Guattari: A política como clínica da sociedade

Haverá saídas para o mal-estar psíquico de nosso tempo? Ao compreender outras formas de desejo e enxergar as revoluções moleculares, filósofo francês abriu novos caminhos para a ação transformadora – e redescobriu seu papel terapêutico

Imagem: Josh Janitch
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Por Larissa Drigo Agostinho na Revista Cult

> Este texto é parte da edição 289 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne o dossiê Deleuze e Guattari: Encontros. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

Guattari, ao deparar com as questões de orientação despertadas por sua militância – que visavam, em um primeiro momento, clarificar uma situação de afrontamento de grupos distintos e, em seguida, pensar orientações e estratégias –, explica que, desde que começou a trabalhar na clínica de La Borde, buscava conciliar sua militância e o fato de ser um dos primeiros não médicos a frequentar o seminário de Jacques Lacan. Oscilando entre esses três polos – a prática clínica em La Borde, os seminários de Lacan e o militantismo na extrema esquerda –, ele afirmaria, em 1980, que estava buscando conciliar o inconciliável.

Tudo começou com a tentativa de ir além da psicoterapia institucional e propor uma análise institucional – Guattari recusava uma definição demasiado restrita da psicoterapia institucional. Assim era o espaço da clínica, que se expandia usando a psicanálise para compreender relações “institucionais” das mais distintas naturezas – quer dizer, todas as relações que, por repetição, produzem grupos e relações sociais, portanto em suas mais diversas formas – para analisá-las e transformá-las.

Uma psicanálise que se transforma em uma tática política. Isso vai muito além de afirmar o caráter político da clínica – afirmação muitas vezes vazia, a meu ver. Tratava-se sobretudo de pensar a clínica socialmente, de pensar uma clínica do social, e não uma clínica de indivíduos. Ou seja, não se trata apenas de expor o caráter social do desejo, ou de pôr na conta do social a responsabilidade pelo sofrimento psíquico, mas de pensar em como transformar a vida social abrindo-a ao desejo.

O que Guattari desejava era levar as práticas da psicoterapia e da pedagogia institucional para outros domínios, como o urbanismo e, principalmente, o militantismo no movimento estudantil com o qual estava ligado, como a União Nacional dos Estudantes da França (Unef) e a Mutual Nacional dos Estudantes da França (MNEF): “Além disso, eu pensava que nós não podíamos avançar nessa nova ‘disciplina’ a não ser na medida em que ela se instituiria em conexão com questões políticas mais largas, como aquelas da oposição comunista, da renovação das formas de luta revolucionária etc. Essa tentativa durou até Maio de 1968. Uma ‘grande ilusão’ que não renego. Em certa medida, foi um sucesso incontestável”.

Guattari descreve os encontros organizados pela Federação dos Grupos de Estudos e Pesquisas Institucionais (FGERI) como eventos de uma “fermentação bastante impressionante”, nos quais se cruzavam pessoas tão diferentes quanto Françoise Dolto, Fernand Deligny, François Tosquelles, Jean e Fernand Oury, Roland Dubillard, Maud Mannoni, Ronald D. Laing, David Cooper e mesmo, às vezes, Jacques Lacan, além de estudantes que foram muito ativos em 1968.

Antes de Maio de 1968, Guattari já apontava um grande nível de alienação da classe operária, e afinal os sujeitos políticos do maio francês foram de fato os estudantes, pois a classe operária estava paralisada ou integrada. Ele buscou compreender essa alienação e o processo de integração dos trabalhadores usando conceitos oriundos da psicanálise, mais precisamente de Lacan. Tratava-se de aplicar a distinção entre demanda e desejo ao campo político. O que significa uma demanda no campo político? O que significa “desejar” dentro do campo político?

Quando observamos a teoria lacaniana dos quatro discursos, fica evidente que um sujeito só pode emergir se for capaz de romper o ciclo instaurado pela mediação do saber entre dominador e dominado. O mesmo vale para a relação demanda/desejo, conceitos bem anteriores aos quatro discursos. O desejo surge quando um sujeito rompe com a demanda do Outro ou se recusa a limitar seu desejo à demanda socialmente reconhecível e aceita. Ele se recusa a colocar seu desejo sob uma forma já estabelecida.

Para Guattari, o que está em questão aqui é a emancipação subjetiva, que só se torna possível quando um grupo sujeito é capaz de pôr em questão a necessidade de instituição, de romper com a demanda de instituição. Segundo ele, a tarefa política de uma esquerda extraparlamentar seria destruir os miasmas participativos que intoxicam a classe operária. O que ele chamava de mentalidade sindical ou partidária estava profundamente presente nos espíritos: “Esperamos que as questões se coloquem na urgência, no escândalo. Na verdade, denunciamos, reivindicamos, esperando que o patrão, o ministro, o presidente assumam suas responsabilidades. A legitimidade de seus poderes nunca é colocada em questão”.

O ponto é saber como destruir esses “miasmas participativos que intoxicam a vida operária”, como impedir que se limitem ao trade unionism, ou seja, “impedir o primado da demanda sobre o desejo”. Trata-se, portanto, de pensar a política do ponto de vista do desejo, como ruptura em relação a essa demanda, que não passa de expressão da alienação, desejo de reconhecimento do oprimido diante do próprio opressor – mecanismo que, como Lacan dirá anos mais tarde, faz a revolução girar em torno de si mesma e voltar ao ponto de partida.

Guattari, nos anos 1960, pretendeu redefinir, sob esse prisma, a política: “O conceito de política não é o prolongamento simples da demanda”. Muito ao contrário, a análise da demanda é como um ácido que desencapa o acontecimento para aguçar sua capacidade de ruptura, de tal maneira que ele “possa abrir a subjetividade social ao desejo”. Assim, a política seria essa arte, esse espaço ou grupo capaz de produzir uma subjetividade social aberta ao desejo, de tal forma que ela não cessaria de colocar o poder em questão.

A Maio de 1968 seguiram-se um imenso movimento de recuperação e a diluição de todas as tendências contestatárias pelo aparelho estatal. Uma recuperação das “aspirações de mudança”. O Estado francês foi capaz de acabar com os locais de efervescência e de criatividade “miniaturizando as questões de poder, com um projeto de reforma da universidade, entre outros”. Os governos recorreram e produziram um processo de instauração de “comissões de acordo”, instituindo relações simbióticas entre o Estado e os sistemas de contestação. Era inquietante perceber como o “movimento” era vulnerável.

A questão, nesse momento de escrita de O anti-Édipo (1972), era tentar discernir quais seriam as relações entre, por um lado, o metabolismo do desejo no campo social, o imaginário coletivo e, por outro lado, as estruturas de poder, seus aparelhos de Estado, a pirâmide hierárquica que se reconstitui permanentemente, recuperando todos os sistemas analíticos embrionários, todas as formas de contestação. Guattari entendia, portanto, que as diversas formas de contestação política, como as produzidas a partir de 1968, funcionavam como sistemas analíticos.

Por isso, a análise só terá sentido se deixar de ser a questão de um especialista, de um indivíduo psicanalista, psicólogo ou psiquiatra, ou mesmo de um grupo analítico, porque “todos eles se constituem em formações de poder”.

A análise deve se tornar o resultado de um processo que Guattari chamou de agenciamentos de enunciação analíticos, “que não são compostos por indivíduos, mas que dizem respeito também a um funcionamento social, econômico, institucional, político e micropolítico”. Cita, como exemplo desse tipo de agenciamento, o Grupo 22 de março, que desencadeou o movimento de Maio de 1968 em Nanterre (França), e a Rádio Alice em Bolonha (Itália), da qual fez parte Franco Berardi, o Bifo.

O que está em questão aqui é a invenção de “novas formas de organização política, com conteúdos e formas renovados”. Trata-se também de compreender a relação entre desejo e vida social. Essa análise concerne a elementos que se situam além das pessoas individuais, do lado do socius, mas também de elementos infrapessoais, ao lado dos modos de sensibilidade – e é isso o que Guattari chamou de “maquinismos abstratos”.

Essa preocupação vem da experiência que não é, evidentemente, a do consultório de analista. Guattari conta que, quando se encontra com educadores ou com o pessoal do serviço psiquiátrico – sobretudo aqueles que trabalham no setor público –, a queixa é sempre a mesma: “O que eu posso fazer? A sociedade é o que ela é”. Ele não era dos que ficavam esperando a revolução chegar para resolver os problemas imediatos. O que afirmava é que o processo analítico não é uma técnica particular de análise de grupo, mas pode desbloquear certas lutas políticas e sociais. Guattari dá como exemplo o movimento feminista, que também desempenharia um papel analítico, por ter transformado a maneira como a sociedade percebe a condição feminina. Nas palavras dele, o movimento “introduziu, na maneira como a condição feminina é percebida na França, algo que tocou o conjunto da sociedade”. Todas as classes sociais, portanto.

Assim, como muitos participantes da FGERI também estavam ativamente envolvidos no movimento de Maio de 1968, era perceptível que “transformações microssociais de um novo tipo” estavam se revelando. Guattari as nomeou de “revolução molecular”: iam muito mais longe do que a Federação poderia ter imaginado.

O tempo da análise institucional tinha ficado para trás. A questão agora era compreender a junção entre as revoluções moleculares e a revolução social. Tratava-se de compreender, do ponto de vista teórico e prático, o que estava faltando e o que proibia ou atrasava essa junção. O que impede de se transformarem em uma verdadeira revolução social as revoluções moleculares, as lutas de desejo, como Guattari as nomeava, que iam do movimento feminista, LGBTQIA+ ao movimento negro e se uniam às lutas pelo fim da colonização na África e na Ásia? Transformou-se, portanto, a própria noção do que seria revolução, assim como ganhou novo sentido o termo “revolução social”.

Larissa Drigo Agostinho é doutora em Letras pela Universidade de Paris IV-Sorbonne e pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da USP. Texto originalmente publicado na Cult 273 (set/2021).

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