Como o Brasil inventou o “superavit privado”

“Ajuste fiscal” já drenou R$ 6 trilhões dos cofres públicos para o mercado financeiro. Com pandemia, mito da austeridade desmorona em diversos países, mas Brasil parece exceção: lucros de banqueiros importam mais que salvar vidas

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Por Paulo Kliass

Essa lengalenga da falta de recursos para o governo desenvolver suas políticas públicas não é nenhuma novidade trazida pelo Paulo Guedes. A novela é muito mais antiga. Os discursos e os argumentos sempre variaram ao sabor da conjuntura e da equipe governamental de plantão na Esplanada dos Ministérios. Mas é importante registrar que o financismo sempre conseguiu influenciar os responsáveis pelo comando econômico para que não ousassem sair do cardápio do neoliberalismo e dos ajustes macroeconômicos baseados no mito intocável da austeridade a qualquer custo.

Os grandes meios de comunicação completavam o serviço de bom grado. A eles ficava responsabilidade pela criação de um clima supostamente consensual em torno da necessidade de medidas duras na política econômica. O argumento era centrado em criar mecanismos de uma suposta “responsabilidade fiscal” para evitar a volta da inflação e o risco de novas crises depois do êxito obtido pelo Plano Real, ao estabilizar a nova moeda em 1994.

A história toda foi focada na obtenção sistemática de saldos expressivos de superávit primário nas contas governamentais. A armadilha, no entanto, passava desapercebida da maioria da população. Afinal, quem gostaria de ser “irresponsável” na condução das finanças públicas em um país que havia passado décadas convivendo com índices de inflação extremamente elevada e sucessivos fracassos de planos de ajuste estabilizador? O pulo do gato, portanto, residia no adjetivo aparentemente inocente: “primário”.

Por meio dessa artimanha, o sistema financeiro via assegurado um fluxo constante e permanente de recursos drenados das contas do Tesouro Nacional para seus caixas privados. Sim, pois por meio da aplicação do conceito de “primário” estavam sendo retiradas do esforço fiscal as contas de natureza financeira. Dessa forma, eram comprimidas todas as demais rubricas associadas a saúde, previdência social, educação, assistência social, saneamento, salários de servidores, dentre tantas outras. Com isso, o saldo obtido na forma de “superávit primário” era utilizado sem nenhum limite para pagamento de juros do serviço da dívida pública. Entre 1997 e os dias de hoje, os valores drenados do orçamento para esse tipo de despesa superam os R$ 6 trilhões. Mas o governo nunca tinha recursos.

Governo sempre teve recursos

Nos períodos das chamadas “vacas gordas”, esse mecanismo sofisticado passava incólume, uma vez que o governo federal contava com recursos para dar conta de boa parte das necessidades sociais e das obrigações previstas na Constituição Federal. A política social ficava com as migalhas e o financismo abocanhava a parte mais expressiva dos recursos orçamentários. Mas sempre que algum governante procurava escapar dessa amarra para buscar financiamentos para projetos de maior envergadura, aí os formadores de opinião lançavam seus torpedos contra o risco de intervencionismo e de explosão das contas públicas. A expansão dos serviços “públicos” só era bem aceita por esse pessoal do terno engomadinho se fossem operados pelo capital privado. E dá-lhe enxurradas de processos de privatização, de concessão e de liberalização. Os direitos sociais passavam a ser cada vez transformados em mercadoria. Tudo se compra, tudo se paga. As regras do antigo acesso público e universal passam a ser substituídas pela oferta privada e pela demanda de quem tenha recursos para obter o serviço. Cidadãos de pleno direito são transformados em meros consumidores.

À medida que a crise econômica foi se aproximando, percebeu-se que o bolo já não dava mais para todo mundo. E assim a narrativa do “não tem recursos” vai se consolidando em meio ao establishment. Os governos não podem ser populistas, diziam. Os governos não podem ser demagógicos, ameaçavam. Os governos devem ser responsáveis, acusavam. Daí para “os governos não podem gastar mais do que arrecadam” foi um pulo fácil. A analogia oportunista propalada pelos responsáveis pela economia do momento com as economias dos indivíduos, das famílias ou das empresas caiu no uso corrente da grande imprensa. Afinal, se eu não posso gastar mais do que ganho a cada mês, essa deveria ser a orientação do próprio governo. Aparentemente, nada mais sensato na condução das finanças públicas. Só que não!

A virada na crise 2008/9

A crise de 2008/9 serviu para dar uma chacoalhada nas formulações no interior dos principais organismos multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM). Também os responsáveis pela condução da política econômica nos principais países desenvolvidos foram obrigados a dar um verdadeiro cavalo de pau no receituário neoliberal adotado até então. Para salvar as respectivas economias e os grandes conglomerados financeiros e empresariais do mundo globalizado, foi revista a ideia de que o Estado não deve gastar mais do que arrecada e que o setor público não deve intervir no domínio da economia.

Mas os poderosos interesses do financismo tupiniquim conseguiram a façanha de blindar nossas elites a esse respeito. Por aqui, continuamos rezando pela cartilha do austericídio burro, cego e assassino. Na verdade, ao contrário do que ocorria no restante do mundo capitalista desenvolvido, o Brasil seguia firme e forte com políticas de restrição de gastos públicos na área social, ao mesmo tempo em que se aprofundava o processo de privatização das finanças públicas. O argumento era repetido “ad nauseam”: o governo não tem recursos.

Os economistas desenvolvimentistas, que sempre denunciamos essa orientação equivocada, apresentávamos os números oficiais do próprio governo para mostrar a falácia. A Conta Única do Tesouro Nacional junto ao Banco Central sempre exibia resultados mais do que positivos. São recursos à disposição do governo federal para realizar os gastos necessários. Basta ter vontade política para tanto. Em 2011, por exemplo, esse saldo ultrapassou a marca simbólica do meio trilhão de reais: R$ 500 bilhões. Em 2015 o valor do saldo credor superou a marca do R$ 1 trilhão. Mas o mantra seguia, como sempre, de que o governo não tinha recursos.

Infelizmente foi necessário que o mundo e nosso país estivessem envolvidos pela crise generalizada da pandemia para que a realidade dos fatos e dos números fosse finalmente aceita. Percebeu-se que os recursos existem e que o governo pode gastar. Aliás, não só pode, como deve! Pouco a pouco até mesmo os “especialistas” que escrevem suas verdades incontestes nos jornalões passam a mudar de opinião. Obviamente, poucos apresentam a honestidade intelectual e profissionalmente de reconhecer os equívocos propalados por eles mesmo até anteontem.

Com Bolsonaro & Guedes é impossível

Alguns economistas e formuladores começam mesmo a avançar ainda mais em suas novas interpretações a sobre a dinâmica atual. Assim, podemos ler artigos propondo que os novos gastos – tão urgentes e necessários para minorar os efeitos sociais e econômicas da crise do coronavid 19 – possam ser realizados por meio do aumento do endividamento e também por meio de emissão monetária.

Assim, dois dos principais tabus do conservadorismo financista caem por terra simultaneamente. Percebe-se, finalmente, que a crença equivocada em um suposto índice criminoso de endividamento público não passa de mera construção retórica. O Brasil tem muito espaço para aumentar sua dívida pública, em especial pelo lastro que temos com o volume de reservas internacionais acumuladas ao longo das últimas duas décadas. Porém, mais do que isso, percebe-se que o governo pode lançar recursos na sociedade e na economia sem ter de lançar novos títulos públicos.

A exemplo do que vem sendo feito em outras nações, o momento é propício para promover emissão de moeda pura e simples. Sem nem precisar entrar no debate proporcionado pelas novas correntes da Teoria Monetária Moderna, essa possibilidade deve-se ao simples fato de que estamos em meio a uma depressão profunda e os riscos de que a emissão de moeda possa provocar inflação são próximos a zero. Assim, está mais do que demonstrado que o governo não precisa (e nem deve!) torrar as reservas internacionais para esse fim, como a equipe de Paulo Guedes vem fazendo malandramente.

Enfim, os recursos existem e estão à disposição para serem utilizados no combate à crise a na preparação de um país que esteja em melhores condições de recuperar a rota do desenvolvimento depois que a pandemia for superada. Na verdade, o que falta é um governo que seja capaz de nos conduzir por um bom caminho. Enquanto Bolsonaro e Guedes estiverem no comando, continuaremos nessa trilha perigosa às margens do precipício.

*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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3 comentários para "Como o Brasil inventou o “superavit privado”"

  1. Lucas Alves disse:

    O dia que esse assunto virar notícia no Jornal Nacional, ai sim acreditarei que teremos uma revolução!

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