Como Freyre revelou (e justificou) a opressão de gênero

Objeto de justas polêmicas, sociólogo retratou com argúcia as dinâmicas psicossociais no Brasil sob o patriarcado. Inovou ao mostrar relações de gênero como socialmente criadas, logo não “naturais”. Depois, quis justificar sua imutabilidade

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Por Cleverson Fleming para a coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social 

Este texto foi publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, na Coluna Primeiros Escritos, que tem a curadoria de Caroline Tresoldi e Rennan Pimentel. Celebra os 90 anos da publicação do fundamental e polêmico Casa-grande & senzala, completados em dezembro de 2023. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

A contemporaneidade (…) é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela (Agamben, 2009: 59).

Escritor cuja obra continua atraindo diversos estudiosos e produzindo extensíssima fortuna crítica, Gilberto Freyre (1900-1987) é daqueles autores incontornáveis que, alocados em nossa galeria de intérpretes do Brasil, hoje dispensariam maiores apresentações. A despeito das antipatias de muitos analistas aos seus postulados ideológicos – aliás, até mesmo devido a elas –, a presença das reflexões freyreanas nos variados debates acerca das relações, culturas e populações do país dificilmente pode ser negligenciada. Desde Casa-Grande & Senzala (1933, CG&S), que em 2023 completou 90 anos, suas teses vêm alcançando ampla repercussão ao inspirar entendimentos e controvérsias. A propósito de contribuírem para a vitalidade das concepções acerca da sociedade brasileira, essas leituras e desleituras colocam Freyre em primeira posição no ranking de pensadores nacionais mais citados ao lado das expressões “intelectuais”, “história das ideias”, “pensamento social” e seus correlatos entre as palavras-chave indicadas em artigos, livros autorais ou organizados, capítulos específicos, além de teses e dissertações (Botelho, 2019: 254-259).

Aliados a CG&S e compondo a série “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”, Sobrados e Mucambos (1936, SM) e Ordem e Progresso (1957, OP) seguem entre os trabalhos de Freyre mais referenciados – embora esse último não me parecer, ainda, tão lido, analisado e criticado quanto os outros dois. Apesar do tempo transcorrido desde as primeiras publicações desses livros e das polêmicas que os envolveram devido aos posicionamentos políticos do autor, o que neles penso haver de interessante para retomá-los está na série de sugestões metodológicas, fontes de pesquisa, insights que oferecem acerca de determinados dilemas do passado implicados no presente, sobre as sequências crítico-dialógicas que os acompanharam e que esses escritos permitem alumbrar.

Fazendo jus ao pensamento lançado na epígrafe, as interpelações teóricas dispostas na trilogia freyreana possibilitam-nos, por exemplo, operar aquele movimento analítico, discutido por Giorgio Agamben (2009), implicado aos significados mais profundos do que é ser “contemporâneo”. Isto é, promover compreensões acerca das problemáticas do presente, sublinhando a importância desempenhada pelos elementos constituintes de suas historicidades. Dito de outro modo, de se colocar em tela o jogo dinâmico das sócio-temporalidades que as conformaram, ajudando no desvelamento, para a sociedade, a partir dela mesma, de suas atualidades-anacrônicas. Sendo ainda mais explícito, de visibilizar as suas questões e veleidades mais perenes, não aderindo, plenamente, aos ditames dos “espíritos” hodiernos que, tendendo à fixar, seja pelo recurso ao imediatismo ou mesmo pelas irritações nem sempre produtivas que incitam nossos olhares no agora, impedem entendimentos a respeito de suas dimensões processuais. É neste sentido que os conteúdos desses e demais ensaios de interpretação do Brasil continuam a oferecer boas suplementações para nossas imaginações sociológicas.

Parafraseando outro autor (Calvino, 2007), esses “clássicos” nos permitem “ouvir” aqueles “barulhos de fundo” que, compondo reflexivamente o atual cenário político e social brasileiro, não podemos nos dar ao luxo de abafar. E se no caso da obra freyreana isso já foi apontado muitas vezes pelos críticos (Bastos, 2006; Falcão & Araújo, 2001; Araújo, 1994; Lins, 1985), adiante não deixo de endossar a tese, ao tratar, em parte, do extenso material que CG&S, SM e OP seguem fornecendo acerca dos processos de constituição daquilo que o autor chamou de “especialização de tipo físico e moral” dos sexos no Brasil (Freyre, 2004b: 210), permitindo comunicar suas potentes formulações teóricas aos recentes estudos sobre os processos de generificação social do país.

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Considerando o que a literatura especializada já assinalou sobre a presença de uma abordagem das relações de gênero nos escritos de Freyre, pôde-se averiguar: (1) a valorização da mulher em contraste com o androcentrismo que, antes de CG&S, dominou a historiografia brasileira (Pereira, 1962; Quintas, 2008); (2) a problematização da suposta passividade com que indígenas, negras, brancas e “mulatas” eram retratadas por aquelas análises (idem); (3) como as mulheres, de maneira geral, serviram de instrumentos indispensáveis na estruturação do sistema de dominação patriarcal (idem); (4) a mobilização da categoria “patriarcalismo” nos exames de Freyre sobre formação e desenvolvimento da sociedade – outro elemento relevante, uma vez que se coaduna àquelas duas sugestões, mencionadas mais acima, acerca de suas utilidades para os estudos de gênero contemporâneos (Mello, 2001; Araújo, 1994: 54); (5) a inclusão, em suas formulações sociológicas, das relações familiares conectadas aos aspectos econômicos que, por sua vez, também o permitiram recuperar, além da presença das mulheres; (6) as de outras figuras de masculinidades até então marginalizadas pelas análises anteriores: as dos homens e meninos negros escravizados, indígenas, “mulatos” e “amarelinhos” (Larreta & Giucci, 2007: 425-426; Bastos, 2006: 14); e (7) as maneiras pelas quais o “idioma de gênero” (Heilborn, 1993: 50) estruturante do regime patriarcal, não obstante às convicções ideológicas do pernambucano – imbricados a elas, inclusive –, teria sido captado e incorporado por ele em suas reflexões, deixando entrever específicos mecanismos de sujeição social vigentes no país (Bocayuva, 2001: 22). Além desses aspectos, podemos indicar um último: (8) apesar do recrudescimento das críticas direcionadas aos elementos conservadores de sua obra pós-1964, ela não deixou de ser mobilizada por alguns intelectuais de inclinações à esquerda do espectro político, entre eles Heleieth Saffioti (1976) e Lélia Gonzales (1984) – dois nomes que foram essenciais ao desenvolvimento dos estudos de gênero no Brasil (Fleming dos Santos, 2023).

Tendo em vista o teor autobiográfico das reflexões dispostas na trilogia, é possível, por meio de um exame contrastivo entre a trajetória de Freyre e os elementos de sua interpretação sobre os processos históricos brasileiros, apreender certas comunicações reflexivas entre individualidade autoral e as questões sociais mais amplas que o interpelaram, em relação às dinâmicas de generificação social no país. Ao realizarem tal investigação, os estudiosos de hoje poderão constatar, por si mesmos, aquilo que sociologicamente entendem por gênero como fator presente entre as preocupações recursivas que tomaram o autor, e que ele não deixou de abordar nos seus mais variados escritos. Em OP, por exemplo, encontrarão o questionário composto por uma série de tópicos, relativos às indagações, no percurso anterior à publicação desse e de seus outros dois livros (Freyre, 2004c). Num desses tópicos, aparecem os “chamados Direitos da Mulher”, indicando assunto latente na transição do Império à República e ligado ao tema da progressiva modernização e avanço dos ideais democráticos no país, aos quais Freyre também dedicou artigos durante os anos de 1920 (Freyre, 2016).

Em relação aos demais tópicos do instrumento mencionado, é expressivo o fato de que, apesar de contemplar esse fator e das perguntas direcionadas às mulheres, a maioria dessas indagações evidencia a centralidade concedida pelo sociólogo às vivências masculinas. Ademais, a maioria das respostas citadas e comentadas ao longo do livro, por terem sido obtidas em suas redes de relações pessoais, dizem mais a respeito das experiências de pessoas brancas e abastadas. Quando não de seus dependentes ou demais indivíduos subalternizados, corroborando com as afirmações do autor sobre as cumplicidades entre estes e aqueles. Ponderando criticamente esses aspectos, sem negligenciá-los em relação ao seu valor heurístico-sociológico, tais relatos me parecem interessantes tanto pelas descrições das mentalidades desses grupos específicos quanto por fornecerem indícios e insights para pesquisas futuras acerca de seus conteúdos.

Os apontamentos encontrados na fortuna crítica demonstram algumas das possibilidades e limites engendrados por CG&S, SM e OP que podem ser retomados pelos especialistas de gênero. Um aspecto que não me parece ter ganhado tamanha atenção e que aproveito para registrar aqui é o do esforço movido por Freyre de colocar em evidência certas matizes da socialização autocrática que, ao longo dos processos históricos, teria orientado as disposições afetivo-emocionais e agentivas de homens e mulheres, contribuindo, assim, para o ajustamento de suas figuras “aos interesses do sexo dominante” que organizaram a sociedade “sob o domínio exclusivo de uma classe, de uma raça e de um sexo” (Freyre, 2004b: 2010). Proposições essas que aproximam seus entendimentos àquelas indicações teóricas observadas por recentes análises acerca das dinâmicas de “corporificação” ou “generificação” das culturas ocidentais (Connell, 2015), assinalando, ainda, o forte vínculo entre androcentrismo, História, instituições e comportamentos políticos observados nessas sociedades.

Vista por esse ângulo, a introdução das noções de “sadismo”, “masoquismo” e “sexualidade” tomadas da psicanálise e colocadas por Freyre em conexão com suas explicações sociológicas embasadas sobremodo no conceito boasiano de cultura, lhe permitiram ressaltar certas maneiras pelas quais corpos, desejos e relações socioafetivas teriam sido moldados e orientados por princípios de ordenamento/estruturação social abarcando moralidades, agenciamentos políticos efetuados por membros das elites dirigentes, além dos fatores mesológicos e econômicos por ele tão ressaltados.

Em CG&S, a fonte apontada por Freyre em relação a essas categorias psicanalíticas foi o livro The sexual life of the child (1924), de Albert Moll. Por meio dele, o sociólogo formulou suas compreensões acerca das conexões entre cultura e sexualidades, entendendo que as primeiras direções tomadas pelos impulsos sexuais nas crianças – sadismo, masoquismo, bestialidade ou fetichismo – dependeriam, em larga medida, das oportunidades ou chances oferecidas pelo meio (Freyre, 2004a: 113). Mais do que predisposições engendradas pela raça ou por perversões inatas, elas seriam condicionadas socialmente – contrariando, com isto, certos discursos embasados em determinismos biologizantes e racistas colocados em circulação nas primeiras décadas do século XX pelo cientificismo higienista. A infância compreendida, a partir dos ensinamentos de Moll, como um período de “indiferenciação sexual” particularmente exposto a influências externas, careceria então de específicos acompanhamentos. Interessante assinalar que, não obstante aos pontos hoje polemizados por determinadas perspectivas ideológicas ou mesmo dos aspectos já rechaçados pelas ciências mais recentes, esse livro foi um dos primeiros a ressaltar a importância da educação sexual especializada voltada às crianças, indicando certos parâmetros para o que, nela, competiria tanto aos pais quanto aos professores, de acordo com cada faixa etária de educandos.

Além disso, em CG&S, SM e OP percebe-se na presença desses elementos uma analogia implícita entre infância, adolescência e juventude e os diferentes momentos do desenvolvimento histórico do país – Colônia, Império e República. Como se estes momentos correspondessem de certo modo aos aspectos psicológicos coletivos de cada uma daquelas etapas particulares do desenvolvimento humano e vice-versa, servindo-lhes, assim, para realizar os movimentos compreensivos que empreendeu sobre as relações entre indivíduos e sociedade – partindo, é importante dizer, de suas próprias perspectivas e questões existenciais.

Ainda sobre esse ponto, não é exagero aproximar os usos que Freyre deu a essas noções daqueles que, mais recentemente, Raewyn Connell (2015) concedeu ao conceito de catexia, também incorporado da psicanálise para tratar dos processos pelos quais se estabelecem a generificação das relações emocionais, no âmbito dos vínculos e compromissos assumidos pelos sujeitos e, assim, enfatizar temas relacionados à socialização dos afetos e da construção cultural do desejo e da orientação sexual. Para Connell (2015), uma importante arena da catexia de gênero é a sexualidade que, embora não se reduza apenas ao gênero, é recorrentemente organizada a partir das construções sociais a ele relacionadas.

A mobilização daquelas noções possibilitou Freyre exprimir específicos entrelaçamentos entre certas ideações de masculinidades e feminilidades e demais mecanismos produtores das desigualdades brasileiras – que, em seus discursos, ele não deixou de endossar. De um lado, suas formulações reforçaram a tese das cumplicidades entre indivíduos privilegiados e subalternizados e, com isso, reificaram a tese da democracia racial. De outro, ora nas entrelinhas, ora de modos mais explícitos, elas assinalaram o fato desses enlaçamentos, entre dominadores e dominados, estarem na base das experiências de subjetivação dos brasileiros, de maneira a se apresentarem em suas relações desde a tenra infância – individuais e coletiva.

Daí as origens de precisão de certas inferências que, a despeito do tempo que delas nos distanciam, permitem afirmar o caráter contemporâneo desses escritos e sua utilidade para os estudiosos das ideações políticas e sociológicas formuladas no e sobre o país. Cito uma dessas passagens:

A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. Mesmo em sinceras expressões individuais – não de todo invulgares nesta espécie de Rússia americana que é o Brasil – de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se (Freyre, 2004a: 114, grifos meus).

Algumas dessas formulações são tão potentes que, se fossem destacadas há uns quatro anos, referindo-se ao cenário social e político brasileiro, para certos segmentos da população, elas poderiam mesmo assumir ares de profecia. Quenda:

Ainda hoje sobrevive a mística popular no Brasil em torno dos títulos militares: para a imaginação da gente do povo o Messias a salvar o Brasil será antes um senhor capitão ou um senhor general do que um senhor bacharel ou um senhor doutor (Freyre, 2004b: 721, grifos meus).

Mais do que simples frases de efeito embasadas na verossimilhança ou nas convicções ideológicas do autor, a razoabilidade dessas proposições ganha toda a sua potência, ao se proceder à verificação de seus postulados – que hoje, aliás, repito, são desgostosamente fáceis de se operar tomando como objeto de investigação o cenário político do país na última década. Nos casos a que os fragmentos se referem, em SM, eles teriam seus fundamentos de sentido nas próprias dinâmicas de formação da sociedade enquanto sistema patriarcal, familista, latifundiário, escravista e híbrido. Princípios de estruturação que, tendo conferido as especificidades das relações sociais brasileiras desde os primeiros momentos da colonização, posteriormente destituídos de suas bases, se desprenderam delas e do tempo-espaço que lhes deram origem, passando, então, a habitar nas memórias e nos comportamentos culturais de suas variadas populações, expressando, a um só tempo, suas pluralidades, distinções, hierarquias e unidade conformadas por seus laços de solidariedade social. Assim, a despeito das sucessivas rupturas e inovações institucionais ocorridas após a chegada da família real no Brasil, tal sistema teria se perpetuado por um constante movimento de acomodação dos novos aos antigos elementos socioculturais, perpassando o Império, adentrando o primeiro período republicano – e, por que não dizer, chegando até nossos dias.

Dessas compreensões, cabe destacar ainda o conceito de forma social mobilizado por Freyre para “detectar nos movimentos lentos do passado as grandes forças” sociais atuantes no presente (Freyre, 2004b: 78). Embora não o tenha definido conceitualmente, o sociólogo identificou ser a “família, sob a forma patriarcal, ou tutelar”, “uma dessas grandes forças permanentes” que moldaram as feições da sociedade brasileira, num país de “quase tanto familismo quanto a China”, de domínio tanto do Estado quanto da “própria religião”, “pela pessoa ou pela família economicamente poderosa” (Freyre, 2004b: 77).

Ao se converterem em forma social, esses caracteres tenderam a se prolongar, especialmente através do “culto sentimental ou místico do pai” identificado, entre nós, “com as imagens de homem protetor, de homem providencial, de homem necessário ao governo geral da sociedade” (Freyre, 2004b: 77). Naquele qualificativo “tutelar” imbricado a essas representações androcêntricas, Freyre não deixou, contudo, de assinalar “a figura da mãe de família” que, por sua vez, manifestou-se “no culto, igualmente sentimental e místico, da Mãe, identificada pelo brasileiro com imagens de pessoas ou instituições protetoras: Maria, mãe de Deus e senhora dos homens; a igreja; a madrinha; a mãe” – figuras que, religiosamente, simbolizam as frequentes intervenções do modus operandi autoritário, observado “na vida política ou administrativa do país, para protegerem, a seu modo, filhos, afilhados e genros” Freyre, 2004b: 77) – e, como temos observado no último ano, maridos que, exercendo cargos públicos, apropriam-se do patrimônio coletivo. Nesse aspecto, entende-se que, apesar das ponderações negativas do autor a respeito dos direitos das mulheres, sobretudo em seus artigos dos anos 1920 (Freyre, 2016), ele soube muito bem identificar os lugares estratégicos reservado a elas, pela expertise patriarcal, nas relações políticas.

Cotejados com os vieses entrevistos nos posicionamentos adotados por Freyre pós-1964, esses artigos e as mais variadas passagens encontradas na trilogia permitem ler sua interpretação do Brasil como tendo finalidades mais do que expositivas, em certa medida, justificadoras da cultura política tradicionalista e autoritária enraizada no país – o que, no entanto, não reduz seu valor heurístico sobre aquelas continuidades do passado, entremeadas nas formas do presente, e que possibilitam não apenas compreendê-las, mas também formular críticas aos seus aspectos problemáticos. Sobretudo porque, para além das próprias opiniões, em CG&S, SM e OP o sociólogo mobilizou uma série de materiais que se tornaram passíveis de localização e uso pelos estudiosos.

Mencionei o conceito de forma social porque, além de ele apresentar valor heurístico ao tratamento teórico de certos dilemas que entrelaçam presente e passado das relações sociais brasileiras, ele me parece útil a uma sociologia histórica que se proponha a abordagem das conexões reflexivas entre gênero, política, ciências e sociedade a partir dos ensaios de interpretação do Brasil – empreendimento que, se posto em diálogo com alguns estudos em desenvolvimento no campo das análises sobre as relações de gênero, com foco nas ideações de masculinidades, pode gerar novas contribuições a respeito do cenário contemporâneo. Entre esses estudos, penso, por exemplo, no que foi apresentado por Lucas Moreira (2021) em seu artigo “Masculinidade genealógica e o ‘viking’ do capitólio: reflexões sobre virilidade e política”. Neste texto, o autor sugere a possibilidade de, por meio de uma perspectiva histórica dos imaginários produzidos pelas homossociabilidades, pensar os movimentos sociais autoritários que, nos últimos anos, tomaram espaços relevantes nas instituições políticas brasileiras.

Segundo Moreira, esse tipo de análise permitiria iluminar certos mecanismos basilares das discursividades, performances e desafios colocados, por esses grupos, às instituições e valores democráticos. A hipótese perseguida pelo autor é a de que os sentidos das ações coletivas por eles movidas estariam relacionados à defesa da continuidade e da reprodução das desigualdades sociais alinhadas ao “desejo político de fazer renascer um símbolo buscado na anterioridade histórica”, na qual se supõem que “o homem era forte, violento, dominador e mais “selvagem”” (Moreira, 2021: 1) – ideário que, por sua vez, impele esses movimentos na fomentação da ascensão de representantes políticos afins a “uma masculinidade despojada dos avanços civilizatórios” e das conquistas sociais respaldadas pelo pacto democrático.

Ademais, a exibição de uma concepção imóvel e naturalizada do masculino, replicando o modelo da masculinidade hegemônica ocidental, explicitaria também uma específica regularidade histórica, isto é, a de que, seja qual for a época, os portadores dessas ideações se encontram, necessariamente, em crise e vivem em “permanente luto” (Courtine, 2013: 567). Para se referir a essa qualidade específica, Moreira lançou mão do conceito de “masculinidade genealógica” elaborado por Jean-Jaques Courtine (2013). Por meio desta noção, os autores visaram ressaltar os resquícios históricos de subjetivação predatória que se apresentam nas relações de gênero endossadas por esses movimentos nos cenários contemporâneos. A “busca da exemplaridade viril numa linhagem exclusivamente masculina” e “favorecida pelo sentimento de que alguma coisa da virilidade foi perdida” e precisa ser recuperada (Courtine, 2013: 567), consisti numa das suas facetas mais eloquentes. Daí seus investimentos contrários à democracia e suas instituições.

Conectando essas considerações às reflexões aqui apresentadas, compreende-se que, em relação às desigualdades interseccionais ao gênero, a elaboração de respostas a serem dadas aos desafios colocados no cenário contemporâneo requer, inevitavelmente, entendimentos acerca das sequências de desenvolvimento da própria sociedade brasileira.

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Diante das cortinas de fumaça e violências engendradas por movimentos que desde as manifestações de 2013, o Golpe de 2016 e o 8 de janeiro deste ano têm nos incitado às indagações a respeito da solidez ou das fragilidades institucionais da democracia brasileira, independentemente das respostas que possamos dar a essas questões, para se formulá-las é inevitável voltar a atenção para aquilo que, mesmo recalcado, não deixou de estar presente em meio aos avanços institucionais democráticos: a velha sociedade brasileira, historicamente marcada por valores e práticas socioculturais autoritárias de socialização, de orientação das condutas, de afirmação das hierarquias e reificação das desigualdades.

Por isso, o exame de autores conservadores e mesmo autoritários tem valor não apenas pelas sugestões teóricas que nos oferecem. No corpo a corpo com seus textos, podemos apreender aquelas suas complexidades e contrariedades moduladas por potências sociais mais amplas, cujos entendimentos poderão nos ser estratégicos. Mais do que isso, o exercício também provém outros aprendizados, como o de não incorrer em determinadas propensões cognitivas, pouco refletidas, engendradas pelo “espírito da época” e por nossos próprios furores mais imediatos. Refiro-me especialmente àquelas atitudes “analíticas” de se antecipar as instâncias de avaliação, sobre esses escritores e seus escritos, em relação às etapas de verificação – que embargam não só o papel desempenhado pelo raciocínio em nossas empreitadas, mas também as suas possibilidades de comunicação para determinados públicos nem sempre afins aos nossos posicionamentos.

Penso que, seja os localizados à direita ou à esquerda do espectro político, nossos “clássicos” ainda têm muito a nos ensinar. No corpo a corpo com os textos de Gilberto Freyre, por exemplo, para além dos aprendizados teóricos mencionados aqui, podemos, quem sabe, extrair também algo de profícuo daquele seu gesto não disjuntivo de pensamento que, em vez de repor binarismos, não deixou de abraçar uma perspectiva das complexidades humanas. Em oposição aos variados simplismos reducionistas, acredito que tal medida possa nos ser útil em vista dos desafios colocados por esses tempos de polarizações sociais e políticas tão assentadas.  

Observação sobre estas reflexões

Essas notas reflexivas constituíram parte do repertório comunicativo apresentado no GT “Repensando as Interpretações do Brasil”, coordenado por Maria Caroline Tresoldi (doutoranda, PPGSA-UFRJ) e João Macieira (doutorando, IESP-UERJ), ocorrido no VIII Seminário Discente do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) em novembro de 2023. O estudo também foi dirigido a partir da minha pesquisa de mestrado, intitulada “Cotejando o gênero: figuras de masculinidades na obra de Gilberto Freyre” (Fleming dos Santos, 2023), defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ), e enriquecida pelos debates fomentados tanto pelo Núcleo de Estudos Comparados e Pensamento Social (NEPS) quanto pelo Laboratório de Pensamento Social (LAPES – FGV/CPDOC). Nesta ocasião, não deixo então de agradecer à Helga Gahyva, André Botelho, João Marcelo Maia, Antonio Brasil Jr., Fábio Mariano, José Léon Szwako, Lucas van Hombeeck, Karim Helayel, Caroline Tresoldi, João Arthur Macieira, Arthuro Ramos e aos demais colegas, interlocutores tão importantes nesses percursos.

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