E a crise do neoliberalismo chega à Colômbia

Um milhão enfrentam nas ruas a privatização da Previdência e a contrarreforma trabalhista. Feministas, indígenas, artistas, LGBTSs e outros atores aderem e ampliam pautas do protesto. Governo, atônito, vê popularidade despencar

Camilo Rozo/El País
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Por Juan Esteban Lewin, em La Silla Vacia | Tradução: Rôney Rodrigues

Um ano, três meses e duas semanas após tomar posse como Presidente da Colômbia, Iván Duque enfrenta o maior desafio de seus governo depois de um dia com tantos eventos que parece um ano.

Com esse dia, o país entra em um campo de ansiedade que ainda não é, pelo menos hoje, comparável com os recentes protestos ocorridos no Chile e na Bolívia, inspirações para as marchas que reuniram centenas de milhares de manifestantes ontem, mas em compensação foi muito forte frente a realidade do país.

É o maior desafio e, provavelmente, o mais difícil de solucionar porque a fragilidade e impopularidade de seu governo – pelo que mostram as pesquisas e pelo o que o dia de ontem, com marchas e panelaços sem precedente na história recente da Colômbia, deixou patente – agora enfrenta uma cidadania empoderada com a qual é difícil negociar, afinal, não há lideranças claras nem reivindicações únicas, correndo o risco de dar as costas a população e a seu eleitorado.

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Uma marcha grande, diversa e inicialmente tranquila

A marcha de ontem nasceu de uma convocatória tradicional, das centrais de trabalhadores, para uma greve nacional, mas cresceu feito espuma com outros movimentos sociais, pessoas sem trajetória ativistas e, inclusive, “manifestantes de primeira viagem”, que nunca participaram de marchas, mas que decidiram somarem-se a essa, seja pela moda, pela rejeição a Duque ou mesmo porque era uma marcha com uma convocatória tão ampla que quase qualquer um poderia encontrar razão para sair.

Isso as levaram a não serem uma habitual manifestação de movimentos sociais, como são as 1º de maio, e a serem maiores, como as que acompanharam o plebiscito de outubro de 2016 [que renegou o acordo de paz entre governo e Farc], e, seguramente, as mais massivas desde as marchas contra as Farc em 2008.

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Também foi diferente a atitude que, inicialmente, teve a Polícia: pouca vigilância, zero choques; por exemplo, em nossa cobertura ao vivo contamos que desde as 13h em Medellín, “os dois mil uniformizados não estão ao redor dos manifestantes, mas sim cuidando das estações de Metrô e parados em ruas paralelas. Um helicóptero sobrevoa, também vigiando a distância”.

O mesmo se passava em Neiva, Barranquilla, Popayán e Bogotá, onde Duque esteve primeiro em um congresso da Corporação Excelência em Justiça e, depois, no Posto Unificado de Comando para coordenar a forma de lidar com as marchas em todo o país.

Juan Barreto/AFP

Por isso, era uma marcha que reunia vozes de todos os lados, mas, embora seu volume colocasse pressão sobre um presidente com baixa popularidade, não tinha bandeiras facilmente identificável nem que emocionasse as pessoas; e a um governo com “choques intestinais”, criticado por aliados políticos e com grandes incertezas quanto a sua agenda legislativa, não gerou dores de cabeça por violência e desordem pública.

Mas, a medida que se passava o dia, as coisas foram mudando, dando lugar a situações de violência em muitas cidades, que deixou o ambiente fervendo e, inclusive, uma sensação de ausência de governo. Sensação essa que já afeta todo o país e pode colocar Duque contra a parede se ele não conseguir interpretar adequadamente o momento.

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Em todo o caso, deixou Duque com um problema adicional: como enfrentar os surtos de violência e vandalismo, ainda mais em situações críticas como a de Cali [que decretou toque de recolher] ou as que se passavam no centro de Bogotá e em Suba que, pela angustia e incerteza, afetam a qualquer mandatário.

E agora?

Raúl Aborleda/AFP

A jornada de ontem foi fechada com imagens de saques, incêndios e, até mesmo, com disparos em Cali; houve um panelaço convocado pelas redes sociais e que se estendeu rapidamente por Bogotá, sendo, inclusive, replicado em outras cidades como Medellín, Bucaramanga e Barranquilla. Um panelaço sem precedentes na Colômbia, que fez com que a jornada de protestos durasse mais de 12 horas, o que, possivelmente, somou aos protestos muita mais pessoas do que as marcharam reuniram.

Essa reação ajudou a endossar que ontem as marchas foram cívicas e pacíficas e a dar mais força às reivindicações contra Duque: houve até policiamento em frente a sua casa, ao norte de Bogotá.

Como na Colômbia não são usuais os panelaços, é difícil avaliar a força e o significado de ontem. Mas a forma orgânica como cresceu mostra que, pelo menos em Bogotá, a rejeição a Duque é generalizada. E não é surpreendente: é uma cidade em que o candidato que apoiou o uribismo ficou em quarto na disputa para a prefeitura em 2015 (Pacho Santos, com 12% dos votos) e nas desse ano (Miguel Uribe, com 13,5%), onde ganhou Claudia López, uma forte crítica ao uribismo. Além disso, em 2018, Duque perdeu na cidade no primeiro turno, ficando em terceiro lugar com menos de 27% dos votos e, também, no segundo turno, com 41%.

Mas essa não é uma questão só de Bogotá, afinal, no reduto uribista de Medellín as marchas também foram exitosas – inclusive, houve também panelaços por lá e em outros lugares como Pereira, o que reforça a difícil situação de Duque.

Raúl Aborleda/AFP

A confusão é gerada pelo que fazer quando as reivindicações incluem pautas como críticas a mineração em Bucaramanga até outras como posicionamentos contrários a resolução que regula a pesca de tubarões em Medellín, contra a economia criativa, passando pela proteção dos líderes sociais, pelo cumprimento dos acordos com a Farc e com os camponeses, pelo direitos da população em situação de rua e por um país “onde todos nos encaixamos” (o que parece representar uma ampla demanda por equidade).

De um lado, era claro que o Presidente era o alvo da insatisfação: ainda que os manifestantes criticasse diferentes aspectos, o viam como o causador delas, além do seu “o você está falando, cara?” [resposta a um jornalista que pediu sua opinião sobre os bombardeios das Forças Armadas, no sul do país, que mataram oito crianças colombianas] mostrou para muitos sua desconexão com a realidade e sua indolência.

O drama é que não surgiu um representante daqueles que saíram às ruas ontem e, por isso, Duque enfrenta um desafio semelhante ao que enfrentou Juan Manuel Santos na hora de negociar com o “Não” após o plebiscito de 2016, [forças contrárias ao acordo de paz], mas sem a equivalência de um Uribe.

Por isso, a situação é mais parecida ao que aconteceu na França, com Emmanuel Macron obrigado a negociar com os “coletes amarelos”: não havia com quer falar e, quando conseguiu alguns representantes, muitos manifestantes não os reconheceram como seus líderes.

O comitê organizador da greve, formado essencialmente por sindicatos, personalidade públicas e pela bancada de esquerda, pediu uma reunião imediata com o presidente, sob ameaça de manter a mobilização social se não forem recebidos, abrindo, portanto, uma porta para representarem o papel de lideranças das marchas.

No entanto, em seu discurso, o presidente Duque não fez nenhuma referência a esse possível encontro, apesar de ser uma ocasião propícia para aceitá-lo, concretizando sua ideia de diálogo social. Inclusive, se a reunião se realiza, não será fácil Duque sair bem dela.

Por um lado, parece não haver muita margem para negociação.

Primeiro, porque ele já entregou parte do que poderia negociar: nos últimos dias anunciou que se vai se opor ao artigo 44 do orçamento das universidades, que possibilita ao governo retirar recursos da Educação para pagars entenças judiciais contra o Estado – ponto de grande crítica dos movimentos que convocaram os protestos – e rechaçou propostas controversas elaboradas pelos seus próprios aliados, como aumentar a contribuição dos trabalhadores para a Previdência e baixar o salários mínimo para os menores de 25 anos.

Segundo, porque em muitos pontos seria uma contradição que custaria caro: ele afirmou que algumas reivindicações são mentiras, que sua reforma tributária não aumentará os impostos sobre a classe média e que, ao contrário do que dizem, não vai proibir os protestos sociais; que algumas demandas vêm do sucesso de seu governo, como a de criar uma holding das empresas financeiras do Estado ou encontrar uma solução para a Electricaribe [que pode ser vendida em fevereiro do ano que vem]; outras, Duque aponta como problemas herdados (um argumento que repetiu em discurso da noite), como a dificuldade para proteger os líderes sociais ou implementar o Acordo com a Farc.

O terceiro e último ponto é voltar atrás em algumas decisões poderia debilitá-lo frente a seu próprio eleitorado, o uribista, que em parte parece estar distante dele, principalmente por sua contradição em promulgar a legalização o porte de doses pessoais de droga no país.

Por isso, é difícil que consiga tirar proveito dessa pressão enfrentando diretamente os manifestantes e suas reivindicações, o que deixa caminho para buscar a governabilidade, pactando com os orçamentos liberados para congressistas investirem em suas regiões, a chamada “marmelada” que citada por Juan Manuel Santos, liderança no Congresso, algo que negou desde que tomou posse, ou fechando-se para o uribismo mais radical.

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Além disso, não deu sinais disso a noite, ao fim de um dia cheio de eventos e emoções. Ainda disse que os vândalos são delinquentes, mas não tomou decisões fortes: como disse um político uribista que pediu para não ser citado, “Duque não disse nada. Ele precisa se mexer”. Ao final, o discurso de Duque deixa a mensagem de que ele não se sente contra a parede.

Camilo Rozo/El Pais

Hoje, quando estão programados panelaços em várias cidades; nos próximos dias, quando o Congresso começará a discutir sua reforma tributária; e nas semanas seguintes, quando aparecerem novas pesquisas de opinião pública e houver mais reações às medidas presidenciais como a substituição habitual em dezembro da cúpula militar ou a definição de sua lista ao Ministério Público, saberemos até que ponto ele mantém essa tranquilidade e o quanto isso servirá para tirar o país da incerteza e da ansiedade.

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3 comentários para "E a crise do neoliberalismo chega à Colômbia"

  1. Obrigada e parabéns pelas informações.

  2. Renata Morais disse:

    Aqui é a Renata Morais, eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.

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