América Latina na encruzilhada do desenvolvimento

Os governos da “nova esquerda” não conseguem oferecer alternativas reais, e os povos estão se organizando. É preciso escutá-los

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Está cada vez mais claro que os governos da “nova esquerda” não oferecem alternativas reais de desenvolvimento e bem-estar. Por isso, os povos estão se organizando e falando cada vez mais alto. É preciso escutá-los

Por Tadeu Breda

No último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o movimento indígena equatoriano iniciou uma marcha nacional contra as políticas extrativistas do governo Rafael Correa. A coluna saiu da província amazônica de Zamora Chinchipe, no sul do país, e pretende percorrer toda a região andina até a capital, Quito, no norte do Equador, onde deve chegar no próximo dia 22, Dia Mundial da Água.

Além das populações ancestrais, representadas principalmente pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e pela Federação de Nacionalidades Kíchwas (Ecuarunari), também participam da marcha setores estudantis, docentes, camponeses e do movimento de mulheres. A aliança está construída com base na oposição de uma camada cada vez mais ampla da sociedade equatoriana — em especial, dos movimentos sociais — ao presidente Rafael Correa.

A melhor maneira de entender a manifestação é ter em mente o conteúdo da Constituição Plurinacional do Equador. Aprovada em outubro de 2008, a Carta foi escrita na esteira de três golpes de Estado cívico-militares, que fizeram com que o país tivesse sete presidentes diferentes entre 1996 e 2006. Essa grande mobilização popular, capitaneada pelo movimento indígena, refletiu-se no texto constitucional. Não por acaso, a Constituição garante uma série de direitos inovadores na América Latina. Três deles ganham especial relevância: os Direitos da Natureza, a Plurinacionalidade e o Bom-Viver.

Tais princípios não funcionam independentemente uns dos outros. Se a Plurinacionalidade outorga às comunidades indígenas autoridade para exercer sua cultura (língua, justiça, propriedade, economia) dentro de suas terras, os Direitos da Natureza garantem que o meio ambiente sob nenhum aspecto pode ser degradado para além de sua capacidade natural de regeneração. Isso significa, obviamente, um empecilho legal para as atividades econômicas extrativistas, hoje em dia responsáveis por mais da metade do PIB equatoriano. Por fim, o Bom-Viver é o projeto de desenvolvimento que resulta de um sistema que respeita as tradições ancestrais e os ciclos naturais do ecossistema em que se inserem.

Daí que a marcha em curso no Equador se oponha prioritariamente às políticas extrativistas patrocinadas pelo governo desde 2009, quando, já aprovada a Constituição, Rafael Correa sancionou uma nova Lei de Mineração que abre caminho para a exploração mineral em grande escala e a céu aberto. Foi então que o movimento indígena deixou a coalizão política e social que havia possibilitado a vitória do presidente e passou para a oposição.

A questão ambiental está no cerne dos ataques perpetrados contra Rafael Correa pelos movimentos sociais equatorianos. Mas não é o único teto de vidro do governo. O presidente também recebe duras críticas da esquerda devido ao crescente número de processos judiciais contra militantes de organizações populares. Até novembro de 2011 se contabilizavam quase 200 ações movidas na Justiça para incriminar, sobretudo, indígenas e camponeses — gente cuja infração foi basicamente protestar contra instalações petrolíferas, mineiras ou outros projetos de desenvolvimento pautados pela destruição e capitalização do meio ambiente em detrimento dos interesses locais. Respondem por terrorismo, sabotagem e sequestro, entre outros crimes.

Por isso, mais de 300 ativistas e intelectuais da América Latina, Estados Unidos e Europa assinaram um manifesto apoiando a iniciativa dos movimentos sociais equatorianos. Entre eles, cabe destacar o economista Alberto Acosta, que foi um dos mentores políticos de Rafael Correa, assumiu o Ministério de Energia e Minas no primeiro mandato do presidente e dirigiu os trabalhos da Assembleia Constituinte. Porém, deixou o governo — e o partido oficialista, Alianza País — ao perceber que Rafael Correa, apesar de esbravejar contra o neoliberalismo, não estava batendo de frente com a lógica “perversa” que, segundo Acosta, mantém o Equador no subdesenvolvimento.

A marcha indígena que acontece no Equador ganha importância no contexto latino-americano porque não é um fato isolado. Em praticamente todos os países da região, desde o México até o Chile, comunidades tradicionais e camponesas estão se levantando contra grandes projetos de desenvolvimento e de extração natural que, pegando carona no “bom momento” econômico da América Latina e nos altos preços das commodities, estão promovendo uma nova febre do ouro em paisagens tão distintas como o deserto mexicano e a floresta amazônica. As grandes represas, como Belo Monte e Jirau, entram nesta equação.

É preciso, porém, fazer uma distinção: a oposição que encabeça os movimentos sociais e indígenas do continente contra os governos da chamada “esquerda latino-americana” é radicalmente distinta da crítica emanada dos setores sociais e econômicos estabelecidos. Para ficar no exemplo do Equador, não podemos confundir a oposição que Rafael Correa sofre da Conaie e da Ecuarunari, por exemplo, com a oposição que nasce dos grandes jornais e canais de TV do país. Os primeiros se queixam porque o presidente não levou às últimas consequências suas propostas de mudança — querem uma transformação radical no modelo de desenvolvimento. O outro grupo, que vem perdendo privilégios, acredita que o presidente foi longe demais.

Com algumas pequenas características que mudam de país para país, eis o fenômeno macro que vem acontecendo na América Latina. Está cada vez mais claro que os governos da “nova esquerda” e suas políticas neodesenvolvimentistas não conseguiram corrigir as desigualdades mais profundas de nossas sociedades. Mais que isso, não ofereceram alternativas reais de desenvolvimento e bem-estar. Por isso, os povos estão se organizando e falando cada vez mais alto. É preciso escutá-los.

Tadeu Breda é autor do livro “O Equador é Verde — Rafael Correa e os Paradigmas do Desenvolvimento” (Editora Elefante, 2011)

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2 comentários para "América Latina na encruzilhada do desenvolvimento"

  1. Marina Barros disse:

    Tadeu, sua análise é muito interessante, mas me pergunto se os movimentos sociais vão conseguir falar tão alto assim. Me parece que existe uma dificuldade tremenda em estabelecer, alinhar e comunicar suas posições. Gritar “não, não, não” é o que eles tem feito até o momento. Mas e quanto a criar novas propostas? Você ve este momento se aproximando?

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