Vento dentro da bolsa… de valores

A transformação de fluxos da natureza, como recursos eólicos, em ativo financeiro é clara tendência capitalista. Chamam-na “assetização”. Mas é preciso cuidado: certas análises omitem a exploração do trabalho, como se as riquezas nascessem no ar…

Foto publicada no Diário do Nordeste
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A ideia deste pequeno texto é ser breve e de fácil entendimento. Nem por isso é superficial e com falta de polêmicas. É, em dada medida, um resumo do que escrevi em conjunto à Helena Marroig Barreto em artigo publicado na Nexos Econômicos1 – “Assetização dos fluxos de natureza: uma interpretação da conversão das correntezas, ventos e raios solares em ativos financeiros” -, e em outra medida, uma crítica a algumas abordagens, aparentemente marxistas, que têm aparecido, sobretudo, no Brasil.

Em nosso artigo mencionado fizemos uma revisão da literatura de assetização que vem se concretizando nos países anglófonos e concluímos que essa nasce com fortíssimas inclinações anti-marxistas. Posição que, recentemente, foi partilhada por Robert Wade – em uma troca de emails – , que escreveu sua tese de doutorado em filosofia pela Queen’s University of Belfast – All that is solid melts into air: exploring alternative approaches to wind rights drawing on lessons from the Republic of Ireland and the Netherlands – buscando compreender as novas formas de apropriação de valor através da utilização do vento, que diferentemente ao petróleo é um fluxo e não um estoque de natureza, no processo de valorização do valor. Wade, assim como Lorena Izá Pereira2 destacará não essa novidade, que é a conversão do vento em um ativo financeiro, mas o papel da propriedade fundiária para que essa conversão se concretize. Isto é, Wade e Izá Pereira – cada um à sua maneira – irão destacar não a quantidade de trabalho necessária – com boa parte dessa petrificada na forma de capital fixo – para que se capture o vento e esse se converta em energia, mas a indispensabilidade da terra e, por isso, classificarão essa apropriação do vento enquanto renda da terra.

Obviamente, não cabe a nós negarmos a indispensabilidade da terra, pois, pelo menos enquanto as eólicas offshore não se tornarem realidade no Brasil, isso seria negar a realidade. Entretanto, a prática das empresas de geração de energia eólica no Brasil tem se mostrado bastante distinta, já que boa parte das instalações dos parques se dá ou por contratos de arrendamento em terras privadas (e, portanto, quem estaria, formalmente, pagando a renda seriam as próprias empresas), ou via contratos de concessões de terras públicas3. Em nosso artigo, ao contrário dos autores mencionados, focamos na apropriação do mais-trabalho, seja dos trabalhadores que participam da fabricação do capital fixo instalado no parque, seja daquela massa invisível de trabalhadores que trabalha na manutenção deste capital e na manutenção das redes de transmissão. Contra nosso argumento, por um lado, pode-se argumentar que Marx, no terceiro livro d’O Capital, já havia destacado que aquilo que aparece enquanto renda é, na verdade mais trabalho; por outro, pode-se dizer, também, que a apropriação do vento não guarda diferenças com a apropriação das correntezas de um rio, também essas, fluxos de natureza convertidas em energia por enormes massas de capital fixo instalado. De fato, há razão lógica nos dois argumentos, e não os negamos. Mas ao longo do trabalho, nos esforçamos em diferenciar a apropriação dos fluxos (ventos, correntezas, raios solares) da apropriação dos estoques (porção de terra, minerais, etc.). Isso porque, ao nosso ver, boa parte desses projetos ocorrem em terras públicas, e mesmo quando ocorrem em terras privadas, não ocorrem em terras de propriedade das empresas. Deve-se, ao nosso ver, focar nas relações sociais de produção e nas relações jurídicas que permitem, no século XXI, que se converta o vento em um ativo financeiro.

A conversão dos fluxos de natureza em um ativo financeiro exige alguns procedimentos: i) projetar fluxos de rendimentos claros e definidos (valoração), em um processo que necessariamente implica uma estandardização – para que o ativo possa ser líquido e transacionado em unidades monetárias –; ii) conferir legitimidade a esse ativo, isto é, eles devem ser não apenas legais, mas moralmente aceitáveis.

A questão da legitimidade é extremamente cara para a financeirização da natureza, uma vez que a apropriação desta muitas vezes coloca em xeque povos e modos de vida tradicionais, ou a própria reprodução humana. A questão da crise climática tem acirrado tais disputas, já que os mais diversos atores e interesses se voltam para esses espaços. Assim, além de uma corrida por terras (land grabbing), observamos uma corrida generalizada por recursos naturais sob a narrativa de preservação e mitigação da questão climática, no chamado green grabbing (FAIRHEAD; LEACH; SCOONES, 2012). A construção da legitimidade desta apropriação é essencial para consolidar a natureza como passível de assetização. (Rech e Barreto, 2023, p. 50)

Nessa questão da legitimidade, há também na literatura brasileira o trabalho da Pesquisadora do Inep, Tatiana Oliveira – “Assetização da Natureza como Razão da Ex-A-Propriação Neoliberal” – que, apesar de flertar com categorias marxianas, descamba para o pós-estruralismo francês de Foucault e Derrida e, daí, foca muito mais na dominação por meio da ideologia (perspectiva que considero idealista) do que naquela propriamente econômica, isto é, na dominação através do controle da atividade ontológica de primeira ordem, aquela que para Lukács tem primazia sobre todas as outras atividades do ser social, o trabalho.

Em nosso artigo, eu e Helena, defendemos que “em termos marxistas, a assetização representa uma revolução da manifestação da forma valor. Esse processo leva a um novo nível o processo de abstração, já que não homogeneíza apenas objetos comercializáveis entre si, como se dá na forma mais simples da mercadoria, mas homogeneíza os fluxos futuros de mercadoria, impondo assim limites à própria valorização da força de trabalho no horizonte temporal dos projetos” (Ibid., p. 51). Isto é, se na valoração do ativo, prévio à negociação desse ativo em bolsa, se determinou que, através de uma quantidade média diária de vento se obterá, no tempo de x anos um rendimento percentual y, quaisquer mudanças na relação capital-trabalho devem ser evitadas e, quando impossíveis, devem ser contornadas com a elevação da tarifa de energia.

Se o trabalho é substância de valor, o que confere valor à forma, os processos de assetização devem, especialmente em sua fase de valoração (precificação), estimar a quantidade de valor que surgirá (mais-valor) da utilização de determinada coisa em combinação com outras coisas, homogeneizando a diversidade da natureza e o trabalho a ela conectada, para representá-los enquanto “geléia de trabalho humano”, trabalho humano abstrato objetivado. Todavia, para tal procedimento, esse mais-valor deve antes ser quantificado em sua forma universal, forma do valor (Wertform) que ao espelhar o valor de todas as demais mercadorias torna-se “a encarnação visível, a cristalização social e universal de todo trabalho humano” (MARX, 2013, p. 142). É necessária a representação monetária dos ativos da natureza. (Ibid., p. 53)

É dizer que “A monetização / precificação de valores futuros, tratada enquanto valoração, é a abstração do potencial de determinada combinação, entre força de trabalho, meios de produção, de criar e realizar (vender) novos valores. Isto é, no momento no qual determinado objeto tem mensurada sua taxa de capitalização, o que se está projetando não é apenas a capacidade de esse criar novos valores, mas de realizá-los, transformá-los em novas unidades monetárias” (Ibid., Ibidem). Transformar os fluxos de natureza em um ativo financeiro é constituir um “fluxo de pagamentos futuros através da utilização determinada de um fluxo natural, em contato com o trabalho vivo ou cristalizado” (Ibid., p. 56).

Entendemos que, no capitalismo contemporâneo, a generalização da financeirização, que difunde a aparência de que dinheiro pode virar mais dinheiro a partir de meras transações financeiras, opera no “apagamento crescente do trabalho enquanto criador de valor” (Ibid., p. 57). Mas isso não se dá unicamente por meio da ideologia, ou por meio de uma razão de ex-apropriação neoliberal, se dá, principalmente, pelas novas formas de controle do trabalho. A complexificação da sociedade, nos termos de Lukács, isto é, a mediação social crescente do ser-social sobre o indivíduo, que é ofuscada pela troca de mercadorias, tem papel preponderante nesse processo.

Quando conecto meu computador na tomada, aqui na Bahia, com a finalidade de redigir este texto, tenho esse ato mediado por uma série de trabalhos humanos, desde aqueles executados na construção do capital fixo, passando por aqueles empregados na manutenção da rede elétrica, até aquele do eletricista que, há mais de 50 anos, realizou o projeto elétrico do edifício que resido. Entretanto, esses trabalhos não aparecem na superfície, pelo contrário, a única coisa que faz lembrar de que a produção de energia envolve trabalho de outros é a conta de luz, enviada mensalmente pela empresa espanhola que controla a distribuição de energia elétrica no estado da Bahia. Isto é, aparece enquanto uma relação simples entre dois agentes econômicos, o comprador e o vendedor de energia, embora, na verdade, seja uma relação mediada por uma série de trabalhos, executados no presente, no passado próximo e no passado distante.

Acredito, e este é o motivador desse texto, que as abordagens dos fenômenos de conversão dos fluxos de natureza em ativo financeiro que vem surgindo pecam, não em determinadas compilações empíricas ou descrições técnicas, mas, sobretudo, ao não focarem no trabalho humano. Ao não destacarem a relação de exploração do ser-humano pelo ser-humano, acabam reforçando aquilo que gostariam de combater, a tal razão neoliberal.


Notas:

1 https://periodicos.ufba.br/index.php/revnexeco/article/view/55496

2 A territorialização de empresas de energia eólica no nordeste brasileiro: elementos para pensar a questão agrária no século XXI, apresentado no X Simpósio Internacional de Geografia Agrária.

3 Essa realidade, por sinal, é muito bem descrita no trabalho de Izá Pereira.

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