A aposta incerta dos bilionários digitais

Em nome da “liberdade de expressão”, Zuckerberg e seus pares chantageiam e ameaçam. Mas há fragilidade por trás da bravata. Crescem, inclusive no Brasil, os sinais de que Estados e sociedades são capazes de conter as Big Techs

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Por David Allen Green, no Financial Times | Tradução: Glauco Faria | Imagem: David Rowe

Quis custodiet ipsos custodes?” é a importante pergunta feita pelo poeta romano Juvenal, traduzida pelo autor inglês Alan Moore como ‘Quem vigia os vigias?’.

Mas talvez essa seja uma pergunta com uma suposição implícita complacente. Ela pressupõe que é possível vigiar os vigilantes – e tudo o que se precisa fazer é descobrir como isso é feito e por quem.

A regulamentação, entretanto, não é mágica. O fato de alguém querer que uma coisa seja regulamentada não a torna capaz de ser regulamentada de fato. Se algo é desagradável ou indesejável, a demanda imediata é que algo seja feito e que a coisa indesejada possa ser regulamentada para que não aconteça.

A noção de que tudo o que precisamos para tornar o mundo um lugar melhor é uma “regulamentação melhor” está profundamente enraizada em nossa cultura. E uma coisa para a qual se clama por regulamentação são as plataformas de mídia social. Se ao menos elas fossem “mais bem regulamentadas”, diz o sentimento popular, então vários problemas políticos e sociais seriam resolvidos.

Mas há dois problemas com a regulamentação das plataformas de mídia social. O primeiro vem da própria tecnologia que deu origem a esse fenômeno relativamente recente, mas agora quase onipresente. O segundo é que para impor uma regulamentação eficaz contra plataformas relutantes será necessária uma ação governamental, determinada e inabalável, e vontade política – possibilidade que as plataformas agora estão fazendo o possível para evitar.

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No fundo, a mídia social é a capacidade de qualquer pessoa com uma conexão à Internet usar uma plataforma on-line para dizer o que quiser sobre qualquer pessoa para qualquer pessoa. Assim que o que elas querem dizer é digitado – ou gravado em vídeo e áudio – tudo o que precisam fazer é pressionar enter e isso é publicado – ou transmitido – para o mundo.

Essa facilidade de publicação ou transmissão contrasta com a posição até cerca de 30 ou 40 anos atrás, em que um indivíduo normalmente teria que passar por vários guardiões – em jornais, editoras e estações de transmissão – antes que o que ele quisesse dizer fosse muito além de seu círculo imediato.

A lei, por sua vez, seguiu esse modelo restritivo. A responsabilidade, por exemplo, por difamação ou violação de direitos autorais, ou por não conformidade com os padrões de transmissão, geralmente era atribuída no momento em que os guardiões permitiam a publicação ou transmissão. Pois essa etapa era um momento solene e aqueles que permitiam uma circulação mais ampla tinham responsabilidades onerosas.

Sim, é claro, indivíduos excêntricos e determinados podiam “imprimir um livro por vaidade”, promover panfletos impressos em casa ou até mesmo iniciar uma estação de rádio pirata. Mas esses eram cursos de ação intensivos e caros que não passariam pela cabeça de pessoas normais.

Então, surgiu a rede mundial de computadores, os navegadores de Internet fáceis de usar e as plataformas sociais que facilitaram a publicação on-line. Todos podiam publicar para o mundo o que quisessem.

Como essa tagarelice constante poderia ser regulamentada? Isso seria possível? Ou seria tão inútil quanto tentar regular as conversas cotidianas em casa ou na rua?

Uma ideia era tentar fazer com que as próprias plataformas fossem como os guardiões de antigamente: tratar as empresas de mídia social como “editoras” do que era publicado por seus usuários. Mas o problema óbvio era que as plataformas não tinham, e não poderiam ter, nenhuma forma de aprovação prévia do que era publicado. Tudo o que elas poderiam fazer seria após o evento, quando a coisa indesejada já tivesse sido publicada. Elas eram guardiãs que só podiam fechar o portão depois que os animais tivessem fugido. Eles podiam cancelar a publicação, mas não impedir que fosse publicada.

Assim, as plataformas fizeram um lobby bem-sucedido para que a responsabilidade legal só fosse incorrida se uma solicitação válida de remoção não fosse atendida. E, de qualquer forma, essa abordagem só funcionava quando havia causas jurídicas individuais preexistentes: ela fazia sentido em relação à difamação de um indivíduo específico identificável.

Mas a desinformação em massa e a desinformação geralmente não violam os direitos relacionados à esfera privada dos indivíduos. Em vez disso, a verdadeira vítima é o discurso público saudável. Outro desafio foi a informação perigosa em relação à automutilação e ao suicídio. E também a promoção de atividades criminosas, como abuso infantil ou terrorismo.

Esses problemas eram graves e exigiam mais do que meras notificações de remoção por parte dos reclamantes. De fato, muitas vezes não há reclamantes cientes desse material, apenas aqueles que procuram consumi-lo. Seria necessária uma vigilância constante.

Uma maneira de resolver isso seria as plataformas de mídia social empregarem sistemas complexos e caros. Isso representaria uma enorme imposição de custos para as plataformas que, em primeiro lugar, querem apenas monetizar dados e vender publicidade com base nas postagens de mídia social dos usuários. Mas seria uma imposição que as plataformas só aceitariam se não houvesse alternativa.

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Quem acompanha a relação entre as Big Techs e as políticas públicas pode se distrair – e ficar exausto – com a constante correria dos eventos na mídia 24 horas e com as personalidades barulhentas. Como Madness cantou em “Our House”: sempre há algo acontecendo, e geralmente é muito barulhento.

É mais difícil dar um passo atrás e analisar as situações em termos de táticas e estratégias das empresas e das autoridades envolvidas. Figuras impulsivas, como Elon Musk, proprietário da X (anteriormente Twitter), e tomadores de decisão inconsistentes, como Mark Zuckerberg, da Meta, podem nos desviar do que suas empresas estão racionalmente buscando alcançar.

E houve alguns eventos que indicam que essas empresas não são tão fortes e poderosas quanto seus líderes de torcida e críticos parecem acreditar. Na verdade, os fornecedores de plataformas de mídia social americanas são fracos diante de um obstáculo específico. Pois é a fraqueza, e não a força, que explica seu comportamento recente.

O obstáculo é a regulamentação por jurisdições fora dos EUA – principalmente na União Europeia, mas também em outros lugares, como Brasil e China. As plataformas de mídia social perceberam que não podem vencer sozinhas as batalhas com governos e sistemas jurídicos estrangeiros. Elas não são poderosas o suficiente para resolver seus próprios problemas. Elas precisam de ajuda.

Musk se opôs à ordem da Suprema Corte brasileira de retirar o material ofensivo, apenas para capitular e cumprir as obrigações impostas pelo sistema judiciário brasileiro e pela legislação local. A X bufou e soprou, mas a única casa que foi derrubada foi a sua.

Essa fraqueza corporativa em face da ação determinada do Estado não deveria ser surpreendente. Em qualquer batalha final, o Estado prevalecerá sobre uma corporação pela simples razão de que uma corporação, como pessoa jurídica, só tem existência legal e direitos até o limite estabelecido pela legislação. Aqueles que controlam a lei podem, se quiserem, controlar e domar qualquer empresa em sua jurisdição.

É por isso que, por exemplo, a corporação mais poderosa que o mundo já viu – a Companhia das Índias Orientais – foi sumariamente dissolvida pelo parlamento britânico em 1874. É também por isso que o Sistema Bell de empresas de telecomunicações foi desmembrado pela lei e pela política antitruste dos EUA na década de 1980. As empresas podem ser muito poderosas, mas sempre há algo mais forte do qual elas dependem para obter reconhecimento legal.

Portanto, as grandes empresas confiam muito na capacidade de influenciar as políticas públicas e a legislação. Isso explica o que a Meta fez, por exemplo, com a nomeação do ex-vice-primeiro-ministro pró-europeu do Reino Unido, Nick Clegg, como vice-presidente de assuntos globais e comunicação. Essa foi uma boa escolha para uma empresa que busca influenciar de forma construtiva a formulação e a implementação da política da UE.

Mas não há muito que possa ser feito com a utilização de contatos e consultas silenciosas. A abordagem amigável não impediu a Lei de Serviços Digitais da UE. Não impediu uma multa de 797,72 milhões de euros por violações antitruste. Não impediu uma multa de 1,2 bilhão de euros por violações de dados. A política da Meta de diálogo construtivo com a UE estava falhando gravemente.

Havia uma contradição iminente entre o que a Meta queria de suas plataformas de mídia social na jurisdição da UE e o que a UE estava disposta a aceitar. Sorrisos e apertos de mão não eram mais suficientes.

A reeleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos proporcionou à Meta uma oportunidade gloriosa de passar da cooperação fútil com a UE para o confronto e a coerção. Se a Meta conseguisse colocar o governo dos EUA do lado em suas batalhas com a UE e outras jurisdições, maximizaria suas chances de sucesso.

Em seu anúncio do Facebook nesta semana sobre as mudanças em várias políticas, Zuckerberg disse abertamente que queria “trabalhar com o presidente Trump para pressionar os governos de todo o mundo. Eles estão perseguindo empresas americanas e pressionando para censurar mais. Os EUA têm as mais fortes proteções constitucionais para a liberdade de expressão do mundo. A única maneira de combatermos essa tendência global é com o apoio do governo dos EUA”.

Isso foi listado em sua declaração pré-preparada como a sexta mudança de política, mas era claramente a mais importante, pois também explicava os outros cinco pontos, que incluíam o abandono da verificação de fatos e a transferência da moderação de conteúdo da Califórnia para o Texas, estado “menos tendencioso”. Tudo nessa declaração foi feito para alinhar a Meta com os valores e as prioridades da nova administração.

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Para uma corporação na situação difícil da Meta, isso faz todo o sentido comercial, mesmo que seja uma violência em relação aos sentimentos expressos anteriormente. Esse não é um exemplo de uma empresa que subitamente age de forma irracional, mas de uma empresa que responde racionalmente a um desenvolvimento político para fazer frente a um desafio regulatório.

E essa não é a única tática que serve a essa estratégia comercial mais ampla. Os líderes de muitas empresas de tecnologia têm todo o interesse em promover o novo governo dos EUA e em enfraquecer a determinação da UE. Estados membros com líderes simpáticos a Trump, como a Hungria e a Itália, estão sendo cortejados da mesma forma para que a política da UE possa ser enfraquecida internamente.

Os gigantes da tecnologia estão adotando essa estratégia robusta não porque sejam fortes – eles sabem que, como a X no Brasil, não podem enfrentar qualquer governo ou sistema jurídico determinado em um mercado significativo e vencer. Elas estão fazendo isso porque sabem que são fracas e que precisam de aliados. Seu modelo de negócios depende disso.

E como os modelos de negócios da maioria das plataformas de mídia social exigem engajamento acima de tudo – pois sem engajamento não é possível ter mineração de dados, monetização e publicidade – realmente não importa que o engajamento seja gerado e ampliado por desinformação e desinformação.

A moderação e a verificação de fatos são caras. Se as plataformas de mídia social fossem obrigadas, sob pena de sanção legal, a fazer com que essa moderação e verificação de fatos funcionassem, então esse seria o caminho comercial a seguir. As empresas internacionais tenderão a cumprir a lei aplicável, e as despesas de conformidade são um custo comercial.

Mas não ter esses procedimentos e políticas em vigor é muito mais barato e mais lucrativo. Portanto, se puderem evitar essas obrigações, elas o farão – e se o lobby “suave” não funcionar, elas procurarão os governos para fazer o trabalho pesado de coerção.

Se Meta e X estivessem confiantes em evitar as imposições regulatórias da UE, do Brasil e de outros países, não precisariam apoiar Trump e o novo governo. O fato de estarem fazendo isso de forma aberta e sem desculpas – na verdade, sem vergonha – significa que eles sabem que têm um desafio e que talvez não consigam vencê-lo. Eles sabem que determinados governos e sistemas jurídicos estrangeiros são capazes de vencer qualquer batalha regulatória frente a frente.

Pois, como mostra a rendição de Musk e X aos tribunais brasileiros, é provável que o poder do Estado sempre vença as plataformas se for testado. Mas essa foi uma situação extrema: a regulamentação é um fenômeno contínuo, e casos judiciais emocionantes e dramáticos devem ser uma exceção. Mais útil no dia a dia é que os reguladores sejam colocados em seu lugar.

As recentes nomeações para a diretoria da Meta parecem que ela está se preparando para uma batalha, na qual seu modelo comercial atual exige que ela derrote os objetivos de governos estrangeiros. As novas nomeações fazem muito sentido do ponto de vista estratégico.

E se a situação for bem conduzida, com o governo dos EUA intimidando outros Estados em benefício das plataformas, essa é uma batalha e uma guerra que as empresas de tecnologia podem vencer – não por causa de como elas usaram seus pontos fortes, mas por conta de como elas cobriram seus pontos fracos.

A questão agora é saber se a UE, o Brasil e outros países têm a determinação e o estômago para o que se tornará uma feia disputa pública multinacional.

No entanto, há uma luta pela frente: sobre quem deve regular as plataformas de mídia social que, por sua vez, são influentes na formação (e contaminação) do discurso público.

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