Foucault: o LSD e seu neoliberalismo progressista 

A partir da experiência lisérgica, nos EUA, livro aborda contradição crucial do filósofo. Em 1975, empolgou-se com os chicago boys por valorizar o indivíduo perante o Estado; paradoxalmente, hoje seus escritos são usados para criticar os modos de subjetivação neoliberal

Michel Foucault e Michael Stoneman, em Death Valley, Califórnia, 1975. Foto: Simeon Wade

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Desde a crise financeira de 2008, que deixou claros os limites já bastante evidentes do neoliberalismo, a produção acerca de como a sociedade neoliberal é administrada e gestada cresceu de forma bastante intensa. Parte importante da bibliografia existente sobre o neoliberalismo, que  centrava a discussão no papel do Estado enquanto agente indutor de políticas de austeridade, privatizações e precarização das relações de trabalho, passou a ganhar novas dimensões através da análise das formas de subjetividade que marcam o homem econômico neoliberal. 

A produção de uma racionalidade social que passa a entender os trabalhadores como empresários de si, em um momento de intensificação das crises capitalistas, foi interpretada por muitos autores[1] através das aulas de Foucault proferidas no Collège de France em 1979, e publicadas em 2004, intitulada O nascimento da biopolítica, uma vez que buscava compreender como as diferentes formas de controle se efetivavam, em particular através da produção de diferentes subjetividades e entendimentos de si.

O livro que a Editora Telha acaba de publicar, intitulado O último homem a tomar LSD: Foucault e o fim da revolução, de Mitchell Dean e Daniel Zamora, tem como objetivo problematizar exatamente o contexto social e político em que tais reflexões de Foucault foram produzidas. Isso porque são bastante distintos o momento histórico em que o autor dá início às reflexões acerca do neoliberalismo e aquele  em que suas aulas sobre biopolítica se tornam elemento central de uma crítica “francesa” à sociedade neoliberal no século XXI. 

Foucault pensava o neoliberalismo quando este começava a se tornar hegemônico no Ocidente e sua obra foi recebida quando as políticas neoliberais passavam por uma crise de legitimidade em função de seus fracassos enquanto “via de modernização” no final do século XX e início do XXI. Para os críticos do neoliberalismo que se colocam como herdeiros de Foucault, a teorização acerca da biopolítica representa uma crítica às formas de controle subjetivos que o neoliberalismo impõe aos trabalhadores, uma vez que sua radical oposição ao Estado de bem-estar social, buscaria construir uma “razão de mundo” (DARDOT; LAVAL, 2017) em que todos, indivíduos e instituições, deveriam concorrer na mesma lógica de empresas, buscando maior produtividade em uma sociedade espelhada ao mercado. 

Na perspectiva crítica, tal sociabilidade esgarçaria as relações sociais e os espaços de solidariedade e organização institucional política a tal ponto que a própria democracia liberal poderia se mostrar como entrave ao avanço da normatividade neoliberal (BROWN, 2019).[2] Em outras palavras, o neoliberalismo, além de ser uma política econômica, se constituiu em uma espécie de sistema totalitário, que busca controlar todas as formas de interação social, uma vez que devem emular a dinâmica de mercado (SALGADO, 2023).[3] 

Ora, seria então Foucault o primeiro grande crítico da sociabilidade neoliberal? Como sempre, a realidade é muito mais complexa do que parece. Diferentemente do que a leitura de autores que utilizam Foucault como base para suas críticas ao neoliberalismo pode nos levar a crer, a relação de Foucault com o neoliberalismo foi muito próxima, chegando ele, inclusive, a demonstrar simpatias e entusiasmo pelas formas de efetivação e pela crítica neoliberal ao “Estado assistencialista”. Então Foucault foi um neoliberal, entusiasta das teorias do Capital Humano e dos escritos da Escola de Chicago e do Ordoliberalismo alemão? 

A leitura do livro de Dean e Zamora ajuda a pensar essas questões, uma vez que retoma a trajetória de Foucault, do final dos anos  1960 até o início dos anos 1980, período em que dois fenômenos históricos coincidem. Em um primeiro momento, Maio de 1968 na França marcou novidades nas demandas sociais ao levantar bandeiras como o pacifismo, o direito sexual e as liberdades individuais em geral. Ao mesmo tempo, o questionamento de parte da esquerda acerca do autoritarismo e da burocratização que caracterizavam os regimes socialistas no período levava intelectuais como Foucault a reposicionar os limites de categorias fundantes para a esquerda marxista, em especial as ideias de classe e revolução.

Foucault passou a entender que as novas dinâmicas sociais que marcavam os anos de 1970 indicavam um limite ao princípio revolucionário, assim como a ideia de classe, que acabava por representar formas de controle e dominação do sujeito em configurações sociais determinadas. Nesse sentido, passou a defender uma posição antitotalitária, em um momento propício para experimentações sociais em busca da construção de uma maior autonomia para o indivíduo. 

É nesse contexto que Foucault passou a questionar as relações dos indivíduos com o Estado assistencialista, com a sociedade pastoral vinculada à moralidade católica da autoflagelação e com os próprios movimentos sociais, como uma espécie de impedimento para a descoberta de diferentes formas de subjetivação. A superação de tais empecilhos sociais, éticos e morais abririam uma possibilidade de experimentação social que interessava a Foucault nesse período e que o levou ao seu “momento californiano”, em 1975, nos EUA.

Ao conhecer a sociedade que se estruturava na Califórnia nos anos 1970, uma sociabilidade que lhe permitiu adentrar com mais intensidade em temas como cultura gay, as saunas, a liberdade sexual e os diferentes modos de vida, Foucault teve sua primeira experiência com o consumo de LSD, entendido como mais uma de suas tentativas de expandir as maneiras de se expressar e de construir o entendimento de si, que são impedidas pela sociedade pastoral ocidental. 

É nesse contexto que Foucault passa a ter contato mais direto com o pensamento neoliberal, chegando a demonstrar bastante entusiasmo pelas teorizações da Escola de Chicago. O filósofo via no neoliberalismo e em sua defesa do indivíduo um outro caminho possível para a construção de alternativas de liberdade de expressão, já que a ode ao empreendedorismo transformava o sujeito passivo do Estado de bem-estar em um empresário de si, ou seja, um sujeito ativo. Essa mudança no entendimento do sujeito significaria um rompimento nos pressupostos morais e éticos até então predominantes e tornaria possível que novas formas de vida pudessem se efetivar, abrindo, assim, espaço para uma maior liberdade do indivíduo. Nesse ponto, existe relação com as próprias demandas de Maio de 1968 acerca das liberdades sexuais e das liberdades individuais, uma vez que o neoliberalismo romperia com a moralidade e a ética que impediriam determinadas manifestações.

Essa tentativa de utilizar o neoliberalismo como espaço de resistência e experimentação deve ser entendida no contexto em que Foucault estava inserido, um momento em que um “neoliberalismo progressista” era entendido como uma possibilidade de mobilização subversiva, uma maneira de se construir uma sociabilidade em que o indivíduo gozaria de mais liberdade para se manifestar e expressar suas diferentes subjetividades. 

Ainda assim, a posição de Foucault acerca do neoliberalismo apresenta lacunas passíveis de importantes críticas, uma vez que, nos anos de 1970, a ditadura chilena já era o laboratório em que os chicago boys colocavam suas ideias em prática. O aumento da desigualdade também já era uma consequência conhecida do neoliberalismo. Ainda que Foucault tenha tentado trabalhar com as ideias de pobreza relativa e pobreza absoluta, a ausência de uma perspectiva crítica mais incisiva acerca desses aspectos chama  atenção.

Como sabemos, o “neoliberalismo progressista” não se efetivou da maneira como Foucault poderia imaginar, se transmutando na categoria desenvolvida por Nancy Fraser (2018).[4] Na prática, o “neoliberalismo progressista” passou a reforçar formas de controle e dominação ao atomizar de forma identitária os sujeitos, aumentando as possibilidades de exploração do trabalho e reduzindo as formas de expressão e diferenciação. 

Figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que combinam práticas fascistizantes com a ode à individualização neoliberal, não foram previstas por Foucault e demonstram a impossibilidade de o neoliberalismo ser entendido como um caminho de experimentação de maior liberdade individual.

Combatendo as formas de autoritarismo e controle, Foucault chegou a questionar a autoridade de escritores e autores de livros acerca de suas produções, indicando que os mesmos não podem ser elevados a categorias de “soberanos” sobre o que escrevem, sendo seus escritos abertos à interpretação de diferentes leitores, de diferentes épocas. Dessa forma, a obra de Foucault se enquadra nessa perspectiva. A liberdade que Foucault incentivou em seus leitores fez com que sua obra fosse ressignificada, sendo utilizada como uma ferramenta crítica importante contra o neoliberalismo. No entanto, conforme demonstra o livro de Dean e Zamora, sujeitos como Foucault são sempre mais intrigantes do que seus intérpretes podem supor.

Notas 

1. Um exemplo importante é DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo Editorial, 2017.

2. BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

3. SALGADO, Tiago Santos. Rumo à Barbárie Neoliberal. Editora Telha, Rio de Janeiro, 2022.

4. FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump-e além 1. Política & Sociedade, v. 17, n. 40, p. 43-64, 2018.

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