Por que o Líbano também diz basta!

Primeiro ministro renunciou ontem, mas gesto não parece capaz de encerrar revolta. População reage contra imposto regressivo, cortes nos serviços públicos e sistema político que aliena os cidadãos, ao dividir poder entre partidos religiosos

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Por Nizar Hassan, na ROAR Magazine | Tradução: Inês Castilho

O Líbano passou a viver, na última semana, uma revolta sem precedentes – tanto em escala como em intensidade – contra a classe governante do país. O que teve início como um modesto protesto na quinta-feira, 17 de outubro, transformou-se rapidamente em grandes manifestações de massa. Nos últimos dias, elas cresceram e se transformaram no maior movimento de protesto na história do país. Estimativas sobre número de pessoas que saíram às ruas no domingo seguinte (27/10) em todo o país variam de 1,2 a 2 milhões de pessoas, numa nação com 6 milhões de habitantes.

A magnitude do movimento decorre principalmente do envolvimento popular maciço e espontâneo. O povo não só encheu as grandes praças do centro de Beirute, retomando-as depois de terem sido transformadas, nos últimos 30 anos, em espaços gentrificados exclusivos para os ricos, mas também se mobilizou localmente. A certa altura, os protestos estavam acontecendo simultaneamente em mais de 60 lugares diferentes, incluindo a maior parte das grandes cidades.

O poder dessas mobilizações tem sido arrebatador.

Uma greve geral – embora não abrangente, já que muitos empregadores não permitem que seus funcionários participem – vem abalando a economia e as instituições do país desde a última sexta-feira (25/10). Contudo, não é uma greve liderada por sindicatos, como se poderia esperar. Ao contrário, é imposta por manifestantes que bloqueiam as principais estradas do país, impedindo a maioria das atividades econômicas e dando aos trabalhadores uma desculpa para juntar-se à greve e às manifestações.

Como se poderia esperar, as demandas são variadas; no final das contas, trata-se de uma revolta popular em que a participação, em sua maior parte, é motivada pela iniciativa espontânea de cidadãos, e não por qualquer esforço de organização. No entanto, todos os manifestantes parecem concordar com algumas exigências básicas: a renúncia do atual Conselho de Ministros, a formação de um governo independente dos partidos que estão no poder, de modo a evitar um colapso econômico iminente, e eleições antecipadas.

A classe política tem lutado para frustrar a revolta. Primeiro, os partidos tentaram minimizar sua importância. Depois alguns deles tentaram cooptar o movimento, encorajando seus filiados a participar dos protestos e influenciar em sua narrativa, especialmente fora de Beirute, mas também na emblemática praça Riad al-Solh, na capital.

Embora o governo logo tenha desistido de tentar conter o levante por meio de repressão policial, ele destacou o exército na tentativa de acabar com os numerosos bloqueios de estradas. Seu raciocínio é que mesmo um milhão de manifestantes no centro de Beirute não atrapalham tanto a governança e a acumulação de capital quanto a obstrução do fluxo de mercadorias e trabalhadores pelo país.

Qual a razão para o levante ocorrer agora?

A revolta começou na tarde de quinta-feira com uma chamada para o protesto por LiHaqqi – um movimento político progressista e estruturado horizontalmente com origem numa campanha popular nas eleições parlamentares de 2018 – e por alguns indivíduos. O país havia tomado conhecimento de que o Conselho de Ministros aprovara uma série de tributos regressivos, especialmente uma estranha taxa equivalente a US$ 0,20 em cada primeira ligação diária pelo WhatsApp, que poderia chegar no máximo a seis dólares mensais.

Os ministros não poderiam ter aprovado um tributo mais regressivo, pois os libaneses, em especial as pessoas da classe trabalhadora, contam com o whatsapp como um meio acessível de comunicação, já que os serviços de telecomunicação são muito caros e pouco confiáveis.

Duas horas após o primeiro chamado, o protesto havia reunido apenas umas poucas centenas de participantes, mas o bloqueio da principal ponte de Beirute despertou o interesse da mídia e as notícias da ação espalharam-se rapidamente pelas esquinas do país. Depois de marchar por vários bairros de Beirute, o protesto voltou a seu ponto inicial, a praça Riad al-Solh, agora com a adesão de outros milhares de manifestantes.

Contudo, este não é um levante contra a tributação de ligações por whatsapp; isso foi só a gota d’água. O imposto permitiu expor a verdadeira face da elite política do país e sua guerra de classes de cima pra baixo. Além disso, os dias anteriores ao protesto já haviam demonstrado a profunda incompetência da elite no governo do país.

Quatro dias antes de a revolta começar, incêndios haviam tomado várias regiões do Líbano, acabando por destruir em dois dias mais áreas florestais do que as que são perdidas em queimadas num ano inteiro. O Estado libanês correu atrás do apoio do Chipre, da Jordânia e da Grécia, que enviaram aviões de combate a queimadas – enquanto os helicópteros libaneses antiincêndio vinham sendo mantidos no solo por anos, em razão da incompetência das autoridades para conseguir recursos para sua manutenção.

Enquanto as pessoas se reuniam em iniciativas espontâneas de solidariedade e enviavam apoio aos bombeiros voluntários, alguns políticos viram uma oportunidade para incitar a divisão. Um membro do partido político de direita Movimento Patriótico Livre, o maior no parlamento e no ministério e conhecido por uma retórica sectária que usa imigrantes e refugiados como bodes expiatórios, popularizou uma teoria da conspiração que tem como alvo a população cristã no distrito de Chouf, localizado província de Monte Líbano.

O fracasso ao lidar com os incêndios, combinado com a aprovação dos impostos regressivas fez explodir a frustração que muitas pessoas sentiam com o governo. Lembrou à população que vive num país governado por elites incompetentes que não só fracassam na condução do governo, mas principalmente procuram ativamente dividir e empobrecer o povo. A semana trouxe à tona o pior da política libanesa e o melhor de seu povo.

A ascensão dos protestos anti-establishment

Nos últimos oito anos, o país viu surgirem muitos movimentos anti-establishment, a começar pela participação libanesa na Primavera Árabe, o movimento de 2011 para “derrubar o sistema sectário” cuja principal conquista foi popularizar a percepção e a retórica de que os vários partidos libaneses no governo são sócios no crime; e que o povo pode tomar posições coletivas contra todos ao mesmo tempo.

Antes disso, o país havia testemunhado em 2005 a denominada “Revolução do Cedro”, que levou ao fim do regime sírio de ocupação do Líbano depois do assassinato do ex-primeiro ministro Rafik Hariri. Ao invés de unir o povo, contudo, a Revolução do Cedro dividiu o país em dois campos: um pró-Síria e outro pró-Ocidente.

O movimento de 2011 foi talvez o primeiro a colocar claramente num só cesto a elite governante de ambos os campos, e qualificá-los de inimigos do povo. Movimentos contra a prorrogação dos próprios mandatos pelos parlamentares, em 2013 e 2014, reforçaram essa retórica. Então explodiu, em 2015, num movimento anti-establishment alimentado pela incompetência do governo, desta vez na gestão de resíduos.

Após 2015, o ativismo anti-establishment tornou-se mais naturalizado, e gente de todo o país aderiu ao que é entendido como “sociedade civil”. Essa sociedade civil foi testada regularmente nos três anos que se seguiram; das eleições municipais de 2016 às eleições da Ordem dos Engenheiros em 2017 e, mais importante, nas eleições parlamentares finalmente realizadas em 2018.

Grupos e candidatos que se opõem à elite política fizeram campanha na maioria dos distritos, mas apenas uma cadeira parlamentar foi conquistada: a deputada Paula Yaacoubian está em Beirute. Este foi o primeiro momento em que essa luta anti-establishment foi levada à esfera eleitoral nacional, e nada expressa e define melhor o estado da política nacional libanesa do que as eleições parlamentares.

Tendo esses fatos cumulativos como pano de fundo, 2019 começou com protestos contra os orçamentos de “austeridade” propostos pelo governo. Foram liderados por grupos de esquerda e categorias diretamente afetadas pelos cortes salariais do setor público. Nos meses seguintes, Beirute testemunhou uma série de protestos, frequentemente organizados por grupos de ativistas e outras vezes por influenciadores das mídias sociais.

A essa altura, todas as desculpas que os apoiadores dos partidos sectários apresentaram em favor de seus líderes haviam perdido a validade. Enquanto o Movimento Nabih Berri’s Amal, o Partido Socialista Progressista Walid Jumblatt e o Movimento do Futuro Saad Hariri são considerados os chefões da megacorrupção que caracteriza o sistema pós-guerra civil, o Hezbollah e o Movimento Patriota Livre afirmam-se recém-chegados ao palcoo político e, portanto, não ser culpados pela situação atual.

Contudo, esses dois partidos mostraram nos últimos anos que, a despeito de suas justificativas, não estão seriamente empenhados em acabar com a corrupção e más práticas políticas. Os partidários de todos esses grupos estão agora procurando justificativas.

Paralelamente à desilusão e à escalada do sentimento anti-establishment, os últimos anos caracterizaram-se também por uma séria crise decorrente de um modelo econômico improdutivo, injusto e insustentável. As reservas de moedas fortes do país, elemento chave para a manutenção do modelo, vêm se deteriorando.

O crescimento da economia também estagnou, e os salários – especialmente os do setor privado – estão paralisados em níveis que impedem a maioria de manter uma vida segura e com algum conforto. A desigualdade econômica também atingiu novos extremos, fazendo do Líbano um dos países mais desiguais em termos da distribuição de salário e renda.

Um quarto da renda nacional foi, entre 2004 e 2005, para o 1% mais rico, e 0,1% das contas bancárias soma 20% do total de depósitos. Na ausência de qualquer política progressista de redistribuição, isso foi traduzido como os ricos ficando mais ricos e os pobres se tornando mais pobres, e uma autodenominada “classe média” colocada numa situação de extrema precariedade.

A crise só se tornou notícia nos últimos dois anos, quando ficou claro que o aumento da dívida pública havia se tornado insustentável, em razão dos altos déficits orçamentários causados principalmente pelo peso dos juros.

O governo optou pela clássica solução neoliberal. Ao invés de reformar o sistema tributário e as políticas monetárias que atualmente favorecem setores rentistas, às expensas de seus pares produtivos, escolheu colocar o peso nas famílias dos trabalhadores.

Enquanto o orçamento de 2019 criou uma nova faixa tributária, taxando em 25% as empresas e indivíduos com ganhos acima de 150 mil dólares por ano, o imposto sobre bancos e empresas financeiras foi mantido em 17%. Isso significa que um banco que gera 4.000 vezes mais receita do que uma pequena fábrica paga atualmente 8% menos de imposto de renda.

Os impostos regressivos propostos para o orçamento de 2020 expuseram ainda mais o governo e deixaram claro quem a elite serve e quem ela visa atingir.

O significado da revolta

O levante atual deveria ser levado a sério por várias razões. Primeiro e mais importante, porque gerou uma coalizão de famílias pobres, de classe média e mesmo de classe alta – em termos de nivel de renda – num único movimento contra o establishment.

Membros desses grupos sociais, que antes raramente interagiam, estão agora lado a lado cantando slogans e levantando os punhos; estão juntos em seus vários modos de expressar-se e encontrando maneiras de administrar as questões em torno das táticas de contenção que antes dividiam os protestos, como por exemplo os tumultos, a violência antipolicial e o bloqueio das estradas.

Durante muito tempo, o bloqueio de estradas foi percebido por muitos como um método de protesto agressivo, usado principalmente pelos pobres ou pessoas percebidas como “bandidos”, em oposição aos ativistas anti-establishment – em sua maioria com educação universitária, que evitavam essa tática na tentativa de não perder o apoio das pessoas que queriam chegar a seus destinos.

Hoje, contudo, o bloqueio de estradas é a ação que está mantendo o poder dessa revolta. Trata-se de um método extremamente poderoso para desestabilizar o sistema econômico, na falta de ação dos sindicatos. O movimento sindical foi submetido a repressão e cooptação durante décadas, a ponto de as organizações sindicais, tanto do setor público quanto do privado, serem neutralizadas e, em alguns casos, voltarem-se contra os próprios trabalhadores.

Isso, junto com a transformação econômica que enfraqueceu os direitos trabalhistas e a capacidade de organização na ordem do pós-guerra civl, criou um vácuo na sociedade civil que debilitou o poder dos movimentos de protesto e limitou suas estratégias. O levante atual encontrou uma resposta para essa fraqueza por meio do bloqueio de estradas.

Ao invés de os próprios trabalhadores se arriscarem em greves sem o apoio dos sindicatos, num país com quase nenhuma proteção ao trabalho, o bloqueio das estradas está oferecendo a justificativa necessária para a maioria ir às ruas. É de se esperar que esse método desempenhe um papel chave nos movimentos de protesto de massa do futuro no país. Seus organizadores estão aprendendo sobre o que parece ser um caminho tático mais poderoso que outras ferramentas de e advocacy e campanhas…

A revolta é também altamente significativa por ter criado uma situação que tem sido chamada “o fim da guerra civil”, na qual as várias comunidades religiosas participam do levante e demonstram profundo desprezo pelo sectarismo.

A guerra civil libanesa durou 15 anos e acabou em 1990, mas seu sistema político ainda é dominante. Partidos políticos baseados em filiação sectária controlam a política e mantêm um sistema clientelista profudamente enraizado, no qual os direitos dos cidadãos ao trabalho e aos serviços tornou-se um privilégio de acesso garantido em troca de lealdade política.

Os vários partidos sectários tentam maximizar sua parcela de recursos do Estado e canalizá-la para seu próprio povo, seus aliados comerciais e, em menor grau, a seus eleitores. Num modelo de “democracia de sociedade”, de compartilhamento do poder, isso criou um sistema extremamente resistente em termos de adaptabilidade e abertura a mudanças. Implica também uma administração pública profundamente corrupta e um modo de governança econômica tendencioso, voltado para a elite econômica de cada grupo religioso.

As linhas do conflito político são, portanto, traçadas verticalmente entre grupos sectários, ocultando o real conflito de interesses existente entre os membros de cada grupo com base em sua origem de classe. O sectarismo tem sido a melhor vacina do sistema contra o surgimento de políticas de classe; e a oposição a ele pode oferecer uma oportunidade de trazer de volta o interesse material e de classe como principais fatores na divisão política.

As linhas do conflito político giraram agora em 90 graus, mostrando em todos os grupos religiosos um descontentamento semelhante com seus próprios representantes no poder. Ou seja, oponto os que estão na base aos que estão no topo. A participação maciça no levante, assim como as histórias compartilhadas pelos manifestantes sobre o desafio a suas próprias afiliações religiosas, provam que quem votou nos partidos políticos do establishment em 2018 está agora exigindo sua saída.

O envolvimento popular nas manifestações, bem como sua natureza altamente descentralizada, oferecem também uma enorme oportunidade para a construção de políticas progressistas no futuro.

As redes de pessoas que se mobilizam explodiram as bolhas de ativistas “profissionais” e envolveram os chamados “cidadãos comuns”, isto é, as multidões que foram alienadas da política pela combinação de um sistema político podre e uma economia capitalista clientelista. Movimentos e grupos que se organizam hoje – incluindo o LiHaqqi, que procurou adotar um modelo de envolvimento popular e horizontal baseado na democracia direta – não poderiam ter oportunidade melhor para expandir seu alcance, um objetivo extremamente necessário para qualquer contestação política séria no futuro próximo e no longo prazo.

O sucesso desta revolta e suas consequências políticas são altamente dependentes da coordenação desses movimentos e seu apoio a ações populares e espontâneas.

Uma vitória do povo, que viria por meio da renúncia do Conselho de Ministros, eliminaria o sentimento de desesperança política que domina a população há muito tempo – e mais intensamente desde que as eleições de 2018 trouxeram de volta ao poder os mesmos partidos. É tão necessária para a psicologia política quanto para poupar as pessoas da miséria de lidar com o custo da crise econômica, e romper as barreiras para uma representação política independente.

Por outro lado, o enfraquecimento da classe dominante nesta era de crise econômica não significa que novos monstros não venham a surgir. Os populistas neoliberais e de direita irão tentar concentrar-se na corrupção, nos imigrantes ou na própria democracia como a fonte de todo mal, procurando distrair as pessoas da guerra de classes que os poucos estão travando contra os muitos.

Esses grupos tendem com frequência a deter os maiores recursos, e são os capitães que dirigem as populações raivosas lentamente em direção ao precipício.

Essa é a razão por que grupos progressistas e de esquerda precisam usar o momento atual para levar aos ouvidos das pessoas uma narrativa concentrada em justiça econômica, social e ambiental, e canalizar a raiva em direção àqueles que deixaram o país afundar em dívida e sofrimento sob um capitalismo clientelista e a divisão sectária.

Ñão são apenas os cidadãos libaneses e a classe trabalhadora que seriam beneficiados por uma virada, mas também todos os grupos marginalizados, inclusive os trabalhadores refugiados e imigrantes. O destino de tantos depende daqueles que podem aproveitar este momento para dar um salto revolucionário na natureza da política libanesa.

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