Ciência, terreno da misoginia?

Entre bolsistas da Capes, 58% são mulheres, mas apenas 7% chegam às instâncias acadêmicas superiores. Ainda assim, presidente do CNPQ ataca movimento que traz a discussão sobre a parentalidade para o universo científico

.

Nos últimos dias, o presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ricardo Galvão, afirmou que o movimento Parent In Science “atrapalha muito” a promoção de iniciativas que buscam o reconhecimento de cientistas no Brasil. A fala ocorreu durante o GBMeeting – encontro anual da Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular –, realizado na Universidade Estadual de Campinas.

O Parent in Science (PiS) surgiu com o intuito de levantar a discussão sobre a parentalidade dentro do universo da academia e da ciência. Segundo o movimento, suas ações têm o intuito de preencher um vazio de dados e de conhecimento sobre o impacto dos filhos na carreira científica de mulheres e homens.

Uma das recentes ações do PiS foi a elaboração de uma carta aberta, antecipando-se ao edital de Bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As bolsas PQ, oferecidas desde 1976, são uma importante forma de apoio à pesquisa no Brasil, e são concedidas a pesquisadores que se destacam em suas áreas de atuação e que contribuem significativamente para o avanço do conhecimento científico e tecnológico no país. Existem cinco níveis de bolsas PQ, que vão do nível 2 (inicial) até o nível 1A (máximo), passando pelos níveis 1D, 1C e 1B. Para a distribuição das bolsas, são definidos critérios específicos pelos Comitês de Assessoramento de cada área do conhecimento.

Em um estudo realizado pelo PiS, observou-se que em 2022 as mulheres representavam 35% das bolsas PQ concedidas, número que não sofre mudanças há muitos anos. Quando a análise leva em consideração os diferentes níveis das bolsas, o cenário se torna ainda mais crítico, com apenas 27% das bolsas do nível 1A (o nível mais alto) sendo ocupadas por mulheres. Observa-se, assim, o chamado “efeito tesoura” – corte de proporção do gênero feminino na medida em que a carreira acadêmica progride, ou seja, redução da presença de mulheres na passagem do mestrado ao doutorado, ou do doutorado à ocupação de cargo docente estável. Os gráficos a seguir trazem um panorama do cenário de desigualdade de gênero investigado pelo PiS e publicado em documento.

Um artigo publicado por Leticia Santos Machado, pesquisadora da Universidade Federal do Pará, e outros autores – durante o 2º Workshop Internacional sobre Igualdade de Gênero em Engenharia de Software, no Canadá – mostrou que a maternidade tem um efeito negativo na produtividade científica por um período que pode se estender por até 4 anos.

Outra pesquisa com esse recorte, e de grande impacto, foi desenvolvida por Claudia Goldin, ganhadora do Prêmio Nobel em Economia de 2023. Goldin, que é professora e pesquisadora da Universidade de Harvard, dedica-se aos estudos de desigualdade de gênero desde a década de 1980, tendo publicado, em 1990, o livro Understanding the Gender Gap: An Economic History of American Women (Entendendo a Diferença de Gênero: Uma História Econômica das Mulheres Americanas, em tradução livre), após se debruçar em 200 anos de arquivos históricos sobre mulheres norte-americanas e o mundo do trabalho.

Ao reconhecer os trabalhos de Goldin, o comitê do Prêmio Nobel afirmou que a erradicação das disparidades de gênero é fundamental para que o mundo encontre soluções mais sustentáveis e eficientes no uso dos recursos econômicos da sociedade.

Como dito, diversos estudos deixam clara a existência de problemas no reconhecimento e na equidade profissional entre homens e mulheres, e na baixa representação das mulheres em determinados postos. Entre outros problemas, ressalta-se a desigualdade racial acentuada para pessoas negras e indígenas e a desigualdade regional e de áreas. O gráfico a seguir traz a distribuição das bolsas PQ vigentes em julho de 2023, por raça/cor e sexo do bolsista, onde o racismo institucional se torna evidente.

Distribuição das bolsas PQ vigentes em julho de 2023, por raça/cor e sexo do bolsista. Pesquisa desenvolvida pelo PiS.

Como afirma a professora, pesquisadora e divulgadora de ciência da Universidade Estadual de Campinas, Ana Arnt, “ser uma pessoa que possui útero, dentro do meio acadêmico, é ter uma série de obstáculos que delimitam nossa jornada como imposição. Ter a carreira constantemente atravessada por decisões acerca de gestar ou não uma criança, faz parte dessa trajetória, mesmo quando não se quer engravidar.” Essa declaração foi feita em seu texto Gestar atrapalha a ciência, cobrar por políticas públicas também.

A luta do PiS busca, justamente, sanar as defasagens e desigualdades aqui apontadas no que diz respeito às dificuldades que envolvem conciliar a carreira, o reconhecimento profissional e a gestão doméstica da família, principalmente em uma sociedade neoliberal, cada vez mais centrada no indivíduo e na família nuclear.

Como conciliar maternidade e carreira científica em uma sociedade estruturalmente desigual?

A desigualdade de gênero na ciência reflete o cenário de desigualdade que é observado em outros espaços, públicos, privados, profissionais ou em instituições políticas. Ainda que as mulheres sejam maioria na ciência brasileira – elas somam 58% dos bolsistas da Capes, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –, somente 7% chegam às instâncias acadêmicas superiores.

No fim do ano de 2023 veio à tona nas redes sociais e na mídia o caso de uma professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC, Maria Carlotto, que recebeu um parecer insultuoso sobre sua solicitação de Bolsa PQ. No parecer emitido pelo CNPq havia a afirmação de que a não realização de um pós-doc internacional afetava negativamente seu desempenho, apesar do reconhecimento de sua produtividade científica.

Maria Carlotto divulgou que o parecer apontava que a não realização do pós-doc internacional deveu-se a sua maternidade. Segundo o parecerista: “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”. Carlotto é cientista social, mestra e doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa na Université de Paris IV-Sorbonne, na área de sociologia da ciência. O caso foi abordado em mais detalhes pela Folha de São Paulo.

Durante o desenvolvimento de parte de seu doutorado no Canadá, entre os anos de 1993 e 1995, a hoje professora e pesquisadora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, Maria José Mesquita, afirma ter enfrentado enormes dificuldades para conciliar sua pesquisa e a maternidade de dois filhos pequenos (de 5 e 7 anos), tendo em vista que era a única cuidadora das crianças à época.

Entrevistada, Maria José conta que houve a dificuldade inicial em conseguir creche em tempo integral e de integrar as crianças na língua para que elas tivessem autonomia escolar. Já no Canadá, só pôde iniciar o trabalho depois de atravessadas essas barreiras. Segundo ela, era a única doutoranda mulher e mãe durante seu período como pesquisadora na Universidade Western, na Cidade de London, em Ontario. A maioria das famílias brasileiras na sua comunidade imigraram acompanhando o pai da família, durante o desenvolvimento de sua pesquisa no exterior; enquanto isso, suas respectivas companheiras eram responsáveis pelo cuidado das crianças.

Contudo, para Maria José, as dificuldades enfrentadas no Brasil depois de seu retorno à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – onde cursou seu doutoramento no Brasil – também foram difíceis, devido à falta de estrutura no país para acolhimento de mães pesquisadoras e suas crianças.

A experiência de Maria José demonstra as complexidades que envolvem o desenvolvimento de pesquisas no exterior quando se é responsável pela parentalidade – em que pese o parecer do CNPq emitido à pesquisadora Maria Carlotto, de que suas gestações “atrapalharam essas iniciativas”. Salienta-se aqui o corriqueiro uso do significante “atrapalhar” para se referir à conciliação entre gestação, maternidade e pesquisa, como se essa não fosse uma questão social a ser enfrentada por meio de políticas públicas.

A garantia de condições adequadas para o desenvolvimento científico no Brasil

Retomando a fala de Ricardo Galvão, que, além de hoje ser presidente do CNPq, foi pesquisador de carreira no Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) e é professor titular da Universidade de São Paulo, o Parent in Science (PiS) o atrapalha porque, supostamente, o movimento teria sugerido que as bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq sejam avaliadas de maneira separada para homens e mulheres. Em nota, o PiS afirma que essa sugestão nunca foi feita pelo movimento.

Dentre as solicitações encaminhadas ao CNPq pelo PiS, listam-se:

(1) Implementar uma política institucional explícita de equidade e diversidade;

(2) Criar um comitê de EDI (Equidade, Diversidade e Inclusão) que produzirá documentos de apoio (informativos, cartilhas, entre outros) e promoverá treinamentos para todos os membros da instituição, em especial integrantes dos Comitês de Assessoramento (CA);

(3) Garantir uma composição diversa, considerando gênero, raça e regionalidade, em todos os CAs;

(4) Revisar os critérios de julgamentos gerais para concessão das bolsas PQ, incluindo uma regra obrigatória para consideração da maternidade na avaliação de currículo;

(5) Tornar o processo de avaliação dos pedidos de bolsas PQ mais transparente e acessível a todos os candidatos;

(6) Criar um grupo de trabalho para avaliação e monitoramento da distribuição das bolsas PQ, tendo como prioridade inicial o nivelamento do número de bolsas entre as diferentes áreas do conhecimento;

(7) Atualizar os formulários de cadastro de pesquisadores para inclusão de informações sobre parentalidade, deficiências e gênero que permitam uma análise abrangente a respeito dos contemplados com as bolsas PQ.

Para a professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e representante do Núcleo Central do Parent in Science, Letícia Oliveira, o PiS nunca recebeu críticas desse tipo, “sempre estivemos à disposição para o diálogo com diversos setores sociais. De fato, fazemos isto constantemente com diversas universidades e agências de fomento que nos pedem auxílio sobre como implementar políticas de equidade de gênero, em especial em relação à maternidade. A declaração do professor Galvão nos surpreendeu, e, sinceramente, não entendemos a crítica já que ela não foi fundamentada”.

Perguntada sobre quais outras ações poderiam ser desenvolvidas, para além das bolsas de produtividade (que atingem um público de somente 14% do universo de docentes no Brasil), Letícia afirma que há uma série de ações que podem ser realizadas em termos de políticas públicas. “As alunas de graduação, especialmente as mães, negras e indígenas, com filhos portadores de deficiência, em situação de vulnerabilidade econômica são as que mais sofrem. Nosso programa ‘Amanhã’ conseguiu financiamento para mães com este perfil. Sugerimos sempre que as universidades e agências de fomento pensem em políticas para esta comunidade para garantir sua permanência. Temos uma série de sugestões para diversos níveis da carreira acadêmica”, conclui Letícia.

Em um trecho da fala no GBMeeting, Ricardo Galvão menciona que o “ponto essencial para o CNPq é que o trabalho de qualidade das mulheres seja reconhecido igualmente ao dos homens”. Ora, esse reconhecimento já não é igualitário pois se sustenta em uma sociedade estruturada pela desigualdade de gênero e suas interseccionalidades.

O discurso do presidente do CNPq é enunciado do lugar simbólico de um homem branco, e não reconhece que, quando não se parte das mesmas condições, não é possível estabelecer a mesma régua de medida para o reconhecimento profissional.

A filósofa Silvia Federici vem dedicando sua vida a demonstrar os efeitos e a importância, na sociedade capitalista, do trabalho de reprodução social, em que se inserem os trabalhos doméstico, afetivo e de cuidados. Segundo Federici, as mulheres são as fábricas que, geracionalmente, reproduzem a força de trabalho dita produtiva. Além disso, mesmo que o trabalho de cuidados seja terceirizado, ele é desempenhado, em esmagadora maioria, por mulheres (no caso da terceirização, principalmente as negras).

Em outro momento, Galvão afirma que a solicitação feita pelo PiS “não vai auxiliar a ciência brasileira” – ainda que ele mencione, de maneira equivocada, que a solicitação do PiS seja a de realização de um processo de avaliação separado pelo gênero; o que, segundo representantes do PiS, é uma inverdade. Entretanto, ao contrário do que a afirmação de Galvão sugere, não é possível situar a ciência como se ela estivesse além do corpo científico, excluindo-se o fato de que a ciência é feita por pessoas, e, portanto, não é algo a que a comunidade científica deve se submeter.

Os cientistas não estão a serviço da ciência, a ciência é o produto do serviço desempenhado pelos cientistas. Ao contrário do que a fala de Galvão induz a pensar, a ciência brasileira é algo objetivo e concreto, feito por pessoas. Mas não é possível pensar na qualidade da ciência sem pensar em quem a desenvolve e quais condições possuem para seguir produzindo.

Em nota recente, após as polêmicas com a repercussão de sua fala, Ricardo Galvão soltou uma nota junto ao CNPq, em que o presidente do órgão reconhece que o termo “atrapalha” foi inapropriado e deselegantemente empregado em sua interlocução e se põe à disposição para continuar o diálogo franco e construtivo com o movimento Parent in Science. A ver os desdobramentos dessa negociação e como as mudanças em prol da equidade de gênero na ciência, justas e necessárias, serão empreendidas.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *