Soberania e o “brasileiríssimo” capital estrangeiro

Corporações que atuam no Brasil, como Shell ou Volkswagen, são consideradas tão nacionais quanto a Petrobrás. Aberração legal aprovada no governo FHC precisa ser revogada – e chantagens de Trump para explorar terras raras e manter privilégios das big techs, rechaçadas

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A postura tresloucada de Donald Trump no cenário internacional terminou por oferecer ao governo Lula e às forças progressistas de forma geral o argumento que faltava para colocar na agenda política o tema da soberania nacional. A partir das primeiras medidas do presidente estadunidense contra o Brasil, parece ter ficado clara a necessidade de se sair em defesa de nosso país, que se viu atacado com a edição do tarifaço pela Casa Branca há poucos meses. Desde o início, havia ficado claro que as razões para aquela ofensiva autoritária e fora de qualquer sentido racional escapavam à lógica do comércio exterior entre os dois países envolvidos. Os argumentos e as exigências resvalavam para o campo político e ideológico, a exemplo da exigência absurda de paralisar os processos de condenação de Jair Bolsonaro no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).

Quando Trump passou a verbalizar a defesa aberta dos interesses de empresas daquele país, aí sim a questão da soberania nacional também ganhou maior relevância. Afinal, os governantes dos Estados Unidos costumam operar no mundo inteiro em favor das empresas norte-americanas. Sempre foi assim e tal conduta não é exclusiva deles. Todos os chefes de Estado pelo mundo afora fazem isso com as empresas originárias em suas respectivas nações. Ocorre que, no caso brasileiro, há um detalhe que tem passado despercebido no debate desta questão. Trata-se de uma especialíssima alteração de natureza constitucional realizada há mais de 30 anos. Vejamos com detalhes.

Em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) enviou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 5/95. A medida foi protocolada ainda antes de completar o segundo mês de primeiro mandato, ou seja, em 16 de fevereiro daquele ano. A principal alteração proposta previa a revogação do art. 171 da Constituição Federal (CF), dispositivo esse que estabelecia a diferença entre empresa nacional e empresa estrangeira. Em 15 de agosto, é promulgada a Emenda Constitucional (EC) nº 6 com o mesmo teor da versão original. Assim, a partir da mudança introduzida, toda e qualquer empresa que atuasse no Brasil seria considerada “brasileira” (sic). Com isso, desapareceram as possibilidades de as políticas públicas serem utilizadas para beneficiar as empresas nacionais em comparação com as empresas estrangeiras. Vejamos o que dizia textualmente o art. 171 revogado:

(…) “Art. 171. São consideradas:

I – empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II – empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades

§ 1º – A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:

I – conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II – estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do “caput” se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;

b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.

§ 2º – Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.” (…) [GN]

Empresa estrangeira não é brasileira!

Ao retirar a intenção explícita dos constituintes sete anos após a promulgação da nova CF, o governo neoliberal de FHC uniformizou os conceitos que estavam por trás de empresas tão distintas. A Shell do Brasil passa a ser tão brasileira quanto a Texaco do Brasil, quanto a Esso do Brasil, quanto a verdadeiramente nacional Petrobrás. A Volkswagen do Brasil passa a ser tão brasileira quanto a Ford do Brasil, quanto a Mitsubishi do Brasil, quanto a Renault do Brasil, quanto a Hyundai do Brasil, quanto teria sido a nossa Gurgel Motores SA — caso ela não tivesse sido boicotada pelos diferentes governos até ter a falência decretada em 1994. Assim, todas as multinacionais e empresas estrangeiras que tenham atuação no Brasil passam a ser consideradas tão brasileiras como qualquer outra empresa de origem nacional. Uma loucura!

Ao longo destas mais de três décadas, já chega a 17 anos o período em que o Brasil esteve governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Mas é impressionante que nenhuma medida tenha sido encaminhada por Lula ou por Dilma para restabelecer a necessária diferenciação entre empresa nacional e empresa estrangeira em nossas disposições legais e constitucionais. As diretrizes emanadas pelo Consenso de Washington desde a década de 1980 foram por aqui introduzidas como políticas de governo e como matéria de nosso arcabouço legal a partir dos mandatos de Collor e FHC. Mas, infelizmente, elas sofreram uma continuidade e aprofundamento ao longo dos governos que se seguiram.

Para além da privatização e da política de austeridade fiscal, o tripé do neoliberalismo formatado na capital estadunidense [sede do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM) e do Tesouro dos EUA] propunha uma espécie de apologia ao “liberou geral” — com estímulo à liberalização comercial, o fim das barreiras à importação e a eliminação de supostos obstáculos à atividade econômica de forma geral. Esse era o mote para acabar com a diferenciação entre empresas nacionais e empresas estrangeiras em nossas terras.

Soberania vs liberalização geral e entreguismo

Ora, o percurso dos países que alcançaram alguma posição de destaque no rol das nações no globo sempre apresentou algum grau de protecionismo nos períodos que antecedem a conquista da hegemonia. Assim foi com a Inglaterra e com os Estados Unidos, bem como está ocorrendo com a China atualmente. Isso significa que a continuidade da vigência da EC nº 6 impede que o Brasil inicie uma trajetória necessária e urgente de busca de nossa soberania em qualquer uma de suas múltiplas dimensões — econômica, cultural, tecnológica, militar, social, digital, energética, etc.

Por mais importante que seja o fato de Lula assumir finalmente a bandeira da soberania nacional, a realidade objetiva é que tal discurso ainda não foi acompanhado de nenhuma medida prática visando a sua implementação. Aliás, a realidade de seu governo apresenta uma tendência em sentido contrário. O programa da Nova Indústria Brasil (NIB), lançado no começo de 2024 e que apresenta poucos resultados concretos, não dispõe de nenhuma regra que objetive beneficiar as empresas nacionais. O ministro da Fazenda acolhe em posições estratégicas de sua pasta pessoas que eram até há pouco tempo dirigentes de empresas multinacionais na essencial área digital. São os casos de Dario Durigan e Pablo Bello, que ocupavam cargos relevantes na empresa Meta, de Mark Zuckerberg.

Perigo à vista: terras raras e big techs

Na verdade, a continuidade do processo de negociação com o governo Trump abre a perigosa alternativa de inclusão na pauta entre os dois países de temas sensíveis e complexos para nossa soberania e para o próprio processo de desenvolvimento econômico brasileiro. Trata-se da exigência do presidente estadunidense de abertura do Brasil para a exploração das terras raras e dos minerais estratégicos por empresas daquele país. Outra demanda sobre a qual Trump sempre insiste relaciona-se ao favorecimento dos oligopólios mundiais da tecnologia digital, as chamadas “bigtechs”, em sua maioria empresas com origem e sede nos Estados Unidos. Caso o governo aceite passivamente as propostas da Casa Branca em troca de uma flexibilização das tarifas sobre as importações originárias do Brasil, isso teria o trágico significado de redução ainda maior da nossa já diminuta soberania econômica e tecnológica.

Para o nosso país avançar na pauta da defesa da soberania, é fundamental uma reversão na orientação da política econômica e das relações exteriores. Trata-se de construir um programa de médio e longo prazos visando a elevação da nossa soberania em todas as dimensões acima mencionadas. E isso pressupõe a revogação da EC nº 6. Afinal, não pode ser pelo mero fato de as multinacionais aqui operando terem o registro corporativo em algum cartório brasileiro que faz com que elas percam sua natureza estrangeira e passem a ser consideradas de forma isonômica às empresas nacionais.

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