa.

Na entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Jônatas enfatiza que não podemos ser um país efetivamente livre com tamanha concentração de renda, um dos geradores da pobreza. “Não é possível haver liberdade na pobreza. Uma pessoa só é livre quando ela pode fazer escolhas. Por sua vez, boas escolhas são feitas com educação. Então, a oferta de educação de qualidade amplia a liberdade. É um primeiro passo”, reflete.

No entanto, ao contrário de muitos, o pesquisador não se limita a pensar a educação libertadora apenas pela escola. É preciso mais, inclusive superar nosso passado que, para ele, consiste numa sucessão de erros sempre expropriando a terra e grande parte dos sujeitos. “O Brasil é um país forjado na exploração, um país racista que nunca quis se sentar no divã e entender suas mazelas sociais a partir da exploração de pretos e indígenas”, dispara.

Sentar-se no divã para encarar esse passado é como elaborar caminhos para que os sujeitos possam sustentar suas famílias, com comida de qualidade, moradia apropriada e acesso à saúde. É aí, em sua concepção, que entra uma renda básica incondicional. “Renda básica incondicional é entendida como um direito de cidadania e não exige contrapartidas”, define. E completa: “fizeram-nos acreditar que o esforço e a dedicação pessoal são suficientes, o que é uma verdadeira falácia. Um país desenvolvido é aquele que oferta oportunidades de desenvolvimento a todos os cidadãos, e não um país onde apenas alguns chegam com esforço e sorte”.

Jônatas Silva (Foto: Arquivo pessoal)

Jônatas Rodrigues da Silva é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, campus Araraquara. Também é mestre em Gestão de Organizações e Sistemas Públicos pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar e especialista em Gestão Pública também pela UFSCar. Bacharel e licenciado em Administração, atua como servidor público federal, administrador no Departamento de Gestão de Processos Institucionais da UFSCar e professor do Estado de São Paulo no Centro Paula Souza. Suas pesquisas enfocam renda básica, liberdades e desigualdades. Sua tese de doutorado, defendida em 2022, tem como título “Renda básica como instrumento de liberdade”.

Confira a entrevista

Em suas pesquisas, vemos a expressão “renda básica incondicional”. Como compreende esse conceito?

Diferentemente de programas de renda básica que exigem condicionalidades, como o Bolsa Família, que é direcionado às famílias pobres e estas precisam cumprir alguns requisitos para manter o benefício, uma renda básica incondicional é entendida como um direito de cidadania e não exige contrapartidas do cidadão, exceto que ele seja residente no país por um determinado período mínimo. Isso quando ele for um emigrante e não um nativo. É o direito de participar da riqueza do país.

Para o senhor, a desigualdade não pode ser vista apenas como baixa renda. Por quê?

A baixa renda é uma consequência da desigualdade. É a desigualdade na oferta de oportunidade de desenvolvimento, de uma estrutura social precária e distinta, de um Estado forte, presente em algumas localidades, e de um Estado fraco, praticamente ausente em outras.

Diversos pesquisadores apontam que o Brasil vive uma desigualdade histórica forjada na concentração de renda. Como podemos compreender a forma como se origina essa desigualdade a partir da história do Brasil?

A concentração da renda brasileira é histórica e inercial. Os 1% mais ricos abocanham 25% ou mais da renda nacional. O Brasil fez tudo errado desde a chegada dos portugueses em 1500. Errado com os povos indígenas que aqui viviam. Errado com os negros africanos escravizados. Errado ao explorar as riquezas naturais do país. Estes foram os principais erros do Brasil colônia.

Depois, mais erros. Erros diversos com a chegada da família real em 1808. Erro na independência. Erro na abolição da escravatura, que além de tardia nada fez em favor dos negros. Erro no golpe da República.

Erro talvez ainda não seja a palavra correta, pois foram ações deliberadas. O Brasil é um país forjado na exploração, um país racista que nunca quis se sentar no divã e entender suas mazelas sociais a partir da exploração de pretos e indígenas. Um país que quer se desenvolver sem acertar as contas com seu passado, um país onde uma pequena elite rica subjuga toda uma nação e mantém as estruturas de poder intactas para que tudo continue igual.

Como conceitua a pobreza atualmente, e que relações é possível estabelecer entre pobreza e privação das liberdades?

Conceituar pobreza simplesmente pela renda é um erro. A baixa renda é consequência de uma sociedade desestruturada. Majoritariamente os pobres são negros, o que é fruto do nosso passado escravocrata mal resolvido. Nada foi feito para os negros após a escravidão.

Não é possível haver liberdade na pobreza. Uma pessoa só é livre quando ela pode fazer escolhas. Por sua vez, boas escolhas são feitas com educação. Então, a oferta de educação de qualidade amplia a liberdade. É um primeiro passo.

Mas, também, é impossível ser livre sem saúde. E saúde se começa com alimentação rica em nutrientes e com saneamento básico. Só é possível falar de liberdade quando condições básicas de cidadania estão presentes. E parcela significativa dos brasileiros não possui liberdade, pois estão à míngua da própria sorte, o Estado não chega para ofertar as condições para o desenvolvimento e, consequentemente, a liberdade.

No que consistem os programas de renda mínima alternativos à renda básica? No caso brasileiro, podemos conceituar o Bolsa Família como um desses programas?

O Bolsa Família é um programa de renda condicional. É um excelente programa. Ele condiciona o recebimento do benefício a algumas condicionalidades, como a presença dos filhos na escola e a vacinação das crianças. Mas o programa tem dificuldade em encontrar todo cidadão que tem direito ao benefício. Também fraudes são recorrentes. E, ainda, o programa constrange ao pagar benefício apenas ao cidadão pobre.

Uma renda básica incondicional é socialmente justa e tecnicamente mais simples. Paga-se a todo cidadão e se estabelece o equilíbrio fiscal com impostos mais progressivos.

Quais são as três principais fragilidades e potencialidades do Bolsa Família, tanto nas antigas quanto nas atuais configurações?

Comecemos pelas potencialidades: ele realmente atende o cidadão mais necessitado, ele amplia a permanência da criança na escola, ele obriga os pais a vacinarem seus filhos. De fato, ele mitiga a pobreza. Ele tem baixo custo.

Suas fragilidades são que ele deixa pessoas que realmente precisam de fora do programa por elas não estarem cadastradas no CadÚnico. Como destaquei, o Bolsa Família também é constrangedor ao ser direcionado apenas às famílias pobres. Por fim, está sujeito a um clientelismo político ao ser um programa de governo e não uma política de Estado.

O Brasil possui uma Lei de Renda Básica de Cidadania. O que prevê essa lei e quão distantes estamos de sua efetivação?

O Bolsa Família era para ser um programa de transição para uma renda básica, assim diz a lei n. 10.835/2004. Na prática, o programa se tornou permanente e a renda básica nunca aconteceu.

Durante o auge da pandemia de covid-19, ventilou-se no Congresso a possibilidade de uma renda básica, mas os ventos já perderam força e estamos muito distantes dela.

Em sua tese são trazidos dois exemplos de programas de renda básica, um da cidade de Maricá/RJ e outro do Quênia. Que particularidades esses programas têm e no que podem inspirar a concepção de um programa para o Brasil?

A renda básica presente em Maricá é um programa da prefeitura da cidade que destina os valores recebidos dos royalties do petróleo aos cidadãos. Todo morador da cidade faz jus.

Localização de Maricá no estado do Rio de Janeiro, a partir do mapa do Brasil | Mapa: reprodução Daniella Bonatto

Já a renda básica presente no Quênia é uma experiência conduzida por uma instituição privada. Ela tem data para o fim.

Localização do Quênia no contexto africano | Mapa: reprodução

A experiência de Maricá é válida e pode ser ampliada; os recursos naturais de um país pertencem aos seus cidadãos e é justo fazer chegar esse direito a eles. Muitos podem alegar que o dinheiro chega via políticas públicas, e eles estão certos. Mas a renda básica amplia a liberdade de escolha do cidadão, ele destina o dinheiro para aquilo que é importante, que tem valor para ele. E uma renda básica não desobriga o Estado a ofertar serviços, a diminuir as desigualdades, a fomentar o desenvolvimento e buscar a equidade.

Quando se fala em renda básica, o primeiro desafio imposto pelos críticos é a questão do financiamento. Como senhor responde a quem questiona como bancar uma renda básica incondicional no Brasil?

Primeiramente que uma renda básica não é necessariamente uma renda suficiente. Seu valor depende das condições econômicas do país. É possível e, na verdade, desejável que a renda básica seja fiscalmente neutra, mas para isso é preciso uma reforma fiscal com um imposto progressivo. Assim, o cidadão rico irá devolver sua renda básica por meio de um imposto mais progressivo.

Na prática, o cidadão rico irá devolver ao país parte dos benefícios que ele foi capaz de conquistar por viver em sociedade, afinal só é possível construir riqueza vivendo em sociedade. Uma pessoa isolada em uma ilha não constrói riqueza.

No que consiste a ideia de liberdade econômica e como podemos relacioná-la com o bem-estar social?

Liberdade econômica é uma das liberdades instrumentais, sem uma segurança financeira protetora é impossível falar de liberdade. Mas ela deve vir acompanhada de outras liberdades instrumentais como oportunidades sociais e saúde. Antes, porém, ainda é preciso pensar nas liberdades básicas que são alimentação, educação, capacidade de participar da vida política. Liberdade é um conceito complexo que deve ser ampliado com o desenvolvimento e não simplesmente a ausência de coerção.

O que lastreia e dá corpo a um desenvolvimento econômico sustentável? No caso brasileiro, como fortalecer as bases para esse desenvolvimento sustentável?

É preciso separar desenvolvimento de crescimento econômico. Um crescimento onde o dinheiro fica concentrado nas mãos de uma pequena elite não é saudável. O desenvolvimento é ampliado com oportunidades de desenvolvimento. Uma sociedade mais desenvolvida é aquela que oferta oportunidades básicas e igualitárias a todos os cidadãos.

E isso acontece desde a concepção, com a mãe tendo uma alimentação saudável, rica em nutrientes para o desenvolvimento do bebê, com esta mãe tendo um lar seguro, sem agressões físicas e psicológicas, e com saneamento básico, uma segurança financeira, acompanhamento pré-natal. E, posteriormente, uma sociedade desenvolvida ocorre com ações que levem ao desenvolvimento cognitivo e motor da criança, como creches e escolas de qualidade, oportunidades da prática de esportes para a socialização e o desenvolvimento motor. Isto é desenvolvimento, quando o Estado pavimenta a via que permitirá ao cidadão desenvolver suas capacidades.

A eleição de Lula, após a experiência trágica da pandemia de covid-19 no Brasil, reacendeu o debate sobre a necessidade da proteção social estatal. Como analisa as políticas de proteção social do Estado brasileiro? Que questões de fundo há no desmonte desse setor ocorrido nos últimos anos?

O Brasil precisa superar suas mazelas estruturais. O governo Bolsonaro deu voz a uma parcela racista e homofóbica que sempre esteve aí, mas tinha vergonha de se expor. Agora eles não têm mais e disseminam seus preconceitos abertamente. O que me surpreendeu é esse quantitativo, que eu pensava ser menor, mas é de muita gente.

O desenvolvimento acontece com investimento do Estado. É preciso um Estado forte, com educação de qualidade, é preciso a construção de moradia, pois existe uma parcela significativa da população que vive na insegurança. Mas o governo Bolsonaro mostrou que ainda é preciso educação histórica, que precisamos acertar as contas com nosso passado escravocrata. Nossos preconceitos estruturais precisam ser debatidos abertamente, é preciso conscientizar as pessoas, apesar do termo racismo estrutural ter ganhado força na última década, principalmente com o hoje ministro, o professor Silvio Almeida, ele ainda é pouco compreendido na sociedade.

A sociedade ainda não tem consciência de como quase 400 anos de escravidão marcou a cultura brasileira. O Brasil é racista, e não é pouco, é muito racista. Isso pode ser observado nos postos de poder da sociedade, apesar de ser maioria significativa, a parcela de pretos em cargos de poder é baixíssima. De mulher preta, ainda menor.

O Brasil precisa de mais cotas, cotas no Congresso e em todos os órgãos públicos. E não apenas cota no número de candidatos como temos atualmente para deputados; é preciso cotas no número de eleitos. Precisamos de um Congresso que de fato represente a população brasileira, com pessoas negras, mulheres, pessoas trans, gays etc.

Outro debate que tem vindo à luz pelo atual governo é a necessidade de não sacrificar políticas públicas de assistência social em nome da boa relação com o mercado financeiro. Qual sua análise quanto a esse debate e a forma como tem sido posto? O que essa dicotomia entre gastos sociais e mercado realmente esconde?

A boa relação com o mercado financeiro, com o Congresso, o Senado e demais setores econômicos é uma necessidade. A boa gestão se dá com diálogo e respeito. Primeiro, é necessário fugir da dicotomia do tudo ou nada. Em todo regime democrático saudável é preciso ceder, abrir mão, negociar. Responsabilidade fiscal é importante, mas responsabilidade fiscal não é sinônimo de superávit primário. O mercado financeiro quer previsibilidade e é neste sentido que o governo deve agir.

Quanto às políticas sociais, elas devem ser ampliadas; o pobre deve ser prioridade no orçamento. O governo Lula aumentou o salário-mínimo e aumentou o valor de isenção do imposto de renda, promessa de campanha que beneficia diretamente o trabalhador mais vulnerável. Mas o Brasil precisa realmente de uma reforma fiscal ampla e que ataque dois grandes problemas, o primeiro é tornar o imposto progressivo, o rico deve pagar mais imposto. E, veja bem, é possível aumentar o imposto do rico, diminuir o do pobre e manter a carga tributária no mesmo patamar atual ou até mesmo ter uma redução.

A questão é política e não técnica, pois tecnicamente temos propostas viáveis. E outro ponto que uma reforma deve atacar é na simplificação ao pagar imposto. É tudo muito complexo e pessoas e empresas podem errar por ignorância e não má-fé. A simplificação do sistema tributário se faz necessário.

Em meio à mais recente edição do Fórum Econômico de Davos, após a divulgação de mais um relatório das desigualdades no mundo produzido pela Oxfam, um grupo de cerca de 200 milionários e bilionários de 13 países publicou uma carta aberta em que pedem que os governos aumentem os impostos sobre eles. Nenhum desses super-ricos é brasileiro. O que isto revela sobre o Brasil?

Reflete exatamente o que somos, um país atrasado. Um país onde a elite dominante não tem a menor intenção de alterar a estrutura de poder que os beneficia.

Que caminhos devemos começar a construir hoje para, em um futuro próximo, todos poderem ser efetivamente livres no Brasil?

A educação é o caminho. Mas outras bases sustentam uma educação libertadora. Não existe quem seja educado com o estômago vazio. Uma educação de qualidade se faz com uma estrutura complexa que começa pela conscientização social de sua importância e perpassa toda uma estrutura que vai do transporte público à estrutura da escola, que necessita de salas climatizadas, biblioteca suficiente, professores qualificados, bem remunerados e com oferta constante de aperfeiçoamento.

Agora, uma criança não aprende se não tiver uma noite de sono adequada, que só acontece com uma moradia decente. Saúde de qualidade é fundamental, e se faz necessário o investimento em saúde preventiva e não só corretiva. Então, o Brasil do futuro se faz com educação no presente, mas a educação do presente depende dessa complexa estrutura. Não é fácil e nem barato, mas é o único caminho, e quanto mais adiarmos essa mudança radical, mais longe estaremos do desenvolvimento.

Deseja acrescentar algo?

O Brasil, ao contrário do que muitos dizem, não é um país rico. Somos um país de renda média e altamente concentrada numa pequena elite que se recusa a aceitar mudanças nesta estrutura. O brasileiro precisa se envolver mais na política, conhecer sua história e seus vícios estruturais.

Fizeram-nos acreditar que o esforço e a dedicação pessoal são suficientes, o que é uma verdadeira falácia. Um país desenvolvido é aquele que oferta oportunidades de desenvolvimento a todos os cidadãos, e não um país onde apenas alguns chegam com esforço e sorte. Sim, sorte, pois nem todos que se esforçam chegam, logo o fator sorte tem participação significativa. Mas muitos ainda acreditam que o sucesso é mérito, o que é um erro. O mérito só pode ser clamado quando todos partirem do mesmo lugar, quando as oportunidades de desenvolvimento estão ofertadas a todos, e sabemos bem que estamos longe disso.

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