WikiFavelas: Pode a Baixada falar da violência?

Ao retraçar a história e as realizações de 10 anos do Fórum Grita Baixada, Dicionário Marielle Franco aborda as estratégias dos moradores da região para enfrentar coletivamente a violência num contexto em que ter voz é algo perigoso

.

Por Douglas Almeida para o Dicionário de Favelas Marielle Franco

Às vésperas de comemorar seu aniversário de 10 anos, Rafaelly da Rocha Vieira, uma menina negra moradora da Baixada Fluminense, foi morta por uma bala perdida no dia 25 de janeiro. Ela brincava com outras crianças perto de uma das vias mais movimentadas de São João de Meriti, por volta das 19h30, quando homens encapuzados invadiram a rua e começaram a disparar atingindo Rafaelly na altura do tórax. A menina teve a caixa torácica destruída por um tiro de fuzil que ninguém sabe quem disparou. Vizinhos contam que não sabem “quem foram os autores dos disparos nem para quem tinha sido”, só sabem que eles entraram na rua “atirando a esmo”. 

O trágico episódio ocorrido na última semana insere-se em um contexto de violência que marca a vida de uma grande maior parte dos moradores da Baixada Fluminense. Infelizmente, tem crescido na Baixada não só o homicídio de jovens, mas também de crianças. Elza Menezes, madrinha de Rafaelly, faz um alerta: temos que parar de normalizar crianças sendo executadas. Segundo dados do Rio de Paz, divulgados em postagem do Fórum Grita Baixada em redes sociais, em um ano, de janeiro de 2022 a janeiro de 2023, além de Rafaelly, outras crianças foram baleadas no estado do Rio de Janeiro. Destacamos Kevin Lucas dos Santos Silva, de 6 anos, que foi morto por bala perdida em 6 de janeiro de 2022, em Queimados, na também Baixada Fluminense. Ele ajudava vizinhos numa mudança. Segundo testemunhas, PMs entraram atirando na comunidade. Outras duas ficaram feridas, uma delas em estado grave. Da mesma forma, há Juan Davi de Souza Faria, de 11 anos, foi morto em 1 de janeiro de 2023, nos primeiros minutos do ano, enquanto assistia aos fogos da virada do ano em sua casa na Chatuba, em Mesquita.

Os casos das crianças mortas de forma brutal no estado do Rio de Janeiro, em especial na região da Baixada Fluminense, no último ano se somam a tantos outros episódios de jovens negros, pobres e moradores de favelas e periferias que são capturados pelas redes de militarização nas favelas do Rio de Janeiro. Na pesquisa de dissertação intitulada Redes de Militarização no Rio de Janeiro: cartografias sobre juventudes, violências e resistências em favelas, Caíque Azael identifica que, durante a avaliação das cenas de jovens executados no estado do Rio de Janeiro, podemos concluir ao menos duas coisas: há um certo padrão racial (a maioria absoluta das pessoas executadas são negras) e também um padrão social/territorial (jovens pobres e moradores de favelas e periferias são praticamente o único perfil que comparece no painel dos jovens executados no estado). Na pesquisa, discute-se também o caso de Emily e Rebecca, também crianças negras da Baixada Fluminense executadas – estas em função da política pública de segurança do estado do Rio de Janeiro. Isso também diz muito sobre uma realidade de necropolítica e racismo que é constituinte das possibilidades de existir em territórios de favelas e periferias pelo Brasil

É fundamental elucidar que tal cenário de violências é ainda mais grave quando pensamos nas cidades da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro que é composta por 13 municípios com realidades bastante diversas. Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nova Iguaçu, Nilópolis, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica possuem uma enorme riqueza cultural e histórica, mas ainda assim são amplamente percebidas apenas como cidades violentas. Giulia Escuri, em verbete escrito para o Dicionário de Favelas Marielle Franco, nos ajuda a compreender o cenário na região, lembrando que para compreendermos a violência de Estado que assola o território, devemos olhar para os dados, a mídia e seu histórico. A autora aponta que um estudo publicado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) indica que dos cinco batalhões de Polícia Militar que mais matam no Rio de Janeiro, quatro estão na Baixada: Queimados, Belford-Roxo, Duque de Caxias e Mesquita. E, para além das mortes provocadas pela Polícia Militar, não podemos deixar de levar em consideração a participação das milícias e dos grupos de extermínio, que há décadas atuam na Baixada.

A história da violência na Baixada, inclui não só um número enorme de famílias que choram a morte dos seus familiares, mas também outra quantidade brutal de mães e pais que não possuem o direito nem mesmo de enterrar seus entes queridos. Uma pessoa desapareceu na Baixada a cada seis horas em 2022. O número de pessoas desaparecidas na Baixada Fluminense chegou, entre janeiro e novembro de 2022, ao maior patamar desde 2016. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) revelam que houve um aumento de 20% dos desaparecimentos em relação ao mesmo período de 2021. Em resumo, os desaparecimentos forçados na região são uma triste e constante realidade, que, em análise de Giselle Florentino e Fransérgio Goulart, torna ainda mais fundamental a “tipificação da categoria desaparecimento forçados para estimular a investigação e elucidação desses inúmeros casos de privação de liberdade”.  

Muitos desses desaparecidos não foram e nem nunca serão localizados por suas famílias, uma vez que seus corpos foram destruídos ou enterrados em um dos, pelo menos, 77 cemitérios clandestinos que existem na Baixada, segundo um levantamento feito pela Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR). Os locais, conhecidos como “áreas de desova”, são usados por milícias, grupos de extermínio e facções criminosas para descartar cadáveres

Em sua tese de doutorado intitulada Como falar de violência na periferia? O Fórum Grita Baixada e os discursos sobre a segurança pública na Baixada Fluminense, Douglas Almeida, que é nascido e criado em São João de Meriti, analisa as reconfigurações da violência na Baixada Fluminense. Ele aponta como os homicídios e os desaparecimentos citados acima estão entrelaçados em complexas redes políticas, econômicas e sociais da região que envolvem grupos de extermínio, narcotráfico, milícias ou junções dessas atividades criminosas, como aponta o professor Silvio Almeida.

Os moradores da Baixada, embora tenham suas vidas constantemente afetadas por esse contexto, temem falar abertamente sobre a violência que sentem na pele. De certo modo, a violência na Baixada, ao longo de décadas, se tornou quase um tema indizível

A partir de sua própria experiência como morador da região, Douglas Almeida lembra que “não falar sobre a violência é sintoma de uma Baixada desigual, mas passa também por um lugar de sobrevivência, medo e cuidado”. Os moradores evitam falar sobre o tema porque sabem que a violência na Baixada está inserida em uma trama de clientelismo homicida, que inclui envolvimento político dos matadores e violência política.

Apesar de todos os riscos que falar sobre violência envolve, em alguns momentos como o  da Chacina da Baixada, em 2005, moradores não puderam se calar e precisaram gritar. Surgiram, assim, importantes iniciativas como o Fórum Grita Baixada, um movimento social em rede que reúne instituições da Baixada Fluminense que militam nas áreas de direitos humanos e segurança pública.

Em diálogo com a discussão de Spivak (2014) em Pode o subalterno falar?, convidamos todos e todas à reflexão sobre a trajetória do Fórum Grita Baixada e dos desafios encontrados para falar sobre violência na Baixada. Ao longo de 10 anos de existência, o FGB vem buscando reposicionar “quem pode falar” sobre violência. A partir de diferentes caminhos, os integrantes do movimento vêm batalhando para que as lutas pela cidadania e direitos humanos também se encarnem na criação de espaços de fala e debate sobre a violência na Baixada. 

O FGB, ao longo de sua história, tem conseguido deslocar o entendimento que certos grupos sociais – geralmente, grupos considerados marginalizados e subalternizados (Spivak, 2014) – tem o direito de contar suas histórias apenas a partir do lugar de objeto de pesquisa e tem permitido que eles se tornem também donos da caneta que escreve a história, donos do papel e autores de seus próprios contos. Essa não é uma tarefa fácil, especialmente com a presença de processos de colonização que ainda distribuem de forma desigual entre nós o direito de ter direitos. Quando falamos em “autorização” para falar, não é um simples ato de proferir discursos, mas um conjunto de ações que, além de permitir que diferentes pessoas falem, também permita que diferentes pessoas escutem. 

Para que o morador da Baixada possa falar e ser ouvido, o Fórum Grita Baixada, ao longo dos últimos 10 anos, organizou e segue organizando núcleos de debate, reuniões, atos, manifestações, cartas, pesquisas próprias e documentários que vêm tematizando, de diferentes formas, a violência e as dinâmicas raciais da Baixada. 

Diversos estudos recentes vêm mostrando a centralidade da raça para compreender a vida nas favelas e periferias. Em 2016, Luiz Antonio Machado da Silva e Palloma Menezes promoveram um ciclo de debates no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) intitulado “Raça e Gênero: identidades e violências diversas”, no qual dezenas de lideranças de diferentes territórios da cidade discutiram sobre temáticas relacionadas aos desafios enfrentados na segurança pública do Rio de Janeiro, que tem nos marcadores raça, gênero e classe centralidade histórica. Esse é um debate que também vem ganhando importância no Dicionário de Favelas Marielle Franco. A Categoria Temática “Relações étnico-raciais” hoje, conta com 40 verbetes, e está em plena expansão, na proposta de ampliar um debate interseccional sobre as relações raciais no Brasil. Nela, há resultados de diversas pesquisas que vêm apontando como os homens negros são os principais alvos da violência policial (Ramos, 2020) e também das abordagens policiais no Rio de Janeiro (Ramos, 2021). As mulheres, por sua vez, choram o luto de seus filhos, maridos e vizinhos perdidos pela violência da polícia, como do tráfico e das milícias e, ao mesmo tempo, têm seus corpos constantemente violados por esses mesmos atores armados que atuam em seus territórios de moradia. 

Ao longo dos últimos anos, as ações e os debates sobre violência, organizados por movimentos sociais como o Fórum Grita Baixada, têm incorporado cada vez mais  reflexões sobre gênero e, especialmente, sobre raça. Confira o verbete “Fórum Grita Baixada e a luta por justiça racial na Baixada Fluminense”, criado por Douglas Almeida, que nos ajuda a compreender a trajetória do Fórum, assim como as transformações nas condições de possibilidades de se falar sobre violência e raça na Baixada. 

Douglas é de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. É economista, mestre em desenvolvimento territorial e políticas públicas e doutor em sociologia. Foi articulador territorial do Fórum Grita Baixada e membro da coordenação ampliada do fórum. Foi também coordenador de mobilização da Casa Fluminense. Atualmente, é assessor parlamentar. Leia na íntegra o verbete no Dicionário de Favelas Marielle Franco

Introdução elaborada por Palloma Menezes, Caique Azael e Clara Polycarpo da equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Fórum Grita Baixada e a luta por justiça racial na Baixada Fluminense

Autoria: Douglas Almeida

A Baixada Fluminense, historicamente, vive processos de violência, desde os grupos de extermínio à atuação de facções criminosas do tráfico de drogas e das milícias na região. Ao longo da história, a população conviveu com diversos problemas estruturais, para além da violência dada as escolhas do Estado na política de segurança pública e as desigualdades que marcam o território, sobretudo quando examinamos e comparamos a Baixada com a cidade do Rio de Janeiro. Diante disso, movimentos, coletivos e organizações constroem lutas urbanas nessa região em defesa dos direitos e no combate às desigualdades, em destaque o Fórum Grita Baixada.

O Fórum Grita Baixada, há 10 anos, constitui-se com um fórum de lideranças sociais, movimentos, pastorais e organizações que reivindicam políticas públicas para a Baixada Fluminense com foco na redução dos homicídios na região, além de construir caminhos para uma cultura de valorização da vida. O FGB busca a construção de uma narrativa de segurança pública com cidadania, defesa dos direitos humanos e direito à memória e justiça racial.

O Fórum nasceu enquanto movimento social e ao longo dos anos passou por “metamorfoses”, com mudanças nos seus discursos e nas formas de atuação. O presente verbete busca identificar algumas das mudanças que ocorreram no modo de se debater a violência na região, tendo em vista as transformações que ocorreram nas próprias dinâmicas da violência, na política e no perfil das organizações da sociedade civil da Baixada Fluminense no início do século XXI.

A criação do movimento

A história de luta de um movimento da sociedade civil pode ser contada sob diferentes ângulos, dependendo de quem conta, dos interlocutores ouvidos por aquele que decide (re)construir a narrativa, do período histórico no qual tal (re)construção ocorre e ainda da forma como a narrativa é tecida. No presente verbete faço uma (re)construção da história de um movimento social, a partir de uma pesquisa militante, que envolveu observação participante e análise de materiais e publicações produzidas pelo próprio movimento. Trata-se de um esforço de analisar as “metamorfoses de um movimento social” (BRITES, FONSECA; 2013): o Fórum Grita Baixada (FGB). O FGB constitui-se com um fórum de lideranças sociais, movimentos, pastorais e organizações que reivindicam políticas públicas para a Baixada Fluminense com foco na redução dos homicídios na região, além de construir caminhos para uma cultura de valorização da vida na região. O FGB busca a construção de uma narrativa de segurança pública com cidadania, defesa dos direitos humanos e direito à memória e justiça racial.

Como dito mais acima, o Fórum Grita Baixada nasceu como um movimento social. Para Gohn (2004, p. 141), os movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas”. A autora afirma, ainda, que esses movimentos “possuem uma identidade, têm um opositor e articulam ou se fundamentam num projeto de vida e de sociedade” (GOHN, 2004, p. 145). Assim o FGB se insere no conceito pela identidade territorial, pela oposição à violência e por levantar uma bandeira da segurança pública com cidadania, mesmo que isso fosse algo a ser construído ao longo de sua trajetória de atuação.

Sobre a história da fundação do Fórum Grita Baixada, dois momentos históricos são colocados como marcos desse processo: a Chacina da Baixada, em 2005 e a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), em 2008. O contexto de (in)segurança na Baixada, é o ponto de partida para compreender como um grupo de organizações e pessoas lideradas por pastorais da Igreja Católica, igrejas evangélicas e o Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu decidiram em 2012 realizar alguns encontros para pensar alternativas para a superação da violência urbana na região. Naquele momento, tal reação surgiu porque uma parcela da população estava muito assustada com uma “onda de violência” na Baixada que era sentida a partir do alto índice de homicídios, o grande número de desaparecimentos forçados e o crescimento do número de roubos e furtos. Tal onda ganhava ainda mais força com rumores sobre a suposta migração da capital para Baixada de pessoas ligadas às facções criminosas a partir da expansão das UPPs (RODRIGUES, 2018).

No primeiro momento, o grupo se reuniu para ouvir as demandas de pessoas indignadas com esse crescente contexto de violência. Em 2012 houve um encontro com diversas instituições e movimentos da Baixada com o vice-governador na época, Luiz Fernando Pezão, e depois a elaboração de um documento às autoridades. No entanto, a “onda de violência” continuou com as chacinas da Chatuba e Japeri ainda naquele ano. O grupo continuou atuando e solicitou uma audiência pública com a presença do secretário de segurança à época, Mariano Beltrame, que foi até Nova Iguaçu. Ao ouvir as demandas da população ele disse, em uma de suas intervenções, que era “a primeira vez que a Baixada grita tão forte. O movimento era batizado: Fórum Grita Baixada” (FÓRUM GRITA BAIXADA, 2016).

Uma história de resistência

Na noite de 31 de março de 2005 ocorreu a Chacina da Baixada Fluminense, como ficou conhecida essa que é considerada a maior chacina da região. A Baixada historicamente tem muitos casos registrados de morte com três ou mais pessoas, característica essa que é usada por muitos especialistas e policiais da Divisão de Homicídios para tipificar o crime de chacina. É comum ouvir em jornais, revistas e nas redes sociais a palavra chacina, mas existem poucos estudos sobre o assunto, que na maioria das vezes, como neste trabalho, aparecem de forma secundária para falar de outras situações que as envolvem, como violência policial, tráfico de drogas, corrupção e grupos de extermínio (SILVA, 2019).

No caso da chacina da Baixada, os executores eram policiais militares. Em menos de duas horas eles assassinaram 29 pessoas, nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, deslocando-se de carro. A motivação teria sido o descontentamento dos policiais com o comandante do 15° Batalhão de Polícia Militar, de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que havia prendido 60 policiais por desvio de conduta. Os atiradores executaram adolescentes, jovens e adultos, homens e mulheres, estudantes, travestis, comerciantes, biscateiro, padeiro, funcionário público, pessoas reunidas em um bar, em frente ao lava-jato, no portão de casa, pontos de ônibus e nas ruas. A repercussão da maior chacina registrada oficialmente no estado do Rio de Janeiro foi nacional e internacional. Entre os envolvidos no crime, 11 policiais foram denunciados, mas apenas quatro foram condenados (FÓRUM GRITA BAIXADA, 2016).

Um ano antes da chacina da Baixada, uma análise do Laboratório de Análise da Violência (LAV), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apontava o impacto da violência no Rio de Janeiro e como a política de segurança pública no estado havia sido implementada nos 25 anos anteriores. O estudo apontou, dentre outras coisas, que as políticas de segurança oscilaram entre dois polos antagônicos, um onde as políticas deveriam prezar o cumprimento da lei, sem abusos, capacitando a polícia e combatendo a corrupção dentro dela, e outro privilegiando o uso da força no combate ao crime, aceitando excessos da força policial e já qualificando os direitos humanos como “direito dos bandidos”. Na verdade, não houve uma implementação completa de uma segurança pública democrática, pois a tentativa esbarrava nas ações contra setores corruptos da instituição (CANO et al., 2004). Em uma tentativa de implementar o combate à corrupção no ano posterior a essa publicação, alguns policiais cometeram a chacina acima mencionada, em represália ao comandante do Batalhão, mostrando o quão profundo e complexo é o modelo de segurança pública do estado.

O exemplo da Chacina da Baixada, para introduzir a história recente de luta na região, é uma forma de exemplificar um momento em que atores da sociedade civil se reuniram em prol de determinado tema e desenvolveram uma atuação em resposta ao que ocorreu na noite do dia 31 de março de 2005.  Muitas bandeiras de luta na Baixada surgiram a partir da influência de setores da Igreja Católica, em alguns casos envolvendo a participação direta do clero. Na chacina da Baixada, o pároco Paulo, padre responsável pela paróquia localizada na Posse, em Nova Iguaçu, que teve o maior número de vítimas, telefonou para o bispo Dom Luciano depois de ter sido avisado sobre a chacina. O bispo da Diocese de Nova Iguaçu foi para o local e também foram o então prefeito de Nova Iguaçu, Lindbergh Farias (PT), para que houvesse celeridade na resolução do caso (ASSIS, 2008).

Diversas organizações da sociedade civil construíram um processo de mobilização frente à violência na região após a chacina, como polo de rede foi criado o Fórum Reage Baixada, que acompanhou as apurações da chacina de Nova Iguaçu e Queimados. Foi destaque também a atuação de organizações locais, como o SOS Queimados e o Centro dos Direitos Humanos de Nova Iguaçu (CDHNI), ligado à Diocese de Nova Iguaçu, que já trabalhava com o tema da violência na região. Algumas pesquisas já apontavam os problemas na Baixada, mas a segurança pública não mobilizou as organizações da sociedade civil, nem os movimentos sociais da região, com exceção do CDHNI e de líderes comunitários que participavam de reuniões nos batalhões (IMPUNIDADE NA BAIXADA FLUMINENSE, 2005).

As reuniões nos batalhões, principalmente os cafés da manhã, tinham pouco efeito prático. Denúncias feitas poderiam ser ouvidas por pessoas que eram ligadas a grupos criminosos ou que praticavam ações ilícitas. Mesmo assim, muitas lideranças participaram  desses encontros como forma de apresentar a insatisfação com a insegurança, principalmente em relação a crimes patrimoniais, a partir da abordagem do aumento da produtividade policial e da quantidade de policiais na Baixada Fluminense. Uma pauta sempre colocada por participantes desses espaços, percebido até mesmo em depoimentos posteriores à chacina da Baixada e já no início do Fórum Grita Baixada, denuncia que a vida na Zona Sul da capital vale mais do que na Baixada, porque o policiamento na região é proporcionalmente maior do que nos municípios da região.

Tendo em vista a baixa efetividade dos cafés da manhã nos batalhões e da necessidade de outros interlocutores para o tema da segurança pública na Baixada, para além do CDHNI, o Fórum Reage Baixada teve um importante papel nessa nova fase de organização popular na região. Esse fórum chegou a reunir mais de 80 organizações da sociedade civil dos 13 municípios da Baixada, constituindo-se como um fórum híbrido, até então inédito, de movimentos, partidos, ONGs, acadêmicos e outros atores sociais, mas, ao longo do tempo, o fórum Reage Baixada se desfez aos poucos (FREIRE, 2019).

Após a chacina, houve uma grande mobilização de instituições da capital e da Baixada, além da cobertura da mídia sobre os fatos. Esse processo impulsionou inicialmente a criação do “Fórum Baixada contra a Violência”, que depois recebeu o nome de “Fórum Reage Baixada” e posteriormente de “Fórum de Entidades Reage Baixada”, o FERB. Vale notar que, com essa última mudança de nome, a ‘violência’ desapareceu do título, o que indica o deslocamento de concepções associadas ao Fórum que ocorreu a partir de então (LANDIM; GUARIENTO, 2010). A pauta da segurança pública é sempre considerada uma pauta de risco quando debatida em territórios com altos índices de violência, sobretudo, com as interferência e relação direta do Estado.

Landim e Guariento (2010) ressaltam que a mudança de nome é um esvaziamento da centralidade do foco na violência, uma tentativa de criar uma central de organizações da Baixada Fluminense por direitos, a partir da visão de ONGs do Rio de Janeiro que faziam na época um debate pautado nas relações da violência com as desigualdades provenientes de fatores sociais e infraestruturais. Além disso, podemos adicionar aqui mais uma hipótese para  esse movimento: diluir o debate sobre violência pode ser uma tentativa de ter mais segurança ao discutir problemas no território, reduzindo a dificuldade de dialogar com as pessoas na Baixada a partir de um tema considerado arriscado pela população.

Enquanto membro do Fórum Grita Baixada percebi diversas vezes essa dificuldade em reuniões gerais e principalmente no processo de nucleação, quando discutíamos esses temas diretamente nos territórios. Sendo assim, a dificuldade que ocorreu no período do Fórum Reage Baixada pode se assemelhar a essa dificuldade, assim como ocorreu na pesquisa realizada pelo ISER sobre homicídios na Baixada Fluminense em 2017, onde entrevistas foram realizadas com ativistas, lideranças e moradores. Como aponta Rodrigues et al (2018): “São comuns as falas que tratam dos homicídios dolosos como algo que acontece quase todo dia ou semana. Essas falas indicam que a banalidade é o operador que resolve o paradoxo da frequência exacerbada conjugada com baixa visibilidade. De tão recorrentes e cotidianas essas mortes deixam de chamar a atenção, deixam de ser investigadas, problematizadas, evitadas” (Rodrigues et al, 2018, p. 42).

A dificuldade de falar sobre a violência na região não é algo restrito a população, mas algo presente nas lutas sociais da Baixada Fluminense. A história dos movimentos sociais durante o período da ditadura, em tempos que os homicídios eram bem altos na Baixada Fluminense, com a atuação dos grupos de extermínio, as lideranças sociais se organizavam em associações de moradores, em lutas por melhorias nos bairros e nos movimentos ligados à Igreja Católica. Nessa discussão, a violência aparecia como reflexo da situação de miséria na Baixada, colocando-a em segundo plano na discussão e a melhoria urbana como o principal debate a ser feito (SALES; FORTES, 2016).

De certo modo, mesmo que não tenha sido o motivo da escolha, priorizar a violência acabou sendo importante para uma cobertura da mídia que por algum tempo cobriu os desdobramentos da chacina da Baixada como o Fórum Reage Baixada. Este era apontado, mesmo que de forma tímida, como um espaço de aglutinação de quem lutava por justiça e por melhorias no campo da segurança pública na região, sempre sendo lembrado à sua origem no pós-chacina da Baixada, em 2005. Segundo Landim e Guariento (2010) mesmo com a razoável cobertura da mídia sobre a chacina, o Fórum Reage Baixada, que de perto dos pesquisadores parecia dinâmico, vigoroso, participativo e novo, pouco apareceu em jornais e na TV, como componente dessa história, principalmente pensando o viés da superação da violência.

A atuação rendeu uma homenagem na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) em dezembro de 2007 ao Fórum de Entidade Reage Baixada. O Fórum recebeu da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania o Prêmio Dom Helder Câmara, concedido a organizações/ movimentos e pessoas que se destacaram por suas conquistas em áreas da militância social (LANDIM; GUARIENTO, 2010). O Fórum tinha inspiração em movimentos que já existiam na Baixada, antes mesmo da chacina. Membro do Reage Baixada na época, o SOS Queimados, fundado em 2003, tinha o objetivo de apresentar propostas ao poder público, sobre os diversos problemas enfrentados pela população de Queimados. Participavam desse movimento professores, profissionais liberais, articuladores de outros movimentos sociais, políticos, trabalhadores informais, estudantes e outros membros da sociedade civil queimadense. Inclusive, a estratégia de atuação do SOS Queimados parecia muito com a estratégia do Reage Baixada e posteriormente, da primeira fase do Fórum Grita Baixada, sempre dialogando com a Câmara de Vereadores, chegando ao Ministério Público, Legislativos e Executivos Estadual/Federal e a mobilização de lideranças territoriais, além da articulação com ONGs e igrejas, sobretudo, a Igreja Católica e algumas igrejas evangélicas. Com a Chacina da Baixada, em 2005, “outras e específicas propostas foram criadas, juntamente com familiares das vítimas e outras Ongs, de forma ampliada, aos governos estadual e federal” (INICIATIVA DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA RACIAL, 2020).

O SOS Queimados, em publicação de autores do Laboratório de Violência da UERJ, lançou um conjunto de propostas para a superação da violência na Baixada Fluminense, no relatório Impunidade na Baixada Fluminense. Essas propostas dialogam com as propostas apresentadas cerca de 10 anos depois na Carta da Baixada e no relatório do Fórum Grita Baixada, e em publicações do FGB e da Casa Fluminense, para assim perceber se houve modificações no discurso desse campo da sociedade civil no debate sobre violência na região. Tanto o Fórum Reage Baixada quanto o SOS Queimados encerraram suas atividades em 2008.

Fases do Fórum Grita Baixada

O Fórum Grita Baixada já teve várias composições respeitando a estrutura-base do movimento, previamente acordada no estatuto. Originalmente, em documento elaborado em 2013, a composição do FGB tem quatro espaços de participação: a plenária, a coordenação, a executiva e as comissões temáticas. O estatuto foi elaborado também no período em que se buscava financiamento para o FGB, sendo assim é contemplada na estrutura também uma secretaria, uma tesouraria, uma assessoria jurídica e uma assessoria de comunicação.

Em um primeiro momento, a atuação do fórum foi pautada numa diversidade de atores e na possibilidade da definição interna do que é segurança pública, já que nesse período existiam dentro do grupo visões distintas sobre as soluções para o tema na Baixada. Posteriormente, pode ser considerada uma fase de transição o período em que o movimento passa a articular uma definição de segurança com cidadania, dialogando principalmente com o direito à vida. A partir de 2016, sobretudo em 2017, a defesa dos direitos humanos precisou ser incorporada com ênfase na narrativa, para evitar os crescentes discursos de que “bandido bom é bandido morto” que inflama a sociedade como um todo. Após o lançamento do filme “Nossos mortos têm voz”, o FGB incorporou na sua discussão o acompanhamento da rede de mães e também a pauta racial, sobretudo com o projeto direito à memória e a justiça racial. Por fim, o ano de 2020 traz a peculiaridade da pandemia e olhar para outras violações que a baixada sofre, principalmente em relação à segurança alimentar, além de retornar a estrutura anterior de 2017 com a saída do projeto direito à memória e a justiça racial da alçada do Fórum.

As atividades do Fórum

De 2012 a 2020, o FGB realizou ou participou de centenas de atividades, desde ações promovidas na carteira de projetos ou estimuladas pelos participantes ativos do fórum. Em 2012, 2013 e 2014, o fórum se dedicou a promover encontros, caminhadas, ser um espaço de discussão, definido originalmente como um movimento social que possuía disputas internas sobre o discurso a ser feito sobre a segurança pública. Mesmo majoritariamente composto por pessoas progressistas, existiam disputas mais à esquerda, como a criação de espaços de denúncia, e mais à direita, como a defesa de invasões e confrontos como método eficaz de enfrentamento ao tráfico. Nesses anos, os principais parceiros do fórum eram internos à Diocese de Nova Iguaçu, com poucas exceções como o Viva Rio e os conselhos comunitário e de segurança de Nova Iguaçu. Neste período, também foi oficializado o primeiro projeto da Misereor.

Em 2015 e 2016, é possível observar um processo de transição para uma fase de mais reconhecimento, o que posteriormente possibilitou ao fórum aprofundar o debate sobre violência na Baixada. Mas, nesse período, houve um misto de atividades que focaram na violência e que falavam sobre outros assuntos. O curso de segurança pública com cidadania marcou a entrada de vez do termo segurança cidadã no vocabulário do fórum, demarcando um primeiro posicionamento sobre a postura do grupo frente às discussões da violência. A Carta da Baixada trouxe propostas construídas por várias mãos, o que não possibilitou uma identidade mais marcante. Em 2016, o relatório “Um Brasil dentro do Brasil pede socorro”, mesmo trazendo a desigualdade e os problemas da Baixada para além da violência, demarcou a defesa dos direitos humanos como algo central. Neste mesmo ano, as ações contra o impeachment e o revezamento da tocha da vergonha mostraram o fórum ainda preocupado em debater temas para além da segurança, dedicando, inclusive, boa parte do tempo para isso.

No período entre 2017 e 2019 houve a renovação do projeto Misereor, observa-se um foco maior no debate direto de violações de direitos humanos na Baixada. Inicialmente, a ideia era criar núcleos “de direitos humanos” para encaminhar denúncias em várias localidades da Baixada. Mas esses núcleos se tornaram espaços com outras ações como pré-vestibular, debate sobre mobilidade urbana, ações pró-melhoramento no bairro, dentre outras coisas. Resumindo, a primeira iniciativa ainda enfrentava o medo de discutir a violência na Baixada, as ações dos núcleos não caminhavam para o debate sobre a violência na região. Além do fator medo, falar sobre outros temas também sempre foi uma estratégia de mobilização do Fórum Grita Baixada. É muito mais fácil mobilizar pessoas em um pré-vestibular do que em uma roda sobre as invasões no Gogó da Ema; ou para falar da qualidade do trem em Imbariê do que do histórico dos grupos de extermínio em Duque de Caxias. A metodologia das cartografias sociais ajudou a discutir esses problemas, incluindo a violência. A dificuldade neste processo é que ao focar em outras ações, a tendência era perder a identidade do grupo local com o FGB.

Enquanto isso, no eixo da incidência política, a Frente Intermunicipal de Valorização da Vida (FIVV) não decolava, pelo próprio perfil das prefeituras da Baixada. O grande diferencial neste período foi o documentário “Nossos mortos têm voz“, a partir dele foi possível discutir a violência de Estado e o racismo através das histórias das mães vítimas da violência na Baixada Fluminense. Através do documentário, o FGB se aproximou de outros financiadores como o Fundo Brasil de Direitos Humanos e a Fundação Ford, ampliando, através dos projetos, a discussão sobre racismo na Baixada Fluminense, surgindo assim o projeto Direito à Memória e Justiça Racial. Vemos aqui a metamorfose acontecendo como consequência de uma ação / produto (documentário e exibições) e da conjuntura de violência no Rio de Janeiro, após assassinato da vereadora Marielle Franco.

O trabalho realizado pelo projeto era bem didático, de promoção de espaços de diálogos com a população e na tentativa de reunir jovens dispostos a debater a temática do racismo. Acompanhava de perto pela Casa Fluminense as ações do projeto Direito à Memória e Justiça Racial, ligado ao Fórum Grita Baixada, e o projeto da ONG PROFEC (Programa de Formação e Educação Comunitária). Junto da Casa Fluminense, ambos tinham como foco, no projeto enviado à FORD FOUNDATION, a discussão do racismo e a segurança pública. Em 2018, na Igreja Senhor do Bonfim, em Engenheiro Pedreira (Japeri), foi lançado durante a realização do Fórum Rio, o Boletim “As Juventudes da Baixada querem viver”, organizado pelas três instituições, tratando sobre “a questão da evasão escolar, da baixa taxa de investigação de assassinatos, do direito à memória, das oportunidades para a juventude e do racismo estrutural” (CASA FLUMINENSE, 2018).

No final de 2019, no processo de renovação do projeto da Ford Foundation, houve uma ruptura entre o projeto Direito à Memória e Justiça Racial e o Fórum Grita Baixada. Nesse processo, o grupo se intitulou IDMJR (Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial) e  passou a executar o projeto de forma independente. A IDMJR fez com que os membros do FGB refletissem sobre as dificuldades históricas de inserção da pauta racial no debate público da Baixada Fluminense e no próprio espaço institucional, limites esses que podem ser considerados parte do racismo institucional e estrutural.

Mesmo com a saída da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, o FGB continuou pautando o racismo em suas ações. Antes, além de não fazer essa discussão interna sobre o tema, o projeto Misereor não tinha essa discussão como eixo central. Sendo assim, nem o coletivo de organizações e movimentos antes de 2017 / 2018 fazia essa discussão do racismo, como observamos na ausência dessa pauta nas publicações e ações, nem o projeto Misereor tinha o tema como eixo central, passando o racismo a ser discutido com mais veemência no espaço com o documentário “Nossos mortos têm voz” e depois com o projeto financiado pela Fundação Ford.

As metamorfoses do movimento

As “metamorfoses” do Fórum Grita Baixada tiveram um papel mais central para o grupo na maneira em que se discute violência na Baixada do que as mudanças na conjuntura política e na segurança pública. Diante da lógica do medo e da aproximação da população com um discurso conservador, era mais fácil acreditar que o fórum recuaria em suas ações em 2018, mas não foi o que aconteceu, sobretudo a partir da execução dos projetos. No entanto, não podemos deixar de destacar as transformações na violência, o que gerou novos debates no fórum e a sua própria fundação. Além disso, a conjuntura política colocou a organização mais em num lugar de enfrentamento às práticas governamentais do que de colaboração, o que inicialmente era buscado nos encontros e reuniões com autoridades. O FGB se mostrou, parafraseando Raul Seixas, uma “metamorfose ambulante”, não mantendo “a velha opinião formada sobre” a violência na Baixada.

Dada essa “metamorfose”, é possível dizer que de forma prática e teórica o Fórum Grita Baixada deixou de ser um movimento social e se tornou uma instituição não formalizada do terceiro setor. Ele não é mais o espaço onde apenas se discute a violência e possíveis soluções coletivas para superar os problemas; isso é até feito, mas, no âmbito da execução de projetos, diferentemente do período pós-fundação onde as proposições saíam do grupo (pessoas, movimentos e organizações).

A própria estrutura do Fórum Grita Baixada, com a “equipe liberada” (quem recebe mensalmente para trabalhar no fórum) sendo financiada pelos projetos, fez com que boa parte da dedicação desta equipe (coordenação geral, articulação territorial e comunicação) fosse para as ações que foram acordadas com o financiador. Com isso, o espaço da “coordenação ampliada” tornou-se o momento em que outras ideias e ações poderiam surgir, desde que os membros assumissem a execução das tarefas, pois a equipe contratada tem um conjunto de ações para desenvolver, a partir da gestão dos projetos. No entanto, desde a chegada de novos projetos, para além da Misereor, ficou mais difícil a “equipe liberada” assumir outras ações. Com a pandemia e o esvaziamento do espaço de coordenação ampliada pela ausência de encontros, o FGB passou a se dedicar mais à execução dos projetos. Não estou aqui questionando a efetividade dos projetos, nem a relevância, pelo contrário, o que muda nesse processo é a caracterização do fórum enquanto movimento social.

O Fórum enquanto movimento social encontrou dificuldades ao longo dos anos em discutir a violência na Baixada Fluminense, pois as pessoas esbarram no medo e num campo fluido de ideias, onde vários temas podem ser abordados para mobilizar e aconchegar pessoas e coletivos da região. Quando a equipe de coordenação liberada passa a se dedicar quase integralmente à execução dos projetos, fica mais evidente a pauta da segurança pública e com um perfil progressista que envolve discussões sobre o racismo e a defesa dos direitos humanos, mesmo numa conjuntura mais desfavorável do que no período da fundação do Fórum Grita Baixada.

A mudança na discussão sobre racismo vai além da atuação do fórum, até mesmo nas pesquisas há uma mudança na centralidade dessa discussão. Simões (2011) e Alves (2003) não trouxeram em suas obras o debate do conceito de racismo ao retratar a realidade da Baixada Fluminense. A própria na história contada sobre o processo de ocupação da Baixada, que traz o migrante nordestino como principal responsável pela ocupação do território, não há um debate que racializa esse migrante. Quando comparamos os mapas produzidos pela Casa Fluminense é possível identificar o fator cor como indicador paralelo aos indicadores de desigualdade.

Mapa – Percentual de população preta ou parda em relação ao total de habitantes.

Fonte: Casa Fluminense

O mapa acima revela que a população negra da Região Metropolitana do Rio de Janeiro está em sua maioria nas áreas periféricas, sobretudo na Baixada Fluminense. Quando observamos os eixos Barra da Tijuca e Zona Sul da capital, e Niterói, é possível identificar a predominância de brancos nas áreas mais ricas destas cidades. Isso corrobora a afirmação de que a desigualdade social está relacionada com o racismo. A metodologia utilizada pela Casa Fluminense foi através da soma dos valores percentuais da população de pardos e pretos, conforme definição do IBGE. Sendo assim, com a academia, as instituições e a sociedade evidenciando o debate sobre o racismo, o Fórum Grita Baixada acompanhou também esse processo validando a hipótese que as organizações da sociedade civil, de uma forma geral, vivem numa constante atualização no seu discurso, incluindo nos últimos anos o combate ao racismo enquanto principal bandeira, contribuindo para uma visão diferente sobre a segurança pública em territórios periféricos. Nesse sentido, até mesmo os financiamentos para as instituições e as linhas de atuação foram reformulados a partir dessa demanda interna e externa para debater o tema, tendo como evidência os indicadores de cor / raça que não eram disponibilizados anteriormente quando se abordavam as diferentes políticas públicas, incluindo a segurança.

Perspectivas para o futuro após 10 anos do Fórum

Como lição para outros movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a discussão sobre violência na Baixada não é trivial e passa por estratégias de ação que garantam a segurança dos mobilizadores. É muito difícil juntar pessoas para falarem sobre temas mais diretos, como homicídios, milícias, violência política, ações que mexam com a economia das organizações criminosas, violência do Estado, dentre outras situações que envolvam atores locais. Mas é possível não só fazer ações sobre temas distintos à segurança pública, mesmo relacionando a ausência de políticas públicas a má qualidade de vida da população, é possível falar de segurança abordando o tema do racismo, popularizando a ideia de “necropolítica” e ampliando o imaginário sobre os direitos humanos. Essas discussões foram feitas pelo FGB no âmbito da execução de projetos financiados, principalmente nas exibições populares do documentário “Nossos mortos têm voz”, o que envolve uma equipe menor, uma tomada de decisão mais direta e a necessidade de prestar contas ao financiador. Esse caminho pode ser, a curto prazo, o mais rápido para garantir que esse tipo de assunto seja colocado em pauta na região.

No entanto, esse método enfrenta problemas. A descaracterização enquanto movimento social pode, a longo prazo, fazer com que o FGB deixe de existir caso não tenha mais financiamento. Ao contrário do início da trajetória, em que as ações eram na maioria voluntárias e a participação envolvia mais membros do que a “equipe liberada”, a comodidade da execução por parte dessa equipe e o resultado positivo da gestão de projetos, afastou boa parte da coordenação ampliada e de membros antigos do fórum do processo de execução, tornando-os na maioria “simpatizantes ou conselheiros”, dando este formato, mesmo que informal, de instituição da sociedade civil.

Em 2022, o FGB completou 10 anos com um histórico robusto de ações pela Baixada Fluminense. Essas ações foram reconhecidas publicamente, tanto que o fórum foi indicado pelo mandato dos deputados Waldeck Carneiro e André Ceciliano a receber a Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Atualmente, com a estratégia de informação, de produzir relatórios e boletins, o fórum se prepara para cada vez mais ser visto como um formador de opinião e gerar insumos para o processo de incidência política. Esse tipo de inspiração em organizações da sociedade civil, como a Casa Fluminense, é algo a ser mantido e pode no futuro colocar o fórum como um “player” para o poder público da segurança pública na Baixada, desde que a conjuntura possibilite esse tipo de atuação. A estratégia de mobilização também é necessária para engajar mais pessoas e tentar ao máximo criar vínculos que possibilitem a continuidade do fórum mesmo sem os financiamentos atuais.

Ao falar de futuro, o grande desafio será a sustentabilidade. Ao contrário do passado em que movimentos locais na Baixada mantinham a atuação sem recursos, mesmo que reduzido o alcance, devido o suporte principalmente da Igreja Católica, atualmente esse tipo de ação não é mais prioridade, além da própria Igreja ter reduzido o número de fiéis e a influência de outrora. No formato atual na qual o fórum se transformou será necessário garantir recursos para a execução de projetos ou precisará voltar a suas origens de “fórum” e “movimento social”, entendendo melhor as estratégias para continuar falando de violência, sem perder o foco com a enxurrada de outros temas.

Podemos concluir também que há um vácuo de um movimento que aglutina várias pautas da região, uma espécie de “fórum de lutas da Baixada”. Durante quase uma década, o FGB foi também esse espaço. Por essa ausência e pelo nome escolhido para o Fórum Grita Baixada muitas pessoas acreditavam que este seria o espaço onde os diversos movimentos da região pautaram suas lutas e reivindicações. O não entendimento ou a necessidade de transformar o FGB nesse espaço foi também um entrave durante os anos para um foco maior na pauta da violência. Para o futuro, precisa ficar claro que o Fórum Grita Baixada tem como prioridade a discussão sobre a violência, a partir daquilo que é enviado para os financiadores. Caso contrário, no planejamento é necessário expandir as temáticas com futuros financiadores ou dividir melhor essas ações com a coordenação ampliada. São desafios do presente e do futuro.

Referências

ALMEIDA, Douglas Monteiro de. Como falar de violência na periferia? O Fórum Grita Baixada e os discursos sobre a segurança pública na Baixada Fluminense / Douglas Monteiro de Almeida. – 2022. Orientadora: Palloma Valle Menezes. Tese de Doutorado em Sociologia – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

BRITES, Jurema; FONSECA, Cláudia. As metamorfoses de um movimento social: Mães de vítimas de violência no Brasil. Análise Social, v. 48, n. 209, 2013.

ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Associação de Professores e Pesquisadores de História, CAPPH-CLIO, 2003.

ASSIS, João Marcus Figueiredo. A Diocese de Nova Iguaçu frente à chacina da Baixada Fluminense: memória e identidade. HORIZONTE-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, p. 69-84, 2008.

BRITES, Jurema; FONSECA, Cláudia. As metamorfoses de um movimento social: Mães de vítimas de violência no Brasil. Análise Social, v. 48, n. 209, 2013.

CANO, Ignacio et al. O impacto da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Laboratório de Análise Violência, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004.

CASA FLUMINENSE. Mapa da desigualdade Região Metropolitana do Rio de Janeiro. 2020. Disponível em: https://casafluminense.org.br/mapa-da-desigualdade/. Acesso em 01 jun. 2021.

FÓRUM GRITA BAIXADA. Um Brasil dentro do Brasil pede socorro. Nova Iguaçu, 2016.

FÓRUM GRITA BAIXADA; CASA FLUMINENSE. Carta da Baixada. 2015. Disponível em https://agendario.org/documentos/carta-da-baixada/ Acessado em 01 fev 2020.

FREIRE, Jussara. Problemas públicos e mobilizações coletivas em Nova Iguaçu. Editora Garamond, 2019.

GOHN, Maria da Glória Marcondes. Sociedade civil no Brasil: movimentos sociais e ONGs. Nomadas (col), n. 20, p. 140-150, 2004.

IMPUNIDADE NA BAIXADA FLUMINENSE. 2005. Disponível em:  http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_jg_rj_impunidade_baixada.pdf Acessado em 02 jan 2022.

INICIATIVA DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA RACIAL. SOS Queimados e a luta contra as violações do Estado. 2020. Disponível em https://dmjracial.com/2020/04/25/s-o-s-queimados-e-a-luta-contra-as-violacoes-do-estado/ Acessado em 02 jan 2022.

LANDIM, Leilah; GUARIENTO, Suellen. 2010. Violência e ação coletiva na Baixada Fluminense. Paper apresentado no 34º Encontro Anual da ANPOCS. ST31S1; Mimeo.

RODRIGUES, André (org). Homicídios na Baixada Fluminense: Estado, Mercado, Criminalidade e Poder. Comunicações do ISER, n. 71, ano 37, 2018. Disponível em http://www.iser.org.br/site/wp-content/uploads/2013/12/2018-08-06-publicacao71-iser-WEB. pdf Acessado em 15 jun 2020.

SALES, Jean Rodrigues; FORTES, Alexandre (Ed.). A Baixada Fluminense e a ditadura militar: movimentos sociais, repressão e poder local. Editora Prismas, 2016.

SILVA, L. H. P. da. Hildebrando de Goes e sua leitura sobre História da Baixada Fluminense. Ágora, 21(1), 106-118, 2019.

SIMÕES, Manoel Ricardo. Ambiente e sociedade na Baixada Fluminense. Mesquita: Editora Entorno, p. 1-358, 2011.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *