Shaheen Bagh: muçulmanas contra a xenofobia na Índia

Extrema-direita do presidente Narendra Modi aprovou lei para deportar não-indianos. Mas, surpresa: a resistência surgiu de mulheres de um bairro pobre de Nova Déli, que, unidas aos estudantes, defendem o estado laico e plural

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Por Devika Misra e Catherine Viens, na Revista Lüvo | Tradução de Simone Paz

O partido Bhartiya Janta (BJP, na sigla original), atualmente no poder, na Índia, apresentou uma emenda à Lei da Cidadania de 1955, no dia 11 de dezembro de 2019. A nova emenda fez entrar em vigor a Lei de Emenda à Cidadania (CAA – Citizen Amendment Act), ratificada como Projeto de Lei de Emenda à Cidadania (CAB – Citizenship Amendment Bill), que foi um dos pilares centrais do manifesto do BJP durante as eleições de 2019 — juntamente com sua promessa de criar e fazer cumprir um Registro Nacional de Cidadãos (RNC).

O RNC pretende documentar todos os cidadãos legais do país para poder deportar os imigrantes ilegais. A Lei de Emenda à Cidadania aparenta ser uma inocente intenção de formalizar a cidadania dos requerentes de asilo dos países vizinhos. A pegadinha está no que é omitido: a anistia só é oferecida aos imigrantes não-muçulmanos. Além disso, essa vizinhança foi definida de forma arbitrária, limitando-se apenas ao Afeganistão, Paquistão e Bangladesh, todos estados de maioria muçulmana.

O projeto recebeu críticas de islamofobia, embora a posição do governo tenha se mantido firme em reafirmar que este não é um projeto de lei antimuçulmano. A exclusão dos muçulmanos da redefinição da cidadania nacional não é só inconstitucional, pois introduz a religião como um marcador de cidadania pela primeira vez na história indiana, como também é marcada por visões de um futuro apocalíptico em que o RNC possa discriminar muçulmanos, castas mais baixas (dalits), indígenas (adivasis), trabalhadores imigrantes, pobres e sem-terra. O resultado foi um movimento contrário à Lei de Emenda à Cidadania nunca antes visto, que vem abrangendo a nação inteira, e que gerou um desafio para o projeto de Índia que o BJP almejava.

A ascensão do BJP trouxe o surgimento de políticas autoritárias e totalitárias na Índia. Enquadrado nos fundamentos ideológicos de direita do partido Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), liderado com autoridade pelo Primeiro-Ministro Modi e pelo Ministro do Interior, Amit Shah, ele vem trabalhando na implementação da agenda ideológica Hindutva, projetada pelo RSS.

O RSS é uma facção paramilitar de extrema-direita, fundada em 1925 e presente até os dias atuais, através da qual o Primeiro-Ministro Modi tem feito carreira. O RSS, como facção ideológica do BJP, funciona em uma narrativa de “Hindutva” que dá primazia à ideia de que a Índia é uma nação hindu, contrariando a secularidade constitucional da criação da Índia.

A política Hindutva altera a concepção pluralista da cultura indiana, igualando-a aos valores Hindu-Védicos. A Mussalman, no entanto, continua sendo a outra principal. Esse é um dos fatores que ajudaram o partido a chegar ao poder em 1998 e, novamente, em 2014.

A política Hindutva culmina necessariamente no objetivo final da criação de um “Hindu Rashtra” (Estado hindu), que ataca o caráter secular da Índia e de sua Constituição. Logo, não surpreende que a rejeição às normas e procedimentos constitucionais, bem como os ataques à autonomia dos mecanismos democráticos institucionais, como o judiciário, a polícia e até a comissão eleitoral, tenham sido parte do projeto de governo do BJP. Com a reeleição do BJP em 2019, essa discriminação e demonização do muçulmano indiano se exacerbou.

A região da Caxemira, que anteriormente era o único estado majoritário muçulmano da Índia, teve sua comunicação proibida e seu estado, suprimido. Essas ações podem ser interpretadas como um exemplo perfeito do processo de discriminação e de “estrangeirização” do muçulmano. O julgamento de Ayodhya, que ordenou a construção de um templo hindu em um local onde ficava e foi demolida a mesquita de Babri, foi visto pelos cidadãos muçulmanos como mais uma traição. O fato ajudou e legitimou os rotineiros discursos de ódio de vários parlamentares do BJP, que catalogam o muçulmano indiano de invasor antipatriótico, contra o qual os hindus deveriam se levantar.

Esse projeto de ultranacionalismo tem como alvo todas as formas de pensamento crítico — como ficou evidente em sua perseguição a universidades como a Universidade Jawaharlal Nehru, Universidade de Hyderabad, Jamia Milia Islamia — e encontrou apoio publicitário numa mídia cúmplice.

O mecanismo de repressão do estado tem se utilizado da dicotomia do nacional contra o antinacional para ridicularizar todas as críticas aos seus projetos. A isto, soma-se uma campanha de incitação ao ódio comunitário, o uso de sistemas de repressão da era colonial — por meio das leis de insurreição e censura –, apagões de Internet e apoio à violência contra quem ousar questionar suas motivações, sejam elas por virtude ou por inércia. Portanto, a Lei de Emenda à Cidadania é o emblema da erosão do caráter secular indiano, que definiu, desde sempre, sua identidade em termos pluralistas.

O medo do RNC é da possibilidade de uma total autonomia do governo central para definir o que constitui um prova de cidadania — quando até a tentativa anterior (Aadhar, a Autoridade de Identificação Única da Índia) permanece inválida como prova de cidadania. A Lei de Emenda à Cidadania permite a criação de um precedente que não é apenas antimuçulmano, mas que também destrói a inviolabilidade da Constituição, da Lei e da própria ordem. Além do que, os manifestantes alegam que isso viola o Direito Fundamental à Igualdade, garantido pelo Artigo 14 da Constituição indiana, uma parte concreta de sua estrutura básica, e que nenhum governo pode violar.

O medo que a Lei da Emenda e do RNC causam aumentou com a notícia de que centros de detenção estão sendo construídos dentro do país para prender imigrantes ilegais. Paralelamente, ocorre uma repressão massiva e brutal, pelas mãos da polícia e do Estado, aos cidadãos que protestam — e que, recentemente, atingiram o seu pico nos piores distúrbios comunais do país, na capital nacional de Déli, enquanto o presidente dos EUA fazia uma turnê pela Índia

A resistência a essa lei draconiana tem sido espetacular. Surgiu em todo o país um movimento popular que conseguiu se proteger das lideranças de qualquer partido político ativo para impedir a captura do movimento por seus interesses. Onde a oposição fracassou em articular um conceito alternativo e inclusivo de nacionalismo, fenômenos como Shaheen Bagh, um distrito de classe média baixa, majoritariamente muçulmano, localizado em Déli, montaram uma defesa para a pluralidade da Índia e manifestaram a resistência do muçulmano indiano que rejeita qualquer binário explicativo que lhe possa ser imposto.

Em resposta à violência que a polícia desencadeou na Universidade de Jamia Milia Islamia de Nova Déli, em 13 de dezembro de 2019, manifestações gandhianas começaram a tomar conta de Shaheen Bagh. Centenas de mulheres muçulmanas saíram de suas casas para protestar contra o futuro desumano que a CAA e o RNC anunciam para quem não pode obter documentos. Sob um terrível inverno, o estado fundamentalista hindu foi atingido pela pluralidade do Islã indiano, que recusou o fundamentalismo e adotou metodologias culturais, criativas e pacíficas para registrar sua profunda insatisfação com o Estado.

O BJP enxergava as mulheres indianas muçulmanas como espectadoras mudas, submissas, sem poder de ação. Isso ficou claro ao se projetarem como seus salvadores durante o processo de abolição do Triple Talaq. O Triple Talaq era uma lei de divórcio muçulmana, e o BJP usou sua abolição para vender a ideia de que estariam trabalhando para promover e defender os direitos da mulher muçulmana. Essa passividade atribuída a elas é reforçada em discursos de ódio por alguns parlamentares do BJP contra o muçulmano indiano, já que são vistas como simples úteros férteis, colonizadas pelo Islã para propagar mais muçulmanos na Índia.

É por isso que o Shaheen Bagh representa uma ameaça ao BJP. Ameaça esta que o partido não consegue enfraquecer ou enfrentar porque não havia considerado a possibilidade das mulheres tomarem as rédeas do poder e da capacidade para resistir. A dificuldade de ser forçado a atacar vovozinhas sentadas, em paz, recitando poesia, enfraquece a legitimidade de sua narrativa de ódio.

Esse movimento fez com que nascessem muitos Shaheen Baghs pelo país. Somente em Déli, surgiram umas vinte manifestações do mesmo tipo. Este tipo de protesto criativo ainda articulou uma forma de patriotismo constitucional, onde expressões criativas de solidariedade se fundem com os princípios seculares e informais estabelecidos na constituição. Juntamente com as manifestações estudantis, a causa de Shaheen Bagh trouxe líderes orgânicos como Chandrashekhar Azad, um líder Dalit do Exército Bhim.

A comunidade de Sikh também apoiou e deu festas comunitárias que se tornaram uma forma de manifestação pacífica. Tudo isso poderia ser interpretado como uma convergência das lutas das minorias na Índia. No entanto, a repressão por parte do estado tem sido intensa. A entrada de capangas armados e o espancamento de estudantes e professores desarmados, bem como a depredação de propriedades universitárias na Universidade Jawaharlal Nehru em 5 de janeiro de 2020, uma universidade que tem sido protagonista-alvo da gangue Tukde-Tukde do BJP, é um exemplo relevante.

A gangue Tukde-Tukde faz alusão ao inimigo imaginário fabricado, rotineiramente referido pelo BJP, composto por intelectuais liberais, elites, secularistas e dissidentes que se opõem à agenda do BJP. Com o anúncio das eleições de Déli, três ataques separados foram feitos contra manifestantes contrários à Lei de Emenda à Cidadania; num deles, um homem armado atirou contra civis, durante protestos pacíficos, na frente de mais de 300 policiais.

Essa tentativa de intimidação foi motivada nas campanhas eleitorais do BJP em Déli, nas quais Shaheen Bagh foi lançado como o novo inimigo, e nas quais os líderes convocavam despudoradamente reuniões em massa para atirar em “anti-nacionais”; assim, incentivaram mais dois incidentes envolvendo tiroteios contra manifestantes pacíficos, principalmente mulheres.

O BJP exagerou a mão com a repressão que atacou universidades públicas e protestos pacíficos. A condenação internacional tem sido significativa, com manifestações de apoio organizadas contra a brutalidade do Estado nas universidades e resoluções e protestos anti-Lei de Emenda realizados mundo afora, em solidariedade. Isso se refletiu ainda mais na queda de mais de 20 posições no Índice de Democracia 2019, divulgado pela revista The Economist. As Eleições da Assembléia de Déli, anunciadas em 11 de fevereiro de 2020, provaram, conclusivamente, a derrota dessa estratégia do BJP.

No entanto, a narrativa promovida pelos parlamentares do BJP, de que distritos insurgentes como Shaheen Bagh são espécies de um “pequeno-Paquistão” deixou sua marca na cidade. Houve tumultos comunitários maciços na parte nordeste de Nova Déli, especialmente na área de Jaffrabad-Maujpur, outro local de protesto, onde mesquitas foram queimadas, propriedades saqueadas e houve um alto número de mortes — de ambas as comunidades religiosas.

Vários relatos criticam o modelo Shaheen Bagh e sua má gestão dos confrontos comunitários, enquanto outros interpretam o acontecimento em sua totalidade como um massacre patrocinado pelo Estado contra os muçulmanos no país. Nenhuma explicação parece ser válida, mas o que ninguém pode contestar é o fato de que o clima de ódio que baixou na cidade foi responsável por essa violenta erupção. No entanto, os manifestantes de Shaheen Bagh se recusaram resolutamente a deixar o medo destruir a sua causa. Desconfiam da mídia, da polícia e dos tribunais, mas os protestos continuam vivos.

A dupla formada pela Lei de Emenda à Cidadania e pelo RNC, representa o cerne da discriminação na lista política de Hindutva. Se instituído, com falta de clareza sobre o que constitui documentos válidos de cidadania, afetará severamente os despossuídos, os pobres e aqueles que contestam a supremacia do governo. A construção em larga escala dos centros de detenção, bem como a violência estatal contra manifestantes, especialmente nos estados de Uttar Pradesh e Karnataka, sublinham o compromisso de Shah de “Não voltar atrás” (#NotAnInchBack ou #NenhumCentímetroAtrás).

O primeiro-ministro vinha mantendo um forte silêncio sobre a violência e sobre a inação policial em todo o país, mas acabou tendo de condenar os fatos após os distúrbios em Déli. Contra essa repressão massiva do Estado, existe a resistência dos vários Shaheen Baghs que foram surgindo em todo o país, em rejeição à imposição da agenda Hindutva. Seus chamados de “Hum Dekhenge” (Veremos) e “Kagaz Nahin Dikhayenge” (Não mostraremos documentos) iniciaram um movimento de resistência pacífica e popular que emprega a terminologia gandhiana de solidariedade interreligiosa, mas propõe um modelo alternativo e inclusivo de nacionalismo na Índia.

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