Sete milhões nas ruas contra Trump
Convocados pelo movimento “No Kings”, enormes protestos revelam, em mais de 2 mil cidades, resistência popular ao autoritarismo do presidente. Em Washington, Bernie Sanders ensaia politização: o alvo não é apenas um homem, mas poder econômico que o sustenta
Publicado 20/10/2025 às 17:54 - Atualizado 20/10/2025 às 18:49

Aproximadamente 2.600 eventos, em quase todos os estados dos EUA, foram realizados por uma rede de organizações progressistas, sindicatos, grupos de defesa dos direitos civis na campanha de manifestações batizada de No Kings, neste sábado (18), em protesto contra o governo do presidente estadunidense Donald Trump. Foi a segunda onda de protestos após os atos promovidos por eles em junho.
Praticamente autoexplicativo, o nome vem do slogan “No thrones. No crowns. No kings.” (“Não queremos tronos, não queremos coroas, não queremos reis”, em tradução livre), usado para criticar a ideia de que o mandatário dos EUA se comportaria mais como um monarca do que como um líder eleito num regime democrático.
Dentro deste espectro, diversas demandas e fatos foram citados nos protestos com questões que vão desde as detenções generalizadas de imigrantes realizadas por agentes do governo, muitos deles mascarados ou sem a devida identificação e com legalidade questionável, além do corte agressivo do governo de recursos federais, em especial em áreas como educação e proteção ambiental, as mudanças nos mapas eleitorais fora da previsão formal em estados republicanos (o gerrymandering) e outras inciativas da Casa Branca que evidenciam o autoritarismo de Trump.
Segundo a organização, o total de participantes pode ter chegado a 7 milhões de pessoas em todo o país. Já de acordo com o jornalista de dados e autor do Substack Strenght in Numbers, G. Elliott Morris, a estimativa mediana é de 5,2 milhões de pessoas com um limite de até 8,2 milhões. De qualquer forma, seria a maior manifestação nacional estadunidense desde o Dia da Terra de 1970, em um contexto no qual Trump tem uma aprovação baixa. Conforme o site FiftyPlusOne, que faz a média de pesquisas de avaliação presidencial ponderadas pela qualidade dos institutos, o índice de desaprovação do presidente alcança 54,2% contra 41,7% que aprovam a sua gestão. Mesmo com uma imagem também abalada, o Partido Democrata deve garantir, em novembro, o triunfo nas eleições para os governos dos estados de Nova Jersey e Virgínia, realizadas em anos que não coincidem com o pleito presidencial ou legislativo. No caso da Virgínia, um triunfo ainda mais significativo por se tratar um estado governado por um republicano.
A dimensão dos protestos, além de chegar a casa dos milhões com eventos grandiosos nas grandes cidades, como Nova York, Washington e Chicago, contou com eventos numerosos e pulverizados em boa parte do país. O Crowd Counting Consortium, um projeto conjunto da Harvard Kennedy School e da Universidade de Connecticut que compila relatos de protestos e outras manifestações políticas aponta que já houve, até agora, mais de 29 mil protestos políticos desde a segunda posse de Donald Trump, sendo que durante o mesmo período de 2017, em seu primeiro mandato, houve pouco mais de 8 mil protestos.
Os sinais das ruas mostram que, se existe uma radicalização à direita e uma tendência autoritária por parte do presidente dos EUA ainda mais forte do que na sua passagem anterior pela Casa Branca, começa a se desenhar também uma resistência maior e mais visível.
A resposta de Trump e de seus aliados
As manifestações foram pacíficas e pouquíssimas detenções foram registradas em vista da presença massiva de manifestantes. Mesmo assim, Trump resolveu responder de forma agressiva. No sábado (18), postou nas redes sociais um vídeo produzido com a ajuda de inteligência artificial usando uma coroa e pilotando um jato com a inscrição “King Trump”, despejando fezes em manifestantes.
A peça escatológica usava ainda a música “Danger Zone”, de Kenny Loggins, que integra a trilha sonora do filme Top Gun. Nesta segunda-feira (20), o músico escreveu em um comunicado afirmando que não autorizou o uso de sua música para o vídeo. “Ninguém pediu minha permissão, o que eu teria negado, e solicito que minha gravação no vídeo seja removida imediatamente”, disse.
Depois da postagem, no domingo, quando perguntado sobre as manifestações, o republicano foi taxativo: “Acho que é uma piada”, disse aos repórteres. “Eu olhei para o povo – eles não são representativos deste país. E eu olhei para todos os novos sinais … Eu acho que foi pago por [George] Soros e outros lunáticos radicais de esquerda”, continuou, utilizando uma das teorias conspiratórias preferidas da extrema direita local.
Para a historiadora Ruth Ben-Ghiat, a resposta mostra um pouco da “psicologia dos autocratas”. “Em primeiro lugar, os autocratas não reconhecem quaisquer limites ao seu poder e também não reconhecem quaisquer limites entre o bem público, as coisas que acontecem na esfera pública e as suas próprias necessidades pessoais, e é por isso que transformam o governo num veículo para a satisfação dessas necessidades pessoais e privadas, incluindo necessidades financeiras e de poder”, pontua.
“Eles não são capazes de ver os protestos contra o seu poder em termos políticos, à distância, em termos estratégicos”, prossegue. “É uma afronta pessoal e merece uma resposta pessoal, e é por isso que ele fez o vídeo dele, o grandioso e todo-poderoso piloto de bombardeiro, capaz de infligir uma espécie de desdém, desprezo e escárnio às pessoas que protestavam contra ele.”
Mas a atitude também revela uma tática muito utilizada pela extrema direita: o diversionismo. Em vez de se debater o tamanho e a profundidade das mobilizações, o assunto passa a ser a inadequação do mandatário representada pela sua resposta escatológica, buscando-se diminuir a importância do evento.
Naturalização do absurdo
Perguntado, o vice-presidente JD Vance não viu nada de errado no vídeo e o defendeu, dizendo que achava “é engraçado”. “Você pode negociar de boa fé enquanto também se diverte um pouco com alguns dos absurdos das posições dos democratas”, disse ele.
Aqui, há outros dois aspectos. Primeiro, a tentativa de normalizar o absurdo, que também é a tônica desse segmento político, com tentativas recorrentes de alargar o limite do possível e naturalizar seu extremismo como se fosse parte do jogo político normal.
E JD Vance não está sozinho nessa jornada. O presidente da Câmara, Mike Johnson, chamou os protestos de “manifestações de ódio à América”, compostos inteiramente pela “ala pró-Hamas” e antifa. Já o secretário do Tesouro, Scott Bessent, afirmou que as manifestações envolveriam “os mais desequilibrados do Partido Democrata”. A secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, foi além: “O principal eleitorado do Partido Democrata é composto por terroristas do Hamas, imigrantes ilegais e criminosos violentos”.
Para o Nobel de Economia Paulo Krugman, tais alegações “eram todas evidentemente absurdas”, mas fazem sentido quando se observa “as estratégias de burocratas individuais do MAGA para lidar com Aquele Que Deve Ser Obedecido”, o segundo aspecto que merece atenção na reação dos republicanos, não só do entorno do presidente.
Em seu Substack, o economista menciona o trabalho do cientista político Xavier Márquez, que apontou como as autocracias constroem um culto à personalidade em torno de seu líder, ficando sujeitas a uma “inflação de bajulação”. “Eis como funciona. Os lacaios e cortesãos do governante acreditam que devem elogiá-lo até as nuvens, provando sua lealdade oferecendo hinos à sua sabedoria, caráter e habilidade no golfe. E devem aumentar a aposta continuamente”, aponta. “Como você demonstra sua lealdade? Pagando o preço da humilhação. Quanto mais grotescamente exagerado for o seu elogio, mais crível ele será como sinal de apoio ao Querido Líder.”
Trump não está sozinho
Mas o presidente dos EUA não está sozinho em seu sonho monárquico. E aqui não se trata dos aduladores que o cercam dentro e fora da burocracia estatal, e sim de pessoas que representam interesses econômicos poderosos e que não podem ser esquecidas por conta de sua cooperação com o governo dos Estados Unidos e sua versão cada vez mais autoritária.
Se a figura de Trump como “rei” funciona no sentido da disputa política, o trono é compartilhado, como lembra, em seu discurso publicado no CounterPunch, o senador Bernie Sanders. O parlamentar destaca que “este momento não é apenas sobre a ganância de um homem, a corrupção de um homem ou o desprezo de um homem pela nossa Constituição. Trata-se de um punhado das pessoas mais ricas da Terra que, em sua insaciável ganância, sequestraram nossa economia e nosso sistema político, a fim de enriquecer às custas das famílias trabalhadoras em todo o país”.
“Estou falando de Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e os outros multibilionários que estavam sentados logo atrás de Donald Trump quando ele tomou posse – os mesmos bilionários que financiaram sua campanha, que lhe concederam presentes e que viram enormes aumentos em sua riqueza e poder desde que Trump assumiu o cargo”, pontua Sanders.
Este é um sentido importante do ponto de vista de uma leitura política do que significou o No Kings e daquilo que se prepara adiante. “Estou falando de uma classe bilionária que acredita que eles têm o direito divino de governar, e que não só querem incentivos fiscais maciços para si mesmos, mas que rejeitam qualquer forma de responsabilidade ou verificações em seu poder”, diz Sanders, em um retrato que vale para os EUA e também para diversos outros países, inclusive o Brasil.
O senador cita, por exemplo, o fato de bilionários pagarem menos impostos do que a maior parte da população, refletindo uma injustiça tributária também presente na realidade brasileira. A consciência de que, a despeito dos governos de turno, existe uma classe, pequena e poderosa, que trabalha o tempo todo para direcionar recursos para si às custas do resto da sociedade é algo que não pode passar batido, até porque, sem isso em conta, não é possível analisar o tabuleiro político.
Trump não é um rei solitário (ainda que seja solipsista em boa parte do tempo) divide o seu pretenso reinado com alguns poucos que não querem os mesmos holofotes (com exceções à regra, como Elon Musk). E estes já mostraram, em mais de uma oportunidade e lugar, que, para eles, democracia é só um conceito vazio à espera de um significado de ocasião que lhes tenha valor. Por isso, e não só, precisam e devem ser cobrados. Assim, o No Kings pode se constituir não apenas no grito contra um presidente, mas um alerta sobre as estruturas de poder econômico que sustentam e se beneficiam de regimes autoritários de fato ou de direito.
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